Epílogo
Depois do erro, a redenção.
Entrei.
Pandora estava comigo, como sempre esteve. Eu não gostava de demonstrar, mas todo o corpo me denunciava. Rosto oleoso, coração palpitante e passos desajustados. Era menos pior com ela, mas ainda era ruim. Parei no corredor e respirei.
— Brok, tem certeza que quer fazer isso?
— Pare de ficar perguntando, ou vou ter um colapso — respondi ríspido — Irei sozinho, está bem?
— Claro. Boa sorte — respondeu, beijando-me — ficarei aqui. Exatamente aqui, nesta parede, te esperando.
Tirei meu sapato. Depois as meias.
O chão era gelado e havia muitas pessoas em movimento na sala a frente. Continuei a andar, abrindo a porta do grande refeitório e parei na entrada. Escutei o barulho de pessoas batendo talheres enquanto comiam. Alguém batia a cabeça repetidamente em uma das mesas. Ouço passos apressados de mulheres indo em direção ao ocorrido. Também escuto gemidos em algares. Meus batimentos aceleravam. A veia de meu pescoço pulsava grosseiramente.
Senti um aroma no ambiente. Um aroma familiar. Firmei os pés no piso, pressionando meus dedos. E pude formar com mais clareza a imagem de todos presentes. Eram borrões sentados, almoçando. Segui o cheiro. Caminhei entre o corredor de mesas. Meus pés congelavam, o cheiro se intensificava. As palmas de minhas mãos suavam e tremiam. Eu não estava preparado. Talvez deveria voltar e tentar outro dia.
Não. Eu não poderia.
Quando o cheiro tomou posse da onde estava, olhei para o lado e vi uma sombra distorcida tomar um pouco mais de forma. Encontrava-se sentada, de cabeça para baixo. De resto, era um grande borrão escuro. Ela deixou cair o talher no chão. O bater metálico facilitou o lugar onde caíra.
— De novo? — disse uma voz feminina vindo ao meu encontro — já é o terceiro que você derruba hoje — advertiu para a que estava sentada — Aqui está, mas da próxima irá comer com as mãos — bateu o talher na mesa. Em nenhum momento, aquela sombra erguera a cabeça.
— O que ela tem, enfermeira? — perguntei.
— Ah... você é parente? Me desculpe, eu... não devia ter falado assim com ela. Esta paciente é difícil. Não fala, não se alimenta direito e esta com rarefação óssea. Temos sempre que coloca-la em uma cadeira de rodas quando vai se locomover.
— Como...?
— Você é neto dessa senhora, rapaz?
— Pode por favor me deixar a sós com ela? — questionei quebrando a pergunta. A mulher silenciou e saiu do meu alcance. Minhas mãos esfriavam. Afastei o banco e me sentei de frente para a sombra. Seu perfume, o mesmo de sempre. Não era uma fragrância. Eu não sei o que era exatamente. Talvez o próprio cheiro de sua pele, que somente um filho reconheceria.
— Mãe...? — Deslisei minhas mãos na mesa, lentamente. Passei pela tigela e por um guardanapo amassado. Não tive coragem de toca-la — Consegue... me escutar?
— O que veio fazer aqui...? — dizia com uma voz muito diferente da qual lembrava. Estava mais fraca, debilitada. Era bom poder escuta-la depois de tanto tempo, mas não era a mulher que eu pensava que era.
— Porque está assim? Pelos céus, o que fizeram com você?
— Vá embora. Não existe nada para você aqui — escutei o ranger de unhas sobre a mesa. Parecia aflita. Uma de suas mãos tremia.
— Você... não consegue comer? — perguntei, apalpando a mesa, procurando o talher que a enfermeira trouxera. Meus olhos encheram de lagrimas. Apanhei a colher e mergulhei na tigela. Pelo cheiro, parecia ser uma sopa. A mulher ergueu o rosto. Rosto do qual nunca poderia ver. No lugar dele, uma negritude eterna — Abra a boca. Você tem que se alimentar.
— Não preciso da sua ajuda — relutou.
— Abra a boca, por favor.
— Vá... embora... — ela começou a dar pequenos soluços — Eu... imploro, vai embora — Suas lagrimas caíam em minhas mãos. Escorriam devagar. Segurei firme a colher, encostando em sua boca. Ela cedeu e a abriu. Engolindo o caldo ao mesmo tempo em que quase abocanhara a colher. Estava faminta.
Afundei o talher na tigela e dei mais uma dose. Ela tossiu, engasgada.
— Vá com calma — adverti. Quando a tosse sessou, ela parou de falar. Abriu a boca mais três, quatro, cinco vezes até a ultima colherada bater no fundo da tigela e tilintar. Agora parecia me observar. Sua silhueta estava rente a minha. Meu braço direito continuava repousado na mesa, próximo a ela.
— Porque está aqui? — questionou.
— Trouxe isto para você — Saquei do bolso um envelope e o coloquei sobre a mesa. Ela não se moveu. Tomei a iniciativa de abri-lo — São as cartas que fiz para você quando criança. Eu guardava naquela caixinha, debaixo de meu travesseiro, você se lembra? — Não tive uma resposta — Nunca te disse, mas... fui eu que peguei a outra parte do seu brinco de lua minguante. Ele está aqui, junto e...
Algo interrompera o dialogo. Pude sentir um toque sutil, delicado. Toque de dedos frágeis que caminharam pelas costas de minha mão. Arregalei os olhos e não consegui dizer mais nada.
Ela segurava firme.
— Me... me... — soluçava. Não conseguia formular muitas palavras. Sua voz saía em sussurros. Não por falta de ar e nem por problemas vocais, mas por vergonha. Parecia muito envergonhada — Me... p-perdoe... por tudo... filho. Me perdoe por tudo.... Eu... — engoliu em seco — eu... Me perdoe... me perdoe por tudo.
Larguei o envelope e aproximei minha mão de sua face. Toquei uma pele envelhecida, com caminhos profundos de expressão, por baixo dos olhos, nas maçãs e no pescoço. Meus dedos sentiam suas lagrimas caminharem pelas linhas de seu rosto. Haviam rugas flácidas por onde quer que eu tocava. Subindo para os cabelos, vi o quão estavam maltratados, ressecados e cumpridos.
— Me perdoe... por tudo... eu... eu...não consigo nem olhar... no seu rosto... — continuou ela. Sua mão, frágil, permanecia segurando a minha. Agora engasgava com o próprio choro.
Me faltavam palavras. Nada saía.
Um calor forte aqueceu nossos corpos, vindo da janela que devia estar aberta ao nosso lado. Meu peito apertou, e um sorriso desconcertado, incrédulo formou-se. Apoiados na mesa, segurávamos a mão um do outro, trocando carinhos com os dedos.
Pedi para as mulheres do hospital psiquiátrico Bethlem Royal uma escova para poder desembaraçar seus cabelos. Coloquei o brinco em sua orelha e depois ela pegou os papeis do envelope e leu minhas cartas. Comemos mais duas tigelas de sopa. A partir daquele dia eu iria visita-la com frequência e me certificar de que não seria maltratada por nenhuma daquelas pessoas.
Mas nada mudaria o que minha mãe fez. E nada mudaria o que fizeram com ela. Acredito que todos nós recebemos aquilo que plantamos. Sou um bom exemplo disto. Nunca mais poderia ver seu rosto e nem o de ninguém. Só que eu os sinto. Da mesma forma que sinto que, naquela tarde, ela dissera as palavras mais verdadeiras de sua vida e isto fazia muita diferença.
— Eu te perdoo sim, Srta. Pompoo.
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