Capítulo 12
"Isso será como uma lembrança, como alguma coisa amarrada nas mãos ou na testa. E nos fará lembrar que com o seu grande poder o Senhor nos tirou do Egito"
— Êxodo 13:16
Aquele foi um dia atípico para os Sakurai. Na verdade, foi um dia atípico para todos que presenciaram o acontecimento. Yuri saiu silenciosamente pelo lado, tentando conter alguma emoção que Aurora não decifrara. Na verdade, não pôde decifrar nem se Yuri apoiara a decisão do irmão.
Aurora não poderia dizer que entendia o que se passava dentro de Tadashi e nem o que aquele abraço significou para ele. Talvez pôde ter significado o mundo. E talvez as outras pessoas que presenciaram pensaram o mesmo, pois após um ou dois minutos de contemplação, começaram a se dispersar para os dar a privacidade possível no meio da rua.
Aurora decidiu fazer o mesmo que eles, para que sua presença ali não influenciasse em qualquer coisa a seguir. Entrou na igreja, fechando a porta de madeira atrás de si e indo até Marie Louise, sentando-se ao seu lado.
— O que aconteceu lá? — Marie questionou.
— Alguém que precisava muito de um abraço reconheceu que precisava e correu para ser abraçado — limitou-se em palavras.
— Mas por que o papai o chamou de filho?
— Era o que ele precisava ouvir — deu um sorriso simples, mas acolhedor. Não queria se arriscar a explicar algo que nem ela entendera direito.
— Eu... — fez uma pequena pausa, o olhar perdido em algum ponto do banco de madeira à frente — sinto falta da mamãe — achegou-se a Aurora, enquanto esta envolveu-a em um abraço.
— Eu também — fez um carinho no topo da cabeça da menor, permitindo-se permanecer assim alguns minutos, antes de anunciar: — vamos para casa, vá chamar Marie Claire.
A garota suspirou em cansaço e se levantou para ir procurar a caçula ao passo em que Aurora começou a ouvir gritos na rua. Imediatamente se levantou e bateu em disparada na direção da porta, atingindo-a com um estrondo e saindo para a rua.
— A tropa francesa foi derrotada! — Um garoto gritava. — O general é prisioneiro de guerra!
Um arrepio percorreu suas costas. Procurou à sua volta por sinal de Frederic ou Tadashi, encontrando-os sentados no meio-fio à sua direita. Tadashi ergueu os olhos para ela. O rosto dele estava molhado por suas próprias lágrimas, seu nariz estava vermelho.
Aquela visão lhe causou um nó no meio da garganta por algum motivo que ela não soube explicar. Não que fosse fria, mas era corriqueiro que ela visse pessoas chorando em um momento de fragilidade na igreja, eis que estava sempre perto de seu pai, um pastor. Por que aquela visão lhe foi tão sofrida?
Encarando-o tão frágil e despedaçando, ouviu o rapaz completar:
— Todos os homens com mais de dezoito anos devem se apresentar no pátio do palácio imediatamente!!!
Conforme o pânico na rua tomou corpo, as pessoas começaram a correr e as conversas se tornaram indistintas; tudo à sua volta se tornou um borrão. Tadashi se ergueu apoiando-se na mão e logo em seguida limpou a poeira da mesma. Lançou um olhar agradecido para Frederic e um indistinto para ela, logo em seguida se virou para caminhar calmamente rua acima, enquanto todos se desesperavam à volta dele.
— Leve suas irmãs para casa — a voz de Frederic soou, fazendo-a parar de olhar para o samurai e lhe dirigir os olhos. — Eu contarei quando voltar, se houver algo para contar. Ainda não sabemos se eu irei, então mantenham a calma.
Assim que ela concordou com a cabeça, ele se aproximou para deixar um beijo em sua testa, e logo em seguida se virou e passou a seguir Tadashi pelo caminho até o palácio.
— Aurora? — A voz de Marie Claire se projetou à direita.
