ATO 8
A morte é a arte mais bela da vida
"Maquinas que drenavam vitalidade de crianças, pais que não eram pais e segredos obscuros que rondavam minha família de mentira deixaram-me completamente perturbada. As vezes em que Alene e Jader iam para seus trabalhos eu começava uma busca insaciável por respostas. Queria saber cada vez mais sobre coisas que eu jamais deveria ter ciência. Quem são meus pais afinal? Quais seus nomes?"
Em uma manhã de primavera, onde as arvores secas já encontravam-se decoradas e cobertas por vastas cores, Alene caminhava para além do quintal dos fundos, onde uma floresta verde musgo cobria o resto da visão. Eles sempre me advertiram a não entrar ali sozinha, mas meu sexto sentido, pela primeira vez dizia para eu continuar seguindo aquela mulher, que se bem enganada, poderia me levar a coisas mais interessantes. Meus passos leves, pisavam em pequenos gravetos e folhas secas, abafadas pelo canto dos pássaros. Aproveitei meu tamanho minusculo para se camuflar entre as moitas extensas, onde Alene não conseguiria me ver caso olhasse para trás. A mulher segurava nas mãos algumas fotos. Abaixada no matagal, não pude ver o que ela estava fazendo sozinha em um lugar tão improvável quanto aquele. A questão era que ela sabia exatamente o que estava fazendo e porque estava fazendo.
Algumas arvores em sua frente obtinham fotos que foram perfuradas por galhos mais longos e velhos. Fotos espalhadas por toda parte, em quase todos os troncos que possuíam coisas espetadas para servir de gancho. Fotos minhas quando bebê, cuja o destaque entre elas era eu e Jader em momentos agradáveis. O mesmo saíra de trás de um tronco longo, olhando diretamente para Alene com um rosto serio e preocupado.
— Explique essa palhaçada toda — ordenou o rapaz erguendo uma das sobrancelhas.
— Agora vai dar certo, confie em mim, aumentei a dosagem. Você vai usar a maquina novamente e após isso vou te trazer para cá. Você verá as fotos de Pandora com você e terá a certeza de que esta é sua filha, sua unica filha. Confie em mim.
— Alene, para mim ficou bem claro que esta maquina não está funcionando direito a muito tempo. Nossas memorias estão voltando com força total e talvez eu não queria esquece-las de novo.
— Por favor, só mais uma vez. Uma unica vez, vamos tentar — insistiu ela colocando suas mãos nas costas de Jader, levando-o em direção reta, para um caminho onde as arvores já não eram mais tumultuadas. Meu coração quase pulava para fora por debaixo de minha camiseta preta e branca, meu olhar atencioso não permitia que eu visse nada mais além daquelas duas pessoas.
Esperei que se distanciassem um pouco mais para voltar a segui-los.
— Se não funcionar e isso me incomodar mais uma vez, prometa-me uma coisa? — perguntou Jader parando no meio do caminho terroso. Alene assentiu com a cabeça — deixe Pandora em um colégio interno. Pelo menos até atingir a maioridade, e quando ficar adulta, ela segue o caminho dela.
— Ficou louco? Porque acha que eu concordaria com isso?
— Porque a vida que eu planejei com você sempre foi individual, você sabe disso. Eu não gosto da ideia de compartilhar nosso futuro com outra pessoa. Se essa maquina não funcionar de novo, vamos parar de brincar de papai e mamãe com ela, está bem?
— Então é isso..? Se tivéssemos uma filha, sangue de nosso sangue, você iria rejeita-la também? Nunca seriamos uma família completa se dependesse de você?
— A minha família sempre esteve completa quando eu te conheci, ela sempre foi composta por mim e por você. Já não é o suficiente?
— Por Deus, vá usar a maquina e pare de falar besteiras. Mesmo com minhas memorias voltando eu ainda continuo gostando da garota, eu a amo desde sempre. O problema aqui é você — concluiu Alene ao chegarem em uma clareira da floresta. No centro daquele pequeno local havia um pequeno celeiro abandonado cuja as madeiras que o compunham eram escuras e velhas, os tons de marrom e beje formavam um degradê nas tabuas e a porta nem se quer tinha maçaneta ou correntes para fecha-la. Encontrava-se semiaberta. Aparentemente era um local que ambos iam com frequência, não se dando o luxo de se preocupar com cadeados, muito menos correntes.
