ATO 36
Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal
A sensação de acordar e poder ver alguém importante deitado ao seu lado era um tanto estranho. Eu poderia pensar em muitas maneiras de começar o meu dia. Acordar sozinha também não era de todo mal dependendo da época. Mas passei tempo demais solitária. O bar do Ted era infestado por homens grotescos que me faziam perder as esperanças.
Meu ultimo relacionamento reforçou essa perca. Cada dia que se arrastava eu me afastava de possibilidades e oportunidades. Não se tratava mais de amar ou ser amada. Se tratava da forma como as pessoas lidavam com isso. Amor sempre foi interpretado de maneiras diferentes. A minha maneira de amar pode ser complicada para a sua maneira de amar, assim por diante.
Para evitar tantas interpretações eu me ausentei de sentir alguma coisa por outra pessoa. Mas agora, meus sentimentos estão mistos. Quando abri os olhos no meio da noite, não encontrei ninguém importante deitado ao meu lado. Ninguem estava ali. Pouco atrás eu tinha certeza que estava.
— Brok? — apalpei o lado onde o rapaz dormira. O colchão ainda estava quente. Levantei e mal consegui enxergar alguma coisa dentro do quarto. Existia uma janela na porta que me dava a vista para os corredores, porém alguém estava em pé, ocultando esta janela e a pouca claridade vinda de fora. Uma sombra negra que parecia me encarar, ainda que eu não pudesse ver seus olhos.
— Brok? Está fazendo o que aí parado? — perguntei confusa. Não houve resposta. Iria demorar até minha vista absorver o que estava acontecendo. Naquele momento, a sombra se mexeu. Veio a meu encontro rapidamente e avançou em meu pescoço. Não pude reagir, foi uma situação completamente inusitada.
Fui sufocada por duas mãos grandes e ásperas. Seus dedos apertavam minha jugular, deixando-me sem ar e sem fala. Aquilo era mesmo real, alguém tentava me matar em silencio. Me debati na cama tentando escapar de alguma forma. Bati no rosto da pessoa e senti pelos de barba ali. Era um rapaz. Um rapaz alto e forte. Ele apertava meu pescoço com força, afundando minha pele, meus músculos, chegava a sentir seus dedos em meus ossos. O desespero tomou conta. Todos os meus sentidos morriam.
— Não era para estarem vivos. O lobo não vai perdoa-los desta vez — sussurrou uma voz que logo reconheci de quem era, mas não importava. Eu não produzia nenhum som, mau conseguia ataca-lo. Dante estava em vantagem — Você já viveu demais, não acha? — continuou o rapaz, de voz tremula. Perdi a força e toda a visão escura clareava.
De repente, ele parou de me sufocar e caiu em cima de mim. Escutei um estalo. Empurrei o rapaz para o chão, e quando o mesmo se estatelou, Meggie encontrava-se um pouco a frente de nós, segurando um pedaço de ferro.
— VENHA! CORRA! — alertou ela, puxando meu braço para me levantar. Tudo girava em minha volta. Estava completamente desnorteada. Quando Meggie abriu a porta do pequeno quarto, entramos em um vasto corredor. As luzes no teto piscavam. Todas com mal contato. Coloquei as mãos na parede para evitar que meu corpo caísse. A respiração voltava aos poucos mas não era o suficiente para seguir uma linha reta. Quando olhei para o chão, vi alguns cadáveres esticados, outros sentados, escorados na parede. Uma linha de sangue percorria o velho piso. Meggie me puxava com força, conduzindo-me até a saída.
— O LOBO QUE RASTEJA OBSERVA! — Gritou ele, com o mesmo pedaço de ferro que Meggie o atingira. Dante arrastava o ferro na parede, causando um ruido insuportável. O rapaz, recém golpeado caminhava devagar até nós. Chegamos na última porta do corredor. Adentramos a cozinha, que fedia a peixe cru. O lugar era repleto de mesas de inox com pedaços de carnes cortadas e facas espalhadas pelas estantes. Facas de diversos tamanhos. Avistamos mais um cadáver, desta vez escorado perto do fogão, trajado com um avental branco, decorado com manchas brutais de sangue. O cheiro estava insuportável. Moscas rondavam os restos de carne que tinham sido esquecidas ali. As luzes continuaram a piscar.
Meggie apanhou a maior faca que avistara e juntas saímos da cozinha para o próximo comodo. A garota gritava por ajuda, mas não havia ninguém nas proximidades que pudesse nos acudir. Meu pescoço latejava de dor, impossibilitando que minha voz saísse e as coisas ainda giravam e giravam. Meu coração explodiria a qualquer momento. Notei que Meggie não estava conseguindo avançar tão rápido já que tinha que me arrastar com ela. Dante apesar de debilitado, ainda caminhava ao nosso encontro.
— NÃO TENHAM PRESSA MENINAS! TODOS NÓS TEMOS UM DIA PARA MORRER! — gritava o rapaz. Olhei para trás. Dante não estava muito longe. Seus olhos permaneciam fixados a nós. Arregalados e assustadores.
— Vamos sair dessa Pan, confie em mim! — disse Meggie encorajando-me. Acenei com a cabeça, enquanto tossia — Esse louco trancou aquele rapaz loiro de óculos no quarto dele e Brok está inconsciente no quarto ao lado. Ele matou todos os pescadores! — dizia a garota atropelando algumas palavras — Escutei os gritos e fugi antes dele aparecer no meu quarto... Pan... quem é ele? Porque esta fazendo tudo isso?
Entramos na cabine do capitão. Não havia ninguém ali. Os computadores e rádios estavam com interferência, outros, desligados. A noite estava gélida e perigosa. Não tínhamos ideia de como era a planta do navio, apenas avançávamos para longe de Dante. E então, um leve curto no sistema da cabine apagou todas as luzes do lugar.
O silencio intercalou-se com nossas respirações ofegantes.
Olhamos para porta onde entramos e Dante estava lá. Tudo o que conseguíamos enxergar fora sua silhueta e o ferro que empunhara.
— Não é pessoal, Pandora — disse ele aos sussurros.
— NÃO SE APROXIME! — Gritou Meggie segurando o facão. A luz da lua passava as vitrines da cabine e iluminava alguns trechos do chão. Dante mais parecia um vulto do que um ser propriamente dito. Minha consciência aos poucos fora retomando. Apertei a mão de Meggie e corremos para fora da cabine. Saindo de lá, fomos recebidas com um choque térmico. O ar estava gélido, e o vento, forte. O clima implacável fazia meus cabelos esvoaçarem para todas as direções. O mar não estava agitado. O navio, sem energia, encontrava-se parado no oceano.
A proa era grande. Mais conhecida como a parte da frente do veículo. Dante saiu da cabine em passos lentos. Não tinha mais rota de fuga. Ou o encarávamos, ou pularíamos na água fria e morreríamos congeladas. Aproveitei o máximo de tempo possível para recuperar meus sentidos. Fiz um teste de respiração profunda e apalpei meu pescoço, massageando-o.
— Meggie, fique atrás de mim — foi a primeira frase que consegui produzir até então. A garota obedeceu, saindo de minha vista.
Nunca tive auto-confiança. Não me garanti em muitos dos problemas que me metia, mas dessa vez, com o conhecimento que adquiri, e com as habilidades que foram me apresentadas eu tinha certeza de uma coisa: Não fugiria mais de briga alguma. Esperei o rapaz vir. Provoquei encarando-o, desafiando-o. Apalpei minha cintura. O bastão que Edgar me presenteara não estava comigo. De qualquer forma, eu não precisaria dele no momento.
— Então vem — disse ao rapaz, que se incomodou com minha entonação e deixou de andar para correr rapidamente. Segurava firme o pedaço de ferro, desbravava uma fúria invejável. Na primeira tentativa de golpe, bloquei seu ataque com as mãos. O impacto do ferro em minha carne causou uma dor latente, mas não esbocei reação. Segurei firme sua arma. Dante demonstrou surpresa. Antes que pudesse tomar qualquer atitude, tomei o pedaço de ferro de suas mãos e com ele, finquei em seu estômago, não ao ponto de atravessar seu corpo, mas o suficiente para encerrar aquilo da forma mais rápida possível. Dante grunhiu, dando alguns passos para trás. Seus olhos continuavam arregalado.
Uma quantidade significativa de sangue escorrera de sua boca e manchara todos os seus dentes.
— Desgraçada... — gemeu.
— O lobo que rasteja está morto — disse a ele. Dante se escorou na grade da poupa, relutando para continuar de pé. O vento assobiava em nossos ouvidos. Meggie observava com atenção.
— DANTE! — gritou Feen, saindo da cabine ao nosso encontro, junto com Brok — Que diabos está acontecendo aqui?!! — exclamou o rapaz surpreso ao se aproximar.
— Seu namorado matou toda a tripulação e ia me matar também — respondi retomando o fôlego.
— Ela... foi ela que... matou todos... — Mentiu Dante apontando para mim — Olhe o que ela fez....
Feen encarava Dante, piedosamente. Olhava com aflição para o ferro cravado em seu estômago.
— Nunca foi parte do plano incluir meus amigos... não foi? — questionou Feen para o rapaz — cedo ou tarde você iria tentar mata-los... não ia?
— Feen... eu... sinto muito... — sussurrou Dante, segurando firme na grade para não cair.
— Não se aproxime dele, Feen — adverti.
— Quero a verdade. FALE A VERDADE PARA MIM! — exclamou o rapaz ignorando-me — VOCÊ IA MATAR MEUS AMIGOS DESDE O COMEÇO? SEU DESGRAÇADO! — Dante olhava para ele com tristeza. Algumas lágrimas caíram de seu rosto pálido enquanto Feen, descontrolado, bradava — Tinha certeza de que estava diferente, mas sua obsessão continua. Você derramou mais sangue e nunca vai parar de fazer isso.
— Sinto muito, meu amor...
— Eu também sinto — repondeu quase no mesmo instante — sinto vergonha por ter me relacionado com você. Essa historia acaba aqui — Dante soluçava. Estava aos prantos. Gemia de dor ao mesmo tempo que chorava. O sangue em sua boca continuava a escorrer junto de suas lágrimas.
— Se eu não posso ter você... ninguém pode — concluiu Dante, sessando o choro e trocando de expressão. Um ar sério, de olhar sombrio.
Ninguém pode.
Ninguém pode.
Ninguém pode.
Esta frase ecoou pela minha cabeça. Viajou pelos meus neurônios, dançou por minhas linhas de raciocínio e invadiu meus sentidos. O amor é interpretado por diversas formas. Algumas são diferentes do que estamos acostumados, outras são tão improváveis que mau deciframos. Amor é amor. Vamos sentir dor, vamos ficar tristes, vamos chorar, mas também estaremos felizes por ter sentido e vivido.
Ninguém pode.
Ninguém pode.
Em um gesto imprevisto, Dante pegou, com suas duas mãos, a cintura de Feen e o puxou para perto dele, onde a barra de ferro que o perfurara também perfurou o rapaz, fazendo com que seus óculos saltassem de seu rosto para o chão e nenhuma palavra a mais saísse de sua boca. Dante abraçava-o com força. Gritavam de dor, enquanto o ferro fincava suas entranhas. Ambos caíram. Um em cima do outro, gravemente feridos. Feen não esboçou reação. Faltava-lhe ar. Ele deu alguns grunhidos abafados antes de parar de se mexer e Dante permaneceu em silencio até seu ultimo suspiro.
Ninguém pode.
Ninguém pode.
Ninguém pode.
Se eu não posso ter você, ninguém pode.
Isso é amor.
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