ATO 33
O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte.
Nas aulas de educação física eu era implacável. Tanto no pega-pega quanto na queimada. A professora chamava-me de papa-léguas. Alcançava qualquer objetivo que impunham, tanto numa corrida em volta da quadra, quanto a uma disputa de voleibol. Agilidade. Determinação. A brincadeira era o principal fator que me deixava disposta. O lado lamentável é que a maior parte das coisas da escola, permanecem lá quando partimos.
Na atual situação. A determinação em continuar correndo, não por brincadeira, mas pela própria vida, fazia com que toda a experiência que tive em aula e nas diversas disputas por classes, valessem a pena agora. Os prédios em nossa volta entortavam aos poucos como se derretessem. Uma chuva de concreto caía ao nosso redor e o tempo não era favorável. O tempo arrastava nossas esperanças junto com aquele grande desastre. Rachaduras colossais estendiam-se pela estrada e corriam conosco.
A ilha estava afundando.
Edgar não era tão ágil quanto eu, porém não ficava muito atrás. Toda energia que pegara de seus frascos fora usada para este momento. Feen e Dante seguiram caminho oposto, indo em busca do único helicóptero que possuíam nas instalações. O objetivo era resgatar Brok e Meggie e voltar a tempo para a fuga. Eu mal respirava, mas pouco importava a falta que o ar fazia e nem o turbilhão de pensamentos que atingia-me, meus dois amigos precisavam de mim. Os concretos explodiam no chão em pedaços perigosos e tínhamos que desviar para não sermos brutalmente prensados por eles.
A caminhada até o apartamento de Edgar não era longa. Ficava próximo ao laboratório, porém na outra extremidade da avenida. Um caminho reto, mas mortal. Aproximando do edifício avistamos Meggie próxima da entrada, segurando a mão de Brok. Estavam perplexos. Um alívio imenso me dominou. Ainda tínhamos tempo.
— MEGGIE! CORRAM PARA CÁ! AGORA! — Gritei para ela — A garota acenou com a cabeça e ambos vieram até nós. No segundo seguinte, o grande prédio que nos alojara por dias, desmoronara atrás deles. Meggie não olhara para trás. Apenas seguia linha reta ao meu encontro. A construção chegou ao chão, criando uma vasta fumaça cinzenta que se espalhara por todos os lados, como uma bomba nuclear. O impacto da colisão derrubou Brok que ao mesmo tempo levou Meggie com ele. Ambos caíram de barriga para baixo e colocaram as mãos sobre suas cabeças, protegendo-as. O cenário, além de trêmulo agora estava nebuloso.
Fomos engolidos pela forte nevoa, impedindo que víssemos uma palma além.
Lacrimejamos e tossimos. Edgar se esforçava para avista-los mas sem resultado. Gritamos por seus nomes mas tudo que ouvíamos era o barulho de outras construções ruindo. Podíamos ser esmagados a qualquer momento. A fumaça de entulhos entrava em meus pulmões e fechava minhas narinas. As cordas vocais entupiam e minha voz pigarreava conforme eu gritava. Lágrimas escorriam em meu rosto devido a irritação dos olhos e pequenos pedaços de pedras voavam até nós com grosseria. A morte rondava-nos mais uma vez.
— BROK! MEGGIE! — Gritei mais alto, caminhando para frente ao mesmo tempo que protegia os olhos com o braço.
— ESTAMOS AQUI! — Gritou Brok de algum lugar próximo. Sua voz não parecia distante. Forcei a visão um pouco mais a frente e uma sombra grande surgira ali, no meio do caos. Não era a silhueta de um humano. A não ser que este humano tivesse dois metros de altura e andasse de quatro. Quando a sombra deixou de ser sombra e a criatura se aproximara o suficiente para ser identificada, revi um velho amigo. O tigre guaxinim se aproximara e em suas costas estavam meus amigos.
— SUBA LOGO! — Ordenou Meggie, segurando forte os pelos da criatura. Antes de partir, olhei para trás, tentando avistar Edgar. O velho apareceu caminhando até nós. Parecia mais tranquilo. Notei um pequeno sorriso.
— Está aí uma equipe em tanto — disse olhando para o tigre.
— Não temos tempo, Edgar! Precisamos ir agora!
— Sim, vocês precisam — Edgar permanecia parado, sorrindo — Não desmereça meu treinamento, Pandora. Viva e termine o que comecei.
— Você não vai vir?! — questionei intrigada.
— Ir para onde exatamente? Já vivi o resto que tinha que viver. Esta feito. — Edgar acenou com a cabeça para o tigre e o mesmo abaixou-se para ficar rente a mim. Agarrei em sua pelagem e subi. Olhei para Edgar uma ultima vez. Eu deveria agradecer por tudo? Não sei até que ponto eu poderia fazer aquilo. Talvez, se não fosse por sua criação perigosa, nada disto estaria ocorrendo. Não haveriam mortes incalculáveis e nem percas irrefreáveis. Edgar poderia estar morto a muito tempo, mas sua colheita já estava mais que farta. Ele plantou, semeou e encerrou sua jornada amarga. Deixar pessoas para a morte, sabendo que poderia salva-las é a pior das sensações, mas o importante agora, era se importar com aqueles que querem viver.
— Lembre-se, se realmente quer superar Pompoo, em nenhum momento seja igual a ela — Disse o senhor para mim, piscando seu olho esquerdo — Vá e não olhem para trás — ordenou ele.
— Sou cego, de qualquer forma — respondeu Brok. Acenei positivamente para Edgar em um gesto de respeito. O tigre disparou dali e todos nós agarramos um no outro para não cairmos. Suas quatro patas corriam mais do que todos juntos, perfurando a camada de névoa e nos trazendo de volta para o apocalipse. Notamos que a avenida não estava mais reta. Encontrava-se levemente inclinada, junto com todo o resto. Pilhas de entulhos agora rolavam ladeira abaixo. As poucas construções ao redor desmanchavam-se por completo. As rachaduras no asfalto aumentaram. O tigre pulava os grandes buracos fazendo nossos corpos chacoalharem. Era inevitável pensar o quanto devia doer ter os pelos de seu corpo puxados por um bando de humanos medrosos como nós.
O tigre mais uma vez salvara nossas vidas. A questão era, quantas vezes precisaremos ser salvos até realmente estarmos salvos?
Tudo estava acontecendo da forma que deveria acontecer. Caso eu não tivesse capturado o tigre para entregar de presente para Pompoo em minha primeira disputa, eu não o teria como aliado na segunda disputa e talvez, agora, não estaríamos em cima dele. Estaríamos mortos antes mesmo de chegar na cidade.
O real só existe quando acreditamos nele. Se o real for real mas ignorado, ele se anula em nossa cabeça. Por isso, agora, não questiono mais os acontecimentos que moldam minha existência, apenas acredito e aceito. O tigre é real. Minha vingança é real. Meus amigos são reais e o mundo em minha volta caminhava para as profundezas de uma escuridão real. Onde fica toda a fantasia em um mundo realista? Escondida? Ou no mesmo plano que a realidade? Se não morrêssemos esmagados por alguma pedra gigante, seriamos arrastados para o oceano. É real o suficiente? Ou fantasioso o suficiente? Depende do que iremos acreditar, mas no fim, o resultado será o mesmo.
Chegamos no laboratório.
O portão principal estava aberto. O tigre passou por ali e atravessou os portões da entrada. Ele pisava nos cadáveres de seguranças que foram brutalmente esmagados. Passamos por diversos setores diferentes que despencavam rochas de todos os tamanhos. A chuva de pedras aumentava. Passamos pela ala hospitalar, por uma sala de estar destruída, onde geralmente os cientistas repousavam, passamos pela cozinha, que possuía um forte cheiro de café passado, onde pratos estilhaçavam-se no chão ao lado de talheres e outros itens identificáveis e pela saída ao fim daqueles cômodos. A frágil porta de madeira que nos separava do restante do local, fora aberta pelo tigre com uma cabeçada. Segundos depois de sairmos o laboratório também ruíra.
Estávamos em uma área aberta, espaçosa. Uma pequena pista de aterrissagem. No fim da pista, além dos terrenos da ilha, um helicóptero sobrevoava, com uma escada pendurada. O tempo encurtara. As rachaduras deformaram a pista e o chão começara a afundar. Em nenhum momento o tigre parara de correr. Era ágil e esperto, desviando de todos os obstáculos que apareciam. Seguramos firme em sua pelagem. Só notei o que ele ia fazer quando aconteceu de fato.
A criatura saltou em direção ao helicóptero e a partir dali tudo parou em minha volta.
O resto de chão desmanchou-se. A vasta ilha, estava mais inclinada do que antes, como um navio naufragando, e nós estávamos parados no ar. Abaixo, o gélido oceano, acima o céu azul claro, intenso e a frente, Feen dentro do veículo, com uma expressão apavorada e Dante como piloto. Eu estava na dianteira, Meggie no meio e Brok atrás.
— SOLTEM O TIGRE! — Gritei a eles — a criatura deu um impulso com seu corpo para a frente, arremessando-nos para as escadas do helicóptero. Fomos jogados a poucos metros. Segurava a mão de Meggie, que segurava a de Brok. Os três agarraram as escadas no mesmo instante, mas Brok não conseguira se firmar direito, escorregando e ficando pendurado. O veículo inclinou para baixo devido ao peso que formávamos. Brok agarrara o ultimo degrau da escadaria, enquanto o tigre caía penhasco abaixo, sacrificando-se por nós.
Logo fora engolido pelo mar.
— BROK!!!! — gritou Feen lá de cima.
— AGUENTE FIRME BROK! — o encorajei.
— SEGURE MINHA MÃO! — ordenou Meggie para ele. O rapaz, com seu outro braço, estendeu para cima, dando a brecha para Meggie pega-lo, depois segurei firme o braço de Meggie para somar a força e juntas puxamos Brok, fazendo-o se agarrar nos demais degraus. O vento quase impedia que víssemos toda a situação com clareza. Apenas subimos a escadaria de corda e com a ajuda de Feen, entramos na parte de trás do helicóptero sã e salvos. Feen abraçou Brok como se realmente o tivesse perdido. Ambos choraram ao se reencontrarem. Eu abraçava Meggie e a cobria com meus braços, acalmando-a de seus soluços infindáveis. Todos estávamos muito abalados, em prantos.
— Eu... não... sei o que faria sem... vocês, pessoal... — respondeu Brok, gaguejando em cada palavra.
Olhei para a vista lá fora que se distanciava aos poucos. A ilha ia sendo engolida cada vez mais. Algumas explosões vinham do laboratório de Audrey e ao fundo o resto da cidade já não existia mais. O grande véu azul, cobria cada canto daquele terreno. Observávamos em silencio, com as lagrimas frias escorrendo em cada um dos rostos. A realidade e a fantasia nunca estiveram tão juntas como naquele momento.
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