Jader entrou ali apressado, resmungava algumas coisas que ficou fora do meu campo auditivo. Alene olhou para trás por instantes e quase me notara escondida atrás de um tronco largo. A tal maquina deveria estar ali. Não havia nenhum lugar da casa onde ela poderia estar. Esperamos alguns minutos até o rapaz sair novamente para fora, desta vez com outra expressão. Um olhar despreocupado, sereno.
Alene não disse mais nada a não ser estender o braço para o rapaz, de sorriso tímido, levando-o para o local das fotos. Sua terapia provisoria junto da misteriosa maquina havia funcionado até então. Jader não questionou mais sobre nada relacionado a mim. O Papai, humilde e brincalhão havia retomado seu corpo.
Ao ver as fotos cravada nos galhos, abriu um sorriso de ponta a ponta.
— É a filha mais linda do mundo, não acha, amor?
— Com toda certeza — concordou Alene de mãos dadas para ele.
"Nessa altura dos acontecimentos, eu não precisava mais do consolo de ninguém. Era fato de que coisas estranhas estavam acontecendo naquela casa, naquela família. Minha vida desmoronou de um dia para o outro. Reprimida e sufocada pelas mentiras dessas duas pessoas problemáticas, possivelmente assassinas e sabe-se lá o que mais. Tudo estava ficando claro para mim, a partir disso pude me conhecer melhor. Descobri que eu conseguia usar mascaras com camadas profundas para enganar Alene e Jader. Continuei sendo a filha de mentira, mentindo e sorrindo, distorcendo a verdade, que insistia em ficar na minha frente. Eu não queria mais fingir, queria vê-los brigar ainda mais, para saber ainda mais. Não quero meus pais de volta, quero saber quem são essas pessoas, quero saber tudo e ao mesmo tempo não quero que eles saibam que eu sei."
— Audrey Purnel, ex professora do Insanity Asylum, agora proprietária das terras e do projeto D.R.D ao lado de sua ambiciosa irmã, Pompoo Purnel, ex enfermeira e atual diretora do orfanato, descobriram um método de rejuvenescimento através do antigo projeto usado pelos aliados para vencer a segunda guerra mundial.
"Após a vitória dos aliados o projeto secreto foi cancelado devido ao perigo que as maquinas traziam. Em sua central de pesquisas o projeto fugiu do controle, varrendo uma cidade inteira do mapa. O cancelamento do projeto após isso foi de extrema importância para o país. Anos mais tarde dois irmãos patentearam o projeto, reativando-o. Os irmãos Demetrio e David Corrigam, fundadores do Insanity Asylum para crianças órfãos da segunda guerra, vindos de uma família poderosa, reativaram o projeto para futuras pesquisas de baixo nível. Após o misterioso falecimento dos dois, as irmãs Audrey e Pompoo assumiram o projeto, revolucionando-o" — quase sem fôlego para ler o restante, dei uma pausa e encarei Luna, preocupada.
O dia castigava com um calor insuportável. O quarto de Alene e Jader mais parecia uma sauna do que um cômodo para repouso. Ali, ajoelhada em frente ao guarda-roupa deles, com as papeladas secretas em mãos, eu absorvia o máximo que podia. Diariamente as investigações em meio a todos aqueles documentos se intensificavam, tudo que estava ali era decorrente de apenas um assunto, era fácil juntar o quebra cabeça e saber do que se tratava.
— Crianças por aí estão morrendo, Luna. Eles fizeram parte disso tudo. São pessoas más, como essas irmãs do noticiário. Mataram meus pais de verdade, mas não sei quem são meus pais... — minhas lágrimas escorriam da minha bochecha pálida até meus lábios — eles devem estar aqui, em algum lugar desses documentos, eu juro para você que vou encontra-los — continuei deixando o documento de lado e espalhando mais alguns diante de mim.
Alguns papeis amarelados com anotações a mãos chamou minha atenção naquele momento. A letra era de Alene. Luna já estava em meu colo, satisfeita pelo cafuné que eu fazia em sua cabeça pequena, não se importava mais com a situação entediante que se resumia a mim lendo coisas que não era do seu interesse.
