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Capítulo Único

Olá pessoas! Demorei, não me orgulho, mas foi o que consegui fazer...
O aviso de hoje é que esta história contém trechos que descrevem sintomas de depressão, pensamentos suicidas e insinuação de auto mutilação, então se não estiver passando por um momento muito bom talvez vá querer deixar essa para outra hora.


Por incrível que pareça não inclui nenhuma letra de música dessa vez, mas usei as "Lucky" e "Winter Bird", ambas da Aurora, como inspiração para o texto, então fica a dica.


Boa leitura :)


***


Ajoelhada no gramado sob o céu nebuloso, Delphine cavou um buraco de diâmetro não muito grande, porém ligeiramente profundo. Inconscientemente adiou esse momento ao máximo, amparada pela desculpa de que a entrega do receptáculo seria atrasada por conta de sua mudança de endereço. A ideia de fazê-la se transmutar em uma árvore pareceu atrativa no momento da compra, mas agora já nem sequer se lembrava mais por qual espécie havia optado.

Quando abriu a urna de madeira com as mãos ainda sujas de terra, o embrulhar em seu estômago se fazia presente, assim como a persistente sensação de sufocamento. Mesmo assim, nada foi capaz de lhe escorrer dos olhos. As lágrimas já haviam secado há dias agora. Ou talvez fizesse mais sentido que estivessem congeladas, dado o frio em seu ser que cobertor ou casaco algum parecia ser capaz de remediar. A sensação era de que o calor havia abandonado completamente o corpo de Delphine desde aquele fatídico dia; como se o toque gélido da pele dela tivesse lhe transmitido algum tipo de doença... Uma doença cujo sintoma principal é a ausência de vida.

Olhando para aquele amontoado de cinzas era difícil de aceitar que isso era tudo o que havia lhe restado dela. Enquanto fazia a transferência para o vaso biodegradável, a loira ficou pensando que talvez tivesse sido melhor insistir mais para que Sally e Gene a tivessem levado com eles de volta para São Francisco. Ou quem sabe a derramado pelas águas calmas do Lago Ontario. Mas o fato é de que semanas atrás ela ainda não se sentia capaz de concluir aquela que seria despedida final.

Fechar o recipiente, depositar o substrato e afundar a semente nele devia ser a forma física de fazer seu cérebro entender que esse era o fim daquela história. Mesmo depois de depositar a urna dentro do furo no solo e cobri-la com terra, Delphine se manteve na mesma posição por minutos a fio, quieta, solitária, no fundo sem saber o que fazer ou para onde ir. Talvez tenha sido o barulho de um trovão a distância que de lhe despertou o instinto de autopreservação, instigando seu corpo a se recolher para dentro da casa. Ela bateu uma mão na outra para limpar o excesso de poeira antes de se levantar, e com consciência dispersa, nem sequer notou a coruja empoleirada na borda do telhado assistindo a toda sua miséria quando subiu os degraus até o deck.

Uma vez de pé no interior da residência, segura da chuva que anunciava despencar, foi difícil para ela se reconhecer em casa. Na verdade, naquele momento ela se perguntou se aquele lugar realmente poderia se tornar seu lar algum dia.

A mudança para Montreal se mostrou uma decisão inevitável a ser tomada. Com toda certeza os melhores anos de sua vida foram passados em Toronto e meses atrás teria conseguido expressar em palavras todo o amor que nutria pela cidade. Mas agora seria impossível para ela continuar vivendo lá sem Cosima. Cada rua, cada esquina daquela metrópole a fazia se lembrar morena. Se mudar para a cidade que colheu tão bem sua mãe foi a forma que ela encontrou de tentar virar a página.

No dia que sucedeu o funeral, umas das primeiras coisas que ela fez ao acordar foi responder ao e-mail do chefe – que expressava suas condolências junto de uma breve homenagem à Dra. Niehaus – com um pedido de desligamento da empresa; com efeito imediato. Se continuar em Toronto não era mais uma opção, quem dirá voltar diariamente para o laboratório onde juntas tiveram tantas conquistas importantes em suas carreiras. Certamente encontrar um novo e bom emprego em Montreal não seria um problema, mas sabia que não tinha condições de pensar nisso tão de pronto.

Ainda de pé próxima à porta da cozinha que dava acesso ao jardim dos fundos, fitando o que formava boa parte do pavimento térreo, Delphine se sentiu pequena e vulnerável. A casa era tão grande quanto parecia, ou estava tendo uma perspectiva distorcida da realidade?

A grande maioria das caixas com seus pertences que ainda não haviam sido desfeitas e que estavam espalhadas por todos os cantos só contribuíam para tornar o ambiente ainda mais incómodo e hostil. Do dia que visitou o imóvel pela primeira vez, se lembrava apenas de ter fechado negócio com o corretor antes mesmo de conferir as outras residências que ele tinha selecionado para ela, isso depois de ver os belos arbustos de rosas brancas que circundavam o terreno.

A passos vagarosos, Delphine caminhou até a pia para lavar as mãos sujas. Na sequência abriu a geladeira, retirando de lá uma caixa de pizza que disputava espