ATO 6
Não esconda-se de si mesmo. Cedo ou tarde a máscara cai.
Eu já tive um amor, já tive uma família e já tive liberdade.
A densa neblina engolira o antigo bairro, quase em suplica para que eu não o encontrasse. Um local esquecido pelo tempo e por mim. Casinhas geminadas, uma ao lado da outra, com tinturas gastas, brancas e cinzas, com destaque de diversas pichações de diversos tamanhos. Letras ilegíveis passavam de uma parede para a outra. As calçadas continuavam esburacadas com plantas que cresciam em suas rachaduras e a rua antiga, estreita de paralelepípedos. Me surpreendia saber que ainda residiam pessoas ali. Talvez, as mesmas pessoas.
O cheiro de café recém feito circulava por todo o local, feito por gente normal, que acordava cedo, trocava seus filhos para a escola, depois vagavam direto para seus trabalhos. O bairro continuava do mesmo jeito, se não pela casa de numero cinquenta. A unica em que as luzes permaneciam apagadas por dezesseis anos.
Um cachorro de rua passava por mim, enquanto eu e Feen observavamos o casebre, parados no meio da rua. A camada branca de fumaça, criada pelo próprio clima não permitia que víssemos mais além daquela casa, no entanto era tudo o que precisavamos.
Senti um arrepio em toda a espinha, passei a língua pelos lábios ao perceber que estavam ressecados e por fim caminhamos para o local desejado. Reformulando a frase: Caminhamos para o local em que eu jamais deveria ter voltado.
— Como se sente?
— Machucada.
— Pan, me diz as coisas que se lembra antes do Insanity Asylum.
— Não lembro de muita coisa. Tudo o que lembrei foi relatado a você nas consultas. Lembranças irrelevantes do dia em que adotei a Luna ou pequenos momentos felizes com meus pais. Nada que contasse o que de fato aconteceu comigo e com eles.
— Certo. Descreva para mim a primeira coisa que pensou quando viu esta casa, minutos atrás.
— Pensei em Luna. Ela me esperava na porta de casa todas as tardes quando eu voltava da escola. Penso nela correndo pela rua ao abrir a porta da sala e de mim correndo atrás dela para que não se afastasse muito — falávamos enquanto encarávamos a porta de madeira velha, com rachados em todas as partes e a maçaneta enferrujada, consumida pelos anos.
— Perceba que Luna sempre foi uma lembrança mais intensa do que a de seus pais. Isso significa alguma coisa para você? Sente mais falta dela do que deles?
— Não sei, acho que Luna esteve comigo mais tempo do que eles tiveram depois que entrei no orfanato. Ela aparecia em quase todos os sonhos que tive, enquanto meus pais apareciam apenas em pesadelos.
— É um vínculo bem superficial. Você não tem lembranças o suficientes de ambos para ter um afeto significante. O afeto que tem pela Luna é com base nas lembranças que foram colocadas em você nos drenadores e não pelas que tinha com ela antes disso. É por esse motivo que você tem mais sentimentos por ela. Vamos tentar desencadear suas lembranças verdadeiras disso tudo — quando finalmente paramos de avaliar quão velha era a porta de entrada, Feen sacou de seu bolso direito uma chave de bronze, com 3 arcos em sua parte superior, dois deles colados um do lado do outro e o terceiro em cima dos demais. O dente da chave lembrava uma coroa de quatro pontas quadradas.
— Que chave é essa? — perguntei no mesmo instante que a vi.
— Uma chave mestra. Ela foi feita unicamente para esse momento, ou pensou que eu havia planejado esse dia de uma hora para outra? — sorriu o rapaz colocando o objeto na fechadura. Com duas voltas, escutamos um "clic" e a porta se abriu.
— Você se tornou um gênio maluco! — respondi surpresa.
Entramos.
O impacto veio logo em seguida. A sala de estar estava tão devastada pelo tempo que nem mesmo as paredes aguentaram. Estavam descascadas, deixando amostra tijolos esburacados onde saiam pequenas formigas que andavam em conjunto. O chão era branco mas não do piso e sim da camada de poeira grossa, nele haviam pedaços de panos e madeiras, provavelmente saídas dos moveis, que por incrível que pareça continuavam no mesmo lugar de sempre, como se lutassem para continuar ali, mas vencidos pelos anos subsequentes. A televisão de tubo e sua antena torta acima, deixava tudo aquilo muito mais antigo do que deveria. O Comodo era retangular e conectado diretamente com a cozinha.
