Prólogo
A liberdade transformará todo sofrimento em justiça
Que adorável dia para estar morta.
E que guarda chuva sofrido esse, obtinha furos em seu centro onde escorria água gelada que tocava meu coro cabeludo e se espalhava adiante. Poças de lama encharcavam minhas botas de cano longo ocultando sua verdadeira cor. Que vento implacável, não sabia ao certo qual direção tomar, quase empurrava-me para fora da calçada esburacada, de rachaduras visualmente perigosas. Que motoristas parvos, esqueciam de dirigir na chuva, seus carros ocupavam as avenidas enfileirados com os motores ligados, porem imoveis. As buzinas montavam uma orquestra em desordem.
Que céu fúnebre, onde os flash dos relâmpagos mostravam as nuvens ocultas pela camada de poluição. E que dores nas costas. Elas me incomodavam de uma forma castigadora, como se eu fosse me quebrar ao meio a qualquer instante.
No meio de tantas coisas acontecendo, senti um imenso vazio. Passando pelos olhos das pessoas apressadas, nas ruas, nas lojas, nas casas, eu sentia olhares vagos. Algo como se a rotina da grande massa tomasse o consciente e o subconsciente. Um ato que as obrigassem a ter aqueles trajetos diários, aqueles problemas inacabados. Trabalhar, sustentar a família ou a si próprio, estudar e chegar a um patamar que te cobre mais estudos e mais trabalhos. Pessoas aprisionadas não vivem, elas sobrevivem. Pessoas vazias não sentem, elas mentem. Quantas mentiras rondavam esta avenida.
As sacolas que eu segurava não iriam aguentar muito mais tempo da caminhada caótica até em casa.
E que casa. Lugar onde eventualmente eu descansava. Ou ao menos tentava.
Atravessando a rua e passando por mais alguns buracos, consegui alcançar o bar do Ted. O letreiro em neon cujo nome tinha uma letra apagada, piscava aleatoriamente. Homens fora de si riam do lado de dentro e dois se esmurravam no lado de fora, rolando na calçada. A entrada do local era completamente aberta, não possuía portas. O vento invadia o ambiente mas passava despercebido pelo calor que emanava das bocas pútridas dos alcoolizados.
— Olha só quem está aí! — exclamou o rapaz atrás do balcão. Fechei o guarda-chuva quebrado, e torci meus cabelos até cessarem os pingos, depois os prendi em um coque — pela cara teve um dia ruim.
— Todos os dias são ruins, Ted.
Joguei o guarda chuva em um balde ali perto, virei as costas para o rapaz e subi as escadas no fundo do local que dava para o segundo piso. Era uma luta diária subir aqueles degraus cansativos. Desta unica vez retirei as botas que já estavam ensopadas junto com minha meia e continuei a subida descalça.
O lar que me aguardava era condenado por este bar pestilento vinte e quatro horas.
A porta da sala estava entreaberta.
— Tia Betty? — chamei assim que entrei encostando a porta. Logo o barulho atrás fora abafado.
A escura sala estava completamente desorganizada. Restos de pizza, garrafas de vidros vazios, pontas de cigarros acumuladas no cinzeiro e um vazo de girassol ressecado decoravam a velha mesinha de madeira no centro do comodo. A televisão de tubo com bordas de madeira velha sustentada por uma estante empoeirada, tremeluzia as imagens e o som. Conforme eu caminhava ia pisando em salgadinhos murchos e pedaços de amendoins grudados no tapete marrom, redondo e desfiado. A pouca iluminação era composta apenas pelas imagens salpicadas da televisão defeituosa.
A cadeira de balançar no fundo da sala denunciava uma senhora negra, dormindo, de óculos escuros e cabelos brancos com Dreads. Seu vestido rosa claro sem estampas era o único tecido limpo em meio a tanta bagunça. Um de seus pés estava sem um dos pares da pantufa azulada que eu havia lhe presenteado semana passada.
Tia Betty produzia um som horrível pela boca enquanto cochilava.
— Ei! — cutuquei sua barriga.
— Maldição! O que pensa que esta fazendo? — resmungou interrompendo a ronquidão. Um dos maiores problemas de tia Betty era o Alzheimer. Ela se lembrava de poucas coisas durante o dia e isso acabava cansando sua mente, fazendo-a dormir com mais frequência.
— Trouxe seus remédios.
— Quem disse que preciso de remédios? Estou ótima.
— Com certeza está — Caminhei para a cozinha logo a frente da sala, peguei um copo na pia e o enchi de água. Na sequencia abri a sacola de compras e pesquei uma caixa de comprimidos dali. A chuva continuava forte la fora. A janela da cozinha mostrava o quão cinzento era o subúrbio Londrino.
— Como foi o trabalho hoje, minha querida?
— Fui demitida a dois dias, a senhora já sabe disto.
— Sei? — questionou franzindo a testa.
— Sabe, tia. Eles estavam desligando funcionários o mês inteiro.
— Desgraçados! Aquele super mercado está mesmo falindo. De qualquer forma, perderam uma funcionaria de ouro! — dizia desapontada.
— Eles não perderam nada. Agora vamos, tome seu remédio — com as capsulas em mãos, entreguei o copo de água para ela e coloquei o remédio em sua boca.
Antes que ela pudesse engolir os comprimidos, o telefone tocou.
— Ah, esse telefone está tocando o dia todo, um tal de doutor estava te procurando. Não lembro o nome dele.
— Doutor? Não conheço nenhum doutor, tia Betty — caminhei ao telefone sem fio, preso em um suporte na parede da cozinha e o peguei.
— Pois não? — atendi.
— Srta. Moon? — uma voz masculina do outro lado pronunciara meu sobrenome com uma certa elegância. Algo que ninguém até hoje havia pronunciado. Meu estomago por um segundo revirou. Seria alguma cobrança? Algum banco que me esquivei no passado?
— Em que posso ajuda-lo? — respondi.
— Muito prazer, Srta. Moon. Sou Dr. Feen, um psicologo. Meu escritório fica perto de sua região. Gostaria muito que viesse até aqui para conversarmos.
— Desculpa senhor, eu não marquei nenhuma consulta com nenhum psicologo.
— Sei disso. É eu que estou lhe convidando. Meu endereço é na rua Dois, Vere Street, W Cinco, quase esquina com Oxford Street, estarei te esperando ansiosamente.
— Acho que é um engano, tenha uma boa tarde — concluí.
— É sobre o Insanity Asylum.
O telefone foi desligado imediatamente. A força que fiz para coloca-lo de volta ao suporte acabou derrubando-o. O aparelho se estilhaçou no chão. Meus olhos arregalaram e comecei a transpirar. Aquelas duas palavras ativaram lembranças de um passado distante. Quem poderia saber de algo do tipo? Como esse cara me descobriu? O que ele quer?
— Pandinha? O que houve? — perguntou tia Betty.
— Foi um engano.
De fato, era um ótimo dia para estar morta.
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