— (Dia 1) Não sabíamos que eles tinham uma filha. Isso não aconteceria caso soubéssemos antes. Esses dois nunca misturaram o pessoal com o profissional, como imaginaríamos? De cientistas para mercenários, Deus, que vergonha.
(Dia 4) Hoje foi um dia importante. Eu e meu marido conseguimos terminar os rascunhos da maquina. Tudo foi feito com muito sigilo, as irmãs Purnel não podem ter conhecimento disto. O Drenador reverso não é um plagio do original, mas sim uma versão simplificada. Ao invés de implantar sonhos ou lembranças boas para substituir as ruins, ele apenas as tira de você. Não tive muita escolha, a maquina só será útil para recomeçarmos nossas vidas longe deste projeto. Não tenho muito tempo, precisamos ir.
(Dia 6) Acabei de desfazer as malas. O bairro é tranquilo, longe dos olhares perigosos da Mindplace. Jader detestou a ideia mas isso já não é uma escolha individual. Nós dois tínhamos que tomar uma iniciativa justa. Começaremos a construção do drenador reverso hoje, espero que funcione.
(Dia 14) Para que a maquina funcionasse usamos um remédio que bloqueasse as atividades da proteína PKMZeta que é importante para a manutenção das lembranças de um indivíduo. Esse remédio foi aplicado em meu marido e logo após utilizamos o Drenador reverso para fortalecer a perca de memória. Nossa maquina consiste em um emaranhado de fios que são colocados por toda a cabeça, disparando pequenas ondas eletromagnéticas. Com o auxilio deste bloqueador de proteína, junto das ondas, o resultado é promissor. A questão é que a dosagem deste remédio deve ser balanceada, em excesso o indivíduo corre o risco de sofrer uma perca total de memória, não conseguindo lembrar nem seu próprio nome.
(Dia 15) O primeiro dia de testes foi um sucesso, Jader perdeu uma boa parte das lembranças das ultimas semanas. Hoje será minha vez. Que a sorte esteja comigo.
"O diário de Alene estava repleto de conteúdo misturado. Ela relatava os dias em que cuidara de mim quando bebê junto dos dias que se empenhavam na construção da tal maquina. Durante muitos anos, em quase toda a minha vida, ambos ocultaram seus passados mas obviamente essa farsa não duraria para sempre. O drenador reverso já não estava mais dando conta das altas dosagens que Alene e Jader usavam. O remédio já estava viciado em seus corpos, enfraquecendo os efeitos da amnésia. Além desta droga, Jader estava cada vez mais alcoólatra, Alene, obteve diversos outros vícios como cocaína e até mesmo heroína. Drogas que passei dias pesquisando em bibliotecas da região"
— Eu não queria que você se chamasse Pandora, admito. Me remete a coisas ruins. Mas seu pai insistiu neste nome. Ele tinha uma perspectiva diferente da minha. Pandora significa "Todos os presentes" A menina que merece ter o mundo para ela — Dizia Alene em um dia de sol, enquanto estendia as roupas em um varal de cordas gastas, que poderiam arrebentar a qualquer momento. O quintal estava fresco, o vento leve passava por nós fazendo com que nossos cabelos dançassem no ar. De costas para mim, a mulher continuava a falar quando eu a interrompi impaciente.
— Aonde quer chegar com isso? — cuspi cada palavra com frieza. Alene se virou para mim naquele instante com um rosto surpreso, segurando algumas roupas úmidas no braço.
— A lugar nenhum, filha, só estou dizendo a origem do seu nome...
— Me desculpe — respondi de olhos baixos, contendo minha fúria que se alastrava a cada dia. As vezes meu cérebro não me obedecia, deixando porventura algumas verdades saírem de minha boca — não estou em um dia bom, mamãe.
— Pelo visto não é só este dia. Já fazem duas semanas que suas férias começaram e não te vi saindo de casa até agora. Não vai ao cinema, não trás mais suas amigas para cá... tem alguma coisa que você queira me contar?
Aquela pergunta me calou pelo resto do dia.
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