Algumas lembranças vieram atona ao rever aquela parte da casa. Breves relances onde eu sentava na sala enquanto mamãe passava os canais apressados, ansiosa para o começo do jornal. Papai arrumava a antena da tv sempre no mesmo horário, onde nós três nos reuníamos após a janta.
— Feen, eu estou me lembrando de coisas.
— Guarde-as para você. Estou aqui apenas como um acompanhante. Isso tudo é muito pessoal, Pan — dizia ao passar pela sala, desviando de pequenos objetos espalhados pelo chão e adentrar a cozinha.
Acenando com a cabeça, o acompanhei. A cozinha estava igualmente destruída. Praticamente vazia, se não pelo fogão de quatro bocas em uma parede de canto, que perdera sua cor prateada por um cobre escuro e sujo e a própria pia ao lado, que de um mármore branco, estava preto de tanta sujeira acumulada, com lodo em suas bordas e alguns vermes rastejantes esverdeados no centro, perto do buraco onde a água saía. Ao fim da cozinha havia uma escada de pedra, caracol ao lado da porta que dava ao quintal do terreno. Escada na qual meu pai possivelmente fora empurrado por mim. Senti minhas mãos formigarem e um pouco de suor escorrer por meu rosto. Feen permanecia em silencio, analisando detalhes inúteis na intenção de me deixar a vontade para explorar sozinha.
Um flash de meu pai caindo, batendo suas costas na parede e na sequencia quebrando seu pescoço ao chegar no chão veio em mente. Lembranças introduzidas pelos drenadores, na qual jamais iria esquecer. O dia chuvoso e os relâmpagos estrondosos também marcaram o cenário. Eramos mesmo uma família feliz?
— Você está bem? — perguntou Feen ao notar minhas mãos tremulas.
— É obvio que não estou bem, ainda continuo achando sua ideia absurda — rebati — Irei subir.
— Ela é absurda, se não, não seria minha ideia. Te espero aqui em baixo. Acredito que foi lá que ocorreu os traumas maiores.
Acenei com a cabeça novamente e subi os degraus. A expedição em minha antiga casa estava sendo desconfortável desde seu inicio, mas agora atingiu um nível muito além. Chegando no andar de cima avistei o corredor dos quartos e o banheiro na parte final. O carpete escuro que havia no chão de todo o local estava com muitas partes faltando, deixando amostra o piso de madeira, repleto de pequenos furos. Meus passos ecoaram pelos cômodos abandonados enquanto eu entrava no quarto de meus pais. O teto também esburacado deixava a luz passar, ela descia em pequenos feixes aleatórios, evidenciando a poeira que predominava.
O maior quarto da casa possuía uma cama de casal sem colchão, duas cabeceiras de madeira podre, com diversos fungos amostra e um guarda roupa de mogno extenso, com as portas arrancadas. Obviamente o casebre fora invadido algumas vezes, não pela frente, mas pela porta do quintal. Me impressionava não terem usado o local como moradia. Seria o abrigo de muitos mendigos da região. Ou talvez o fato da casa ter um assassinato tão peculiar que afastara até os moradores de rua e para os que gostavam de assombrações, aqui era um prato cheio.
Me aproximei da janela no centro do quarto que por incrível que pareça ainda possuía cortinas, mesmo que metade delas e vi a rua de pedras lá em baixo. A neblina havia desaparecido, mas as nuvens cinzas continuavam e não eram poucas. O vento invadia bruscamente o quarto em pequenas pausas. O cheiro de chuva se aproximava mais uma vez.
Aqui, no comodo de meus entes queridos nenhuma lembrança veio atona. Senti apenas um de muitos vazios. Era mais como um quebra cabeça destroçado, onde eu me esbarrava em pequenas peças que não me levavam a lugar algum na hora da montagem. Valeu a pena vir até aqui, passar por essas sensações?
O meu quarto era o próximo da lista.
O céu lá fora produzia barulhos abafados de trovões anunciando a próxima tempestade. Apertei os punhos e mordi os lábios. Mais flash surgiam.
Era como se Luna tivesse passado por mim no momento em que o clarão de um relâmpago surgira. A vi correndo em direção ao quarto, pulando em cima da cama, perto de meus pés, onde eu deitava tranquilamente enquanto meus pais descansavam, mortos abaixo de nós.
