ATO 24
Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.
Quando a manha chegou, o sol voltara a nos castigar.
Abastecemos as garrafas com a água da própria chuva. Era o que tínhamos.
Estávamos construindo um laço que fortalecia a ambição de todos ali: Manterem-se vivos. Desta vez nos preparamos como uma equipe e não como um indivíduo. Pensando desta forma, traçamos um plano mais cauteloso do que chamar atenção no meio da avenida principal de uma cidade cercada por monstros. Caminhamos em ruas estreitas, onde havia mais arvores para nos camuflar, sem perder de vista o prédio onde nosso possível salvador encontrava-se.
— Como você acha que isso é possível? — questionei enquanto conversávamos sobre a existência misteriosa de tais monstros.
— Não sei, isso eu realmente não sei. Me surpreende o fato disto nunca ter virado noticiário. Se Dante estiver falando a verdade, o governo acoberta os experimentos da MindPlace, eventualmente acoberta tudo nesta ilha. Não consigo achar um motivo plausível e nem uma explicação palpável para essa situação.
— A impressão que tenho é que estamos em uma perigosa disputa por classes, como nos velhos tempos.
— Antes fosse. Aqui, se morrermos, continuaremos mortos — respondeu o rapaz franzindo a sobrancelha.
— Disputa por classes? Como nas histórias que Joice nos contava?
— Exatamente como Joice contava, Meggie, ela só omitia a parte em que as crianças participantes morriam brutalmente de diversas formas, por diversos monstros diferentes e...
— Pan, ela não é obrigada a escutar isso — advertiu Brok.
— Me desculpe. Bom, a impressão é que estamos em uma dessas disputas.
— Ei! Tem uma criança no final daquela viela! — Apontou Meggie para um lugar estreito e cumprido. Quando olhei, realmente alguma coisa se moveu e saiu de nossa vista.
— São... caminhantes? — Perguntou Brok apreensivo.
— Se fosse, avançaria na gente — concluí — Meggie!! Volte aqui! — adverti em um tom baixo e irritado — mas era tarde, a garota disparara no local onde avistara o indivíduo. Fomos obrigados a segui-la para descobrir quem poderia ser, mesmo que isto nos tirasse do trajeto principal.
A trilha nos levava para mais distante do centro. Entramos em um bairro sem saída, completamente dominado por gramas altas que não pertenciam mais ao asfalto. Era um lugar amplo, repleto de entulhos e arvores tão secas que seus troncos podiam ceder com uma brisa. Os prédios não eram destaques aqui, e sim, pilhas de manequins. Pedaços de cabeça, pernas e troncos, estavam espalhadas por toda parte. O plástico dos bonecos encontrava-se em estado deplorável. Alguns deles serviam de casa para insetos e caramujos.
Além dos entulhos, a rua terminava em uma construção grande e bem elaborada. Quando nos aproximamos, percebemos que ali era um teatro. Tão velho quanto seus próprios manequins sem rostos. Ao lado, havia uma loja de brinquedos com sua vitrine intacta, repleto de ursos e bonecas. Apesar de sujas, estavam mais apresentáveis do que as demais coisas.
— Para onde a criança foi, Meggie? — questionei.
A garota apontou para o teatro.
— Senti vibrações vindas dali — Brok apontou para o mesmo lugar.
— Não me impressionaria se existisse mais um recanto de crianças perdidas nessa ilha — disse à Brok que de vez em quando gemia de dor conforme pisava em pedaços de plásticos estilhaçados no chão. Mesmo ciente do perigo que corria, o rapaz permanecia descalço para conseguir sentir as movimentações ao redor.
— Mas... por que raios existe um teatro aqui? — indagou o rapaz.
— Me parece mais um local para reuniões onde cientistas apresentam suas pesquisas. Faz mais sentido pensar assim — A porta de entrada do teatro estava fechada, mas destrancada — vocês dois fiquem aqui. Eu vou entrar sozinha. Se alguma coisa acontecer e eu não voltar em dez minutos, vocês correm.
— Não me parece um bom plano — questionou Brok.
— E desde quando você entende de bons planos? — debochei. O rapaz mostrou o dedo do meio, porém concordou.
Entrei.
O local era enorme, dividido por duas grandes fileiras de cadeiras velhas, dando espaço para o corredor do centro que dava para um palco. Grandes cortinas tapavam as janelas do lugar, obstruindo a luz. Apenas pequenos feixes entravam. Antes de poder analisar melhor, a criança saiu de uma das fileiras de cadeiras e correu sentido ao palco.
— Ei! Espere! — corri em sua direção, e ela parou. Ficou imóvel, de costas para mim no final do corredor — O que está fazendo aqui sozinha? Tem mais alguém com você? — Me aproximei devagar para não assusta-la, mas quem estava mesmo assustada, era eu. Ao pegar em seu ombro para vira-la, notei que aquilo não era uma criança.
Uma criatura sem rosto, com corpo inteiramente de plástico duro e branco virara sua cabeça para mim no instante em que eu a tocara. Dei um passo para trás, assustada e sem entender o que estava acontecendo. As coisas só começaram a fazer sentindo, quando, acima do palco, entre as cortinas do palanque, uma criatura saltava dali para o chão, com oito patas afiadíssimas e um corpo de lagosta. Suas duas garras eram feitas com pernas de manequins e ela possuía três cabeças. Duas eram máscaras de teatro, uma sorrindo e a outra triste, a do meio era de boneca, colocada ali de ponta cabeça.
— Mas que inferno...! — dei mais alguns passos para trás, a criança de boneco se desmanchara, me deixando a sós com o monstro.
Já vi aquela criatura antes, e da última vez, ela me matou.
Pouco me importei com o que ia acontecer, apenas disparei para a saída do local. No entanto, estava fácil demais. A criatura deu um salto considerável do palco até a outra extremidade dali, tapando a saída com seu enorme corpo.
Com uma de suas garras, esticou para frente e tentou me pegar. Desviei jogando meu corpo para o lado, em um espaço entre as cadeiras. Levantei rapidamente, subi em uma delas e saltei para o corredor central para o mais distante da criatura. A mesma começou a andar com suas patas, destruindo os assentos por onde passava, usava as garras para jogá-los longe, em fortes golpes. Eu não podia parar de correr desta vez. Subi no palco e de lá comecei a ver várias coisas no chão que poderiam servir para algo, como por exemplo, um pedaço de ferro, caído do teto velho.
Antes que o bicho pulasse para o palco, peguei o ferro com as mãos firmes, e o arremessei como um arpão, atingindo uma de suas cabeças, rachando a máscara de teatro sorridente. A criatura não parecia ter se abalado e jogou seu corpo para cima do palco, destruindo todo o assoalho de madeira que compunha o piso. O tremor me derrubou. Fui pega por uma de suas garras e arremessada dali para a parede.
Me senti como uma boneca de trapos, batendo forte as costas no concreto e rasgando uma das cortinas que tapava a janela. A queda fez puxar o tecido para baixo deixando a iluminação entrar. A dor quase não fora sentida devido ao medo. Quando me levantei, vi a criatura se afugentando para longe da claridade imposta.
— Então é disso que tem medo, desgraçado? — abaixei, camuflando-me pelas cadeiras que ainda estavam inteiras e fui para a próxima cortina, poucos metros dali. O monstro, furioso, começara a pegar vários entulhos que haviam no pátio e jogar em minha direção. Ele não conseguia me enxergar abaixada. Pedaços de pedras e ferros voavam de todas os lados, batiam nas paredes, estilhaçando-se em mais pedaços perigosos. Alguns acertavam minhas costas, já machucada pelo impacto. Eu devia resistir, não poderia deixar Brok e Meggie à deriva. Era meu dever protege-los. Puxei a próxima cortina com força e mais uma vez o clarão veio à tona. Faltavam mais duas do outro lado do pátio para tudo ali ser tomado pela luz.
A criatura, impaciente saiu do palco, desviando dos grandes feixes e vindo ao meu encontro. Suas patas faziam tac tac tac, bem rápido, como uma tarântula gigante. Ela começou a destruir as cadeiras em rápidos golpes para limpar a visão. Eu me arrastava desesperada, distanciando-me. Ouvia o barulho das patas se aproximarem, meu coração saltava da boca. E então levantei. Estava perto da saída. Olhei para o monstro uma última vez, fazendo-o me avistar. Sedento por carne fresca, ou só matava só por prazer? Virei as costas para ele, a criatura descontrolada disparara em minha direção, atravessando rapidamente os feixes de luz. Corri para fora do teatro quase derrubando a porta de entrada, avistei Brok e Meggie e tudo o que pude dizer para eles era: CORRAM!
Olhei para trás enquanto fugíamos a tempo de ver toda a parede de frente do teatro sendo destruída e atravessada pela criatura, que ficara totalmente visível para nós. Metade da construção fora para o chão com aquela investida. Mas no momento que o monstro tocou o solo, ele começara a rugir e se contorcer no chão. A claridade de fato o machucava, seu corpo começara a sair um tipo de vapor, como se queimasse por dentro. Meggie e Brok pararam para entender o ocorrido, assustados.
— Mas que porra aconteceu lá dentro?! — perguntou ele surpreso.
— Se encontrarmos mais uma criança perdida, apenas deixe ela perdida, por favor — disse a Meggie, puxando os dois e retomando o caminho para a cidade. O monstro parara de se mover e espatifava-se no chão, morto. Desta vez, assim como todas as outras, fora por pouco.
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