ATO 40 (Final)
Os caminhos que trilhamos sempre serão individuais
Dizem que os mais céticos enxergam a morte da seguinte forma: Você deixa de existir, de sentir e de pensar. Nosso ser desaparece para sempre. No entanto, eu enxergava escuridão. Ela existia, mas de alguma forma eu ainda conseguia sentir e pensar. Talvez eu havia sido jogada no limbo junto com meus sentimentos e permanecido ali, pela eternidade.
A paz no limbo era absoluta. Não se escutava nada a não ser meus próprios sussurros. Porque eu ainda sentia alguma coisa? E não era apenas um sentimento, eram vários. Senti minhas costas doerem e minha cabeça latejar de dor. Meu olfato e audição também voltaram a funcionar. Aos poucos retomei tudo o que era meu por direito, inclusive o sofrimento.
Abri os olhos e a luz invadiu minha face. As coisas fizeram mais sentido quando percebi estar sendo arrastada. Arrastada pelos cabelos por uma mão suja, com sangue seco envolta de seus dedos. A dor aumentara conforme eu ia sendo puxada.
Me encontrava em uma escada de pedra, grande e extensa. Subia deitada, sustentada por meus cabelos que faziam meu couro cabeludo latejar. Minhas costas pareciam que iam se quebrar a qualquer instante e a pele de meu corpo, rasgar brutalmente. Olhei para o lado e um pedaço de pano cor vinho seguia-me. Parte de um enorme vestido com bordas florais.
Pompoo arrastava-me apenas com sua mão direita, olhando para frente. Até que pôr fim a claridade foi absoluta e a extensa escada chegara ao fim. Meus olhos ficaram doloridos por alguns segundos, mas passou quando a visão tomou forma de novo, mostrando vastas nuvens no céu azul.
— Agora estamos quites — dizia ela de costas, olhando para uma paisagem além. Suas vestes mexiam-se para o lado, junto com o vento que batia em nós. Seus cabelos seguiam o ritmo de seu vestido. A diretora se virou para mim e me encarou com seriedade — Perdeu sua cachorra e eu um irmão. Rumpel morreu a partir do momento em que depositou esperanças em você. Isto sempre será a sua culpa.
O vento assoviava em nossos ouvidos, os cabelos alaranjados de Pompoo dançavam no ar, ofuscando algumas vezes os raios de sol. Por mais que meu cérebro insistisse para que eu revidasse, nenhuma palavra saía. Me foi permitida apenas a visão.
— Entenda uma coisa criança, não se consegue realizar uma vingança sem saber o que está fazendo — Pompoo me ergueu pela camiseta, até meu corpo ficar completamente de pé. Nesta hora consegui ver o local com mais clareza. Estávamos na torre do orfanato. O lugar era semelhante a um terraço de prédio, com grades curtas de concreto que cercava os quatro cantos.
Á frente, um lindo horizonte, com montanhas bem desenhadas e esverdeadas, junto de arvores de diversos tamanhos. Pompoo me puxou pelas vestes até nos aproximarmos da grade.
Eu a fitava com um olhar cansado, suplicando para que terminasse logo com isso. Meu corpo inteiro bradava de dor, minhas pálpebras só queriam descansar por mais tempo, talvez para sempre.
O horizonte me deixou tranquila, preparada para a minha partida. Fechei os olhos imaginando algum dia estar ali, no meio daquelas montanhas, onde o sol visitava com frequência, aquecendo a grama, enquanto borboletas e outros insetos bonitos apareciam. Dei um leve sorriso.
— A liberdade lhe cai bem, Pandora — continuou Pompoo, de frente para mim ao me deixar de costas para o precipício. Seu rosto permanecia intacto, sua vestimenta, sem nenhum arranhão.
Naquele momento, escutei um forte som que ia se intensificando. Pompoo ergueu a cabeça e olhou para trás. Ao fundo, um helicóptero sobrevoava, vindo direto para torre. O vento que as hélices faziam quase moveram nossos corpos do lugar. Pompoo não parecia surpresa com a chegada do veículo. Aquilo não foi o suficiente para ela desviar a atenção de mim, voltara a fitar meus olhos e abriu mais um sorriso diabólico.
— Se quer me enfrentar algum dia, então enfrente-me como uma mulher e não como uma criança — concluiu firmando as mãos em minha camisa e me jogando para o centro da torre novamente. Bati as costas no chão.
Uma pessoa de capacete dentro do helicóptero acima, jogara uma escada para a direção de Pompoo, a mesma a apanhou e subiu os degraus.
Antes que alcançasse o fim da escada, o veículo partiu, levando-a sentido ao horizonte. Continuamos nos encarando das posições que estávamos, até ela virar uma silhueta junto com o helicóptero.
Senti minha vitória se distanciando, cada vez mais longe de ser alcançada. Com a força que negociei com meu corpo, levantei e caminhei aos tropeços para as escadas do terceiro andar.
Chegando no corredor de salas do segundo piso, uma trilha de cadáveres estavam amostra. Crianças de bruços, de barriga para cima e outras sentadas, escoradas na parede, ensanguentadas e feridas gravemente. A maioria das portas estavam destruídas e tombadas. A biblioteca havia sido aniquilada, com livros por todas as partes e prateleiras caídas em cima das mesinhas.