As visões aumentavam. Já não eram mais lembranças, elas se projetavam para fora da minha cabeça, mais reais do que nunca. A iluminação diminuía, obrigando-me a pegar o celular e ativar o modo lanterna. Minha cama também não tinha colchão, ao invés disto, possuía um forro de madeira despedaçada. A comoda de três gavetas ainda estava ali, completamente amarelada, ao lado da cama. Nada mais do que isso. As parede eram as menas prejudicadas, ainda dava para ver o papel florido nelas que decorava minhas noites tranquilas. Partes dos desenhos brilhavam no escuro.
Ouvia gritos por todos os lados. Da minha mãe, do meu pai, latidos da Luna e mais trovões e relâmpagos. Que sentimentos horríveis. A muito não passava por uma situação como esta. Eu faria qualquer coisa para me transportar ao campo Mayfileds e dali não sair nunca mais. Coloquei as mãos em meus ouvidos, comprimindo minha cabeça. Fechei os olhos apertando minhas pálpebras e esperei. Ao abril-los novamente as visões haviam desaparecido, a cama não possuía nenhuma Pan deitada com sua Luna, de baixo dela, nenhum cadáver, mas a chuva chegara lá fora. Mais real do que nunca.
— Pan? Ainda está viva? — questionou Feen alterando seu tom de voz devido aos pingos fortes que caíam no telhado e em todas as partes fora da casa.
— Não sei! Já estou terminando essa expedição idiota! — ao passar a lanterna mais uma vez para a velha cama, encontrei algo muito incomum ali em baixo. Uma deformidade no chão de madeira. Abaixei para ver ao certo o que era e de repente um flash tapou minha visão fazendo-me lembrar das vezes em que eu ficava escondida debaixo da cama até a tempestade parar.
Ao iluminar o local por completo com a lanterna, pude ver uma parte do chão faltando, bem pequena. O que intrigou-me é o fato do piso inteiro estar intacto. A deformidade parecia proposital ali em baixo então levantei e empurrei a cama até a parede para analisa-la.
Me sentia como uma completa idiota. A verdade sobre tudo isso é que eu não sabia porque havia aceitado esta lição de casa. Não sabia exatamente o que estava fazendo agora e não sabia o que fazer após isso. Sempre tive a impressão de não saber o que estou fazendo em todos os momentos da minha vida. Sempre andando com a perna dos outros, pela vontade dos outros. Traçar um caminho novo parece algo novo demais para mim. Então esse sentimento de inutilidade as vezes vem me atingir como uma bala atravessando a cabeça. É triste para uma mulher velha como eu, ter a certeza de que talvez, nunca consiga andar por si própria. E agora, se ver em um quarto abandonado, investigando um chão esburacado, completamente sem ideia do que está fazendo.
Retirei a madeira ao lado, aproveitando o buraco e a puxei. Ela saiu com tanta facilidade que a força que fiz foi o suficiente para que eu me desequilibrasse para trás. Ao retira-la estiquei o pescoço para dentro do apertado buraco e algo realmente estava ali. Uma pequena caixinha preta, sem cadeados ou algo do tipo, propositalmente colocada naquele esconderijo para o primeiro que percebesse, encontra-la.
Dezesseis anos depois e fui a primeira?
Isso já aconteceu antes, em outros chãos com deformidades na madeira. Chãos que escondiam cadáveres e até mesmo chaves. Sem muito o que pensar, retirei o objeto dali e o abri. Dentro havia apenas uma coisa: Uma carta enrolada em um elástico preto de cabelo. A chuva se intensificava no bairro. Retirei o elástico, repousando-o ao meu lado e com cuidado desenrolei a carta. A caligrafia parecia de uma criança muito nova, algumas palavras eram difíceis de entender. No entanto, eu reconhecia aquela escrita de longe.
Era minha escrita.
"Pan, espero que ao encontrar esta carta, as irmãs Purnel já estejam atrás das grades.
Primeiro quero que se acalme e leia atentamente tudo o que escrevi aqui. Não é nenhum tipo de brincadeira. Descobri muitas coisas nessa ultima semana e fiz coisas que talvez você não se lembre. Começarei por meus pais, que são seus também.
Grave isso na sua mente: Eles são uma completa farsa."
Apertei o papel e respirei fundo. Meu coração apertou e minhas mãos ficaram gélidas, dei uma pausa e reli aquela parte novamente, escrita de mim, para mim.
Deus lá fora continuava a chorar.
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