ATO 1
Por mais perfeita que seja minha visão, enxergo apenas escuridão
Londres, Janeiro de 2010
Quando um amigo se torna um estranho na sua vida, significa que algo de muito errado aconteceu nesse relacionamento, ou apenas o tempo os separou por motivos egoístas. Ainda assim, ele existe. O amigo estranho está por aí e quando você o revê, talvez em um ponto de ônibus ou em uma estação de trem, acaba reconhecendo os contornos de sua face, o olhar intimidador, os cabelos que reluziam um forte reflexo e a expressão amargurada de um passado que lhe castigara.
Que estranho esse amigo estranho.
Os raios de sol surgiam timidamente no escritório do Dr. Feen, seu ar-condicionado já não estava mais dando conta do clima gelado. Era um dia incerto, com sol e frio lado a lado. Um feixe de luz iluminava nossos semblantes sérios, nossos olhares em conjunto, paralisados no tempo, repletos de significados.
- Petúnia...
- Não, apenas Feen. Este nome não me é habituado a muito tempo, assim como Srta. Moon também não é para você - sorriu.
Peguei em sua mão direita e o puxei para junto de mim, abraçando-o. Meus olhos se fecharam enquanto escorriam lagrimas tímidas, que caíam em seu paletó bem passado, resultado do sentimento mais puro que algum dia eu já conseguira demonstrar.
Que estranha essa sensação.
Ver alguém que já não esperava-se mais ver. Aquela presença familiar de um amigo que não esperava-se mais sentir. Meu coração incomodava o resto do corpo, pulsando em batidas frenéticas. Uma parte de mim, daquele vazio, havia sido preenchido por alguns minutos.
- Como...? Como sobreviveu? Você me encontrou de que forma? Deus, que loucura... - passei as mãos sobre a testa, jogando os cabelos para trás. Comecei a andar pelo escritório sem um trajeto especifico, tentando responder minhas próprias perguntas. Olhava Dr. Feen com outros olhos desde então. O cheiro de lavanda do lugar de fato era o mesmo que Petúnia usava em seu dia-a-dia. O olhar penetrante, os cabelos loiros, curtos, sempre foram dela.
- Temos feridas profundas, Pandora. Incicatrizáveis, mas é graças a isto que somos o que somos hoje, não podemos cura-las, apenas oculta-las. Foi difícil encontra-la, admito. Procurei em muitos orfanatos, pesquisei em diversas famílias que já fizeram adoção. Mas nunca achei nada sobre você. Chegou uma hora que acabei desistindo. No entanto, anos depois o destino nos uniu em um supermercado. Você me atendeu com arrogância, cansada de estar ali fazendo as mesmas coisas. Sem olhar para mim, pegou minhas bebidas, colocou em uma sacola e chamou o próximo. "Obrigado, Pandora" Foi a ultima coisa que eu te disse naquele momento e não tive uma resposta.
- Sabia que eu havia sobrevivido? Como podia ter tanta certeza disso? - tropecei mais perguntas.
- Há dezesseis anos atrás, no patio principal do Insanity Asylum, eu te vi passando entre os corpos das crianças, seguindo em direção reta para a saída do lugar. Você se distanciava cada vez mais, não pude gritar o seu nome, meu corpo estava completamente debilitado devido aos entulhos que me esmagavam. Mas sobrevivi e a partir daí, prometi que minha incompetência não me atrapalharia de novo. E aqui estamos - os olhos verdes do rapaz se destacavam no esplendor.
- Feen... não consigo me expressar direito. É estranho ter ficado neste escritório por dois dias, contando algo que havia sido apagado da minha cabeça e descobrir que alguém daquele mesmo lugar, que passou pelas mesmas coisas que passei, esteja vivo também... não sei o que pensar... - e mais lagrimas escorreram. Minha cabeça latejava.
- Se acalme, Pandora, foi complicado ter que me reservar e escutar você me contando sobre Lola, sobre mim, sobre o quanto se decepcionou quando me afastei de você. Ambos os lados estão frágeis - ele enxugou meu rosto com seu dedo indicador e sorriu mais uma vez - Não é possível chorar e pensar ao mesmo tempo, cada pensamento absorve uma lágrima.
- Sabe o que é engraçado? Em nenhum instante estranhei o fato de um psicologo agir de formas egoístas quanto você agiu. Uma consulta que mais parecia um questionário do que uma solução de conflitos. Você foi suspeito do começo ao fim, propositalmente, acredito. Olhando agora, para tudo o que você conquistou, fico muito feliz pelo sucesso - elogiei com um sorriso cansado - soube lidar seu trauma no orfanato de uma forma muito inteligente.
- Ajudar as pessoas a encontrar a solução de seus problemas foi um modo que tive para solucionar os meus e não se engane quanto ao meu trabalho, logo vou encontrar a solução dos seus também. Sendo quem você é, tive que agir de uma forma diferente, obviamente - Feen se perdeu na vista la fora. Seu olhar acompanhava alguns pássaros que sobrevoavam assustados os postes da rua movimentada - o sucesso como você diz, não veio sozinho e por acaso. Tive ajuda do meu irmão mais novo. Ele foi meu guia até aqui.
- Irmão? Você tinha parentes vivos fora do Insanity Asylum?
Naquele instante a porta do escritório se abriu. Uma moça morena e corpulenta apareceu na entrada segurando uma paleta cheia de folhas com anotações. Ela parou e analisou a situação em que estávamos, depois olhou para sua papelada demonstrando um certo desconforto.
- Doutor, seu paciente Oliver já está aqui na sala de espera - dizia ela desviando discretamente seu olhar para mim.
- Pois bem, mande-o subir, já irei atende-lo - o rapaz foi de encontro para sua mesa e lá abriu uma gaveta na parte de baixo, pescando dali uma caneta e um papel em branco - Vou te dar meu endereço pessoal para termos mais tempo. É um apartamento aqui perto de fácil acesso. Creio que existem muitos assuntos a serem discutidos.
- Deixei o dono do lugar onde moro cuidando da minha tia, preciso voltar logo antes que ela de problemas para ele - me adverti olhando para o relógio da parede.
- Ambos deixamos o tempo nos passar a perna. Vamos retomar a rotina e te vejo em breve, certo? - Feen terminou de escrever o endereço, esticou o braço para mim entregando-me as anotações. Acenei com a cabeça, incerta de que o veria novamente. Talvez eu precisasse de um tempo para digerir tudo o que acontecera nesses últimos dias - Apenas mais uma coisa. Tenho uma lição de casa para você.
- Lição de casa? - repeti curiosa.
- Separe um dia para ir a algum lugar que te transmita paz, um local que goste e que te faça bem. Em nosso próximo encontro, você descreverá os sentimentos que teve ao visita-lo.
- Certo - concordei pegando minha bolsa e colocando o papel anotado em meu bolso esquerdo. Olhei mais uma vez para o rapaz e o abracei. Abracei o mais forte que pude, desta vez, bloqueando a vontade de desabar em lagrimas.
- É bom ter você de volta, Pan.
Contas para pagar, desemprego e uma senhora doente. São os fatos que me aprisionam na minha rotina e não me deixam pensar em algo além, ainda que esse algo além seja Petúnia, que agora era doutor Feen e que agora me convidava para sua casa, conversar sobre assuntos que talvez eu não vá gostar. Afinal das contas, Feen ou Petúnia, não era um amigo estranho, era um estranho amigo.
Um amigo que sempre esteve ali para ser redescoberto.
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