Os papeis alcançavam o corredor. A sala de quadros já não haviam mais telas inteiras. As tintas derramadas manchavam o piso com cores vivas, misturadas com sangue. Os lençóis e colchoes da ala hospitalar foram completamente torrados, sobrando apenas o ferro de cada cama. Fios embaralhados e monitores rachados mostravam que nem mesmo os drenadores se safaram. Na sala de cera, as estatuas dos irmãos Corrigan jaziam pela metade, sendo que as outras partes se despedaçaram no chão.
Desci para o térreo, tropeçando em alguns buracos nos degraus, causados pela explosão. O estrago era ainda maior naquela parte. Vi pilhas de entulhos por todas as direções, misturadas com os corpos soterrados de alguns irrecuperáveis que não consegui identificar. Procurei não olhar diretamente para os cadáveres, mas era impossível não notar Lara, Alisson e Clare jogados em meio as tralhas, próximos um do outro, com as vestes rasgadas e partes de suas faces queimadas.
Era impossível não ver em um canto, o corpo de Spancer perto do de Rumpel, que por nota estava com o braço perto das mãos do zelador, ambos de olhos fechados, sem expressões, cobertos pela metade por pedaços de pedra e madeira. Era impossível não notar no centro do pátio, o corpo de Patrick, sem sua perna esquerda, deitado de costas, com seus cabelos compridos e escuros emaranhados, cobrindo seu rosto.
Minhas pernas tremiam, junto com meu maxilar. Meus olhos voltaram a doer, mas desta vez por expulsarem lagrimas, que caíam na fuligem e marcava o piso que não se via mais a real cor. Não consegui parar em nenhum momento. Continuei andando em direção reta, segurando meu ombro, mancando a perna direita.
As luzes eram concentradas em algumas partes do pátio devido as janelas em cima, abertas após anos aprisionadas por tabuas. As luzes desciam como cortinas reluzentes pelo local. A poeira pairava entre elas, brilhando intensamente. Deixei de lado qualquer outra visão, me concentrei apenas adiante.
A porta de mogno já não estava mais ali, dando passagem para o corredor de quadros, onde o carpete verde agora era cinza e cheio de estilhaços de madeiras e pedregulhos. Os quadros das crianças continham marcas e rachaduras irreparáveis, todas caídas e esparramadas pelo chão.
Passei por ali e pelo escritório de Pompoo que ficava logo ao fim do corredor. Com a mão que não estava debilitada, empurrei a porta que dava para a recepção. O balcão, as poltronas e a estante de livros continuavam no mesmo lugar, tudo permanecia intacto. O impacto da bomba não chegara até aqui. Remoendo minhas memorias, a única vez em que vi esta área do orfanato foi em uma lembrança de meu drenador tempos atrás. Me imaginar pisando nesta pequena sala em livre e espontânea vontade me soava estranho.
Tudo isso poderia ser um grande sonho?
Estou acordada de verdade?
Eram perguntas que eu poderia responder a mim mesma. A última porta que me separava da liberdade estava logo a frente. Encostei em sua maçaneta e levemente a virei, abrindo a porta da entrada. Ao se abrirem no meio, a luz voltara a me acolher, esquentando meu rosto e todo o resto de meu corpo. As flores dos jardins continuavam tão belas quanto da primeira vez que as vi, antes de desmaiar em frente ao orfanato, abandonada por um motorista arrogante e maldoso.
Os dedos de meus pés latejavam dentro dos meus calçados. Retirei o tênis e o segurei. Ao descer as escadas da entrada, coloquei os pés no gramado macio e gélido. Me ajoelhei perante o sol, colocando as mãos no chão terroso. As lagrimas escorriam como cortinas de água. A leve brisa fazia com que meus curtos cabelos se afastassem de meu rosto, ondulando-se no ar.
Perdi tudo e todos nessa jornada. Ainda assim, estou aqui, fora do Insanity Asylum. Do jeito frio e amargo que eu havia planejado, antes de conhecer as crianças que pude chamar de amigos.
O passado e o presente eram o mesmo naquela hora. As lagrimas saíam tão apressadas quanto a dezesseis anos atrás. Dr. Feen não parecia aflito, muito menos surpreso. Ele se aproximou de mim e com um lenço que retirara de seu paletó, enxugou meu rosto delicadamente.
— Acabou. Não se preocupe em contar mais nada — reconfortou — Admito que exigi muito de você nesta consulta, desculpe.
— Não precisa de desculpas. Como eu te disse, estou colocando tudo o que me atormentava para fora, você ajudou bastante — respondi aos soluços.
O rapaz retirou seu óculos oval, repousando-o em sua gola.
— Olhe para mim, Pandora. O que você vê? — questionou aproximando seu rosto do meu, segurando meu ombro com suas duas mãos.
— Olhos... bonitos e expressivos... eu acho — chutei.
Dr. Feen demonstrara desaponto. Franziu a sobrancelha e apertou sua vista
— Tente de novo. Me enxergue da mesma forma que eu te enxergo
— Doutor... porque isso?
— Porque a partir de agora você deverá visualizar as coisas com mais clareza — sorriu ele, passando sua mão esquerda em meu rosto — Mesmo não me reconhecendo, fico feliz em te-la de volta, pancada.
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