— Vamos para casa. Agora. — Aurora ergueu o olhar para encontrar Océane, Marie Louise e Marie Claire na porta da igreja. Foi até elas e segurou as mãos de ambas as crianças, arrastando-as na direção contrária seguida por Frederic, sendo acompanhada pela tia.
— O que está acontecendo? — Marie Louise perguntou.
— A França está perdendo a guerra — falou baixo para que Marie Claire não escutasse. — Precisamos de mais soldados, então a Coroa chamou todos os homens para analisar se podem ajudar. Papai foi se apresentar. — Falou tudo em um só fôlego. Assim que viu a expressão no rosto da irmã se transformar, completou: — não entre em pânico, ainda não sabemos se ele vai. Ele vai contar quando chegar.
A garota assentiu com um maneio de cabeça, engolindo em seco e continuou seguindo a irmã — ou sendo arrastada por ela — rua abaixo.
Quando chegaram à casa, Aurora levou as meninas para o segundo andar e novamente desceu, procurando por Océane. Encontrou-a sentada em uma cadeira de veludo turquesa, observando a rua vazia.
— O que as mulheres fazem na guerra, Aurora? — Océane soltou ao ouvir os passos da sobrinha, mas nem sequer olhou para trás. Aurora suspirou, pois sabia exatamente o que estava acontecendo, em quem Océane estava pensando. — Quero dizer... pais, filhos e irmãos vão para a batalha, alguns inclusive para o front. Eles puxam gatilhos, pulam de navios, se escondem na mata, honram a pátria, salvam a todos. E o que nós fazemos?
— Eles também passam fome, frio e sede nas trincheiras. Perdem membros, companheiros, às vezes a vida. Sentem saudade de casa, se sentem sozinhos e nem sequer podem demonstrar fragilidade. Choram sozinhos. E às vezes morrem sozinhos... como se não bastasse o peso da responsabilidade de salvaguardar o país onde ficaram as filhas, mães, irmãs — respondeu de prontidão. — Nós guerreamos também. Há as enfermeiras, como Lou, que estão no front. Há as mulheres como nós, que fazem um país com menos comida, pessoas, felicidade e trabalho continuar girando. É um trabalho de equi...
— Somos impotentes — Océane a cortou. — E eles vão morrer sozi...
— Não foi culpa sua — foi a vez de Aurora a cortar. Não iria esperar ela terminar aquela frase terrível. — Não foi culpa sua Jacques ter morrido em batalha e você sabe disso. Não havia nada que você poderia ter feito.
— Se eu estivesse lá — Océane finalmente olhou para trás, permitindo Aurora ver os olhos vermelhos e os caminhos molhados que lhe riscavam o rosto — eu teria impedido. Eu teria pulado na frente da bala. Se eu sequer pudesse entrar no exército... — terminou a frase quase sussurrando, conforme a força da fala lhe escapava.
Jacques. Anos atrás, quando as irmãs de Aurora nem eram nascidas, Océane havia ficado noiva de um rapaz de brilhantes cabelos ruivos. As sardas que lhe cobriam o rosto encantaram Océane por muitos meses, mas a perseguiram por anos. Era um rapaz jovem e saudável que decidira servir ao exército francês por paixão e vocação... e não é necessário registrar por expresso que deu a vida pelo caminho que escolheu tomar.
Em uma das batalhas defendendo a pátria, uma bala atravessou-lhe o abdômen. Não teve sequer chances de chegar perto de um médico com vida. As honrarias do enterro de um soldado, os abraços de entes queridos, os "ele amava muito você" não foram capazes de curar um coração que escolheu permanecer partido e fechado.
E agora, temia perder também o irmão para a guerra. O sentimento de impotência atingia seu coração, pensamento após pensamento, como ondas violentas arrebentando nas pedras da costa em uma tempestade. Não queria perder Frederic também.
— Não foi culpa sua — Aurora segurou a mão dela, agachando-se ao seu lado. — Às vezes, você não pode salvar as pessoas que ama... isso não lhe torna uma pessoa menor ou menos capaz. Não foi culpa sua.
Océane debruçou-se sobre as próprias pernas, chorando alto. Aurora permaneceu segurando sua mão, enquanto fechava os olhos e pedia pelos sentimentos da tia. Pedia por ordem nos pensamentos acelerados, pedia por calma ao coração aflito, pedia por auto perdão.
***
Minutos após Océane se acalmar, o sino sobre a porta soou. Ambas levantaram o olhar para ver Frederic e Tadashi entrarem na casa seguidos por Yuri. Ambas se levantaram, esperando para que contassem o que iria acontecer. Frederic começou:
— Será preciso grande número de soldados para vencer o exército de lá. Portanto, Yuri e Tadashi não poderão ficar.
Ela imediatamente levou os olhos até o Sakurai. Prendeu a respiração por alguns segundos, franzindo o cenho. Ocorreu-lhe uma dúvida que imediatamente a fez se sentir egoísta: "por que agora?". Agora que ele havia iniciado algo tão belo, agora que ele poderia trilhar um caminho tão bonito. Por que a guerra tinha que lhe atrasar algo tão bom?
— E eu também terei que ir — a voz de Frederic a puxou de volta para a realidade. — Mas antes de vocês se preocuparem, saibam que não irei para o front. Irei ficar recuado com os outros médicos, enfermeiros e auxiliares.
O pedido de não preocupação de Frederic não surtiu tanto efeito quanto ele esperou. Océane voltou a se sentar, tapando a boca com as mãos e voltando a chorar. Enquanto isso, Aurora desviou o olhar, dando um longo, alto e trêmulo suspiro, enquanto prendia o choro.
Mordeu os lábios, caminhando até o pai e dando-lhe um abraço apertado, deixando que algumas inevitáveis lágrimas caíssem — àquela altura, as lágrimas já eram não só de tristeza, como também de preocupação, frustração, cansaço e talvez um pouco de raiva.
—Vai ficar tudo bem — ela disse mais para si mesma do que para ele. — Vai ficar tudo bem — repetiu. Precisava acreditar naquilo, caso contrário surtaria ali mesmo.
— Preciso contar para as meninas — Frederic disse e terminaram o abraço após alguns segundos. Conforme ele subia as escadas, Océane se juntou a ele, segurando sua mão até onde Aurora os pôde ver.
Ouviu-se Yuri murmurar algo em japonês, o que chamou a atenção da Fontaine. Virou-se apenas para vê-la se retirando.
— Vamos para Metz amanhã, ela foi se aprontar — Tadashi explicou.
— Amanhã? — foi tudo o que saiu de sua boca.
Conforme ele assentiu, ela abaixou o olhar. Engolindo em seco, levou os dedos até os próprios cabelos. Puxando a fita branca que estava ali, desfez o laço e deixou que os fios castanhos caíssem sobre os ombros. Trouxe-a para frente de si, dando alguns passos na direção dele e levantando sua mão com delicadeza.
— Você já me devolveu ela uma vez, Designado — com um leve sorriso ao se lembrar dos dias que passou o chamando daquela forma, pousou o cetim branco sobre a palma da mão dele, usando os dedos para fechar os dele em torno da fita. — Você precisa me devolver ela de novo. — Abaixou o braço dele, voltando à posição original. — É uma fita muito especial, eu vou sentir muita falta dela se ela não voltar.
— Ela vai voltar. Eu farei com que ela volte — ergueu a mão livre até próximo ao rosto da moça, juntando os fios soltos atrás da orelha dela, fazendo com que seu rosto pudesse ser claramente visto ao menos de um lado. — Espere por ela — levou a mão próximo ao rosto dela novamente, mas congelou antes de tocar. Em um pico de sanidade, voltou a si e recolheu sua mão, dando um passo para trás. — Boa noite, Aurora.
Enquanto se retirava da sala, Tadashi certificou-se de que não esqueceria o que havia dito para Aurora: deu a volta com a fita no dedo mindinho direito, amarrando uma das pontas com um nó firme que não se desfaria tão fácil. Então sumiu em meio ao breu por uma porta lateral.
— Boa noite, Tadashi — ela sussurrou quando ficou sozinha na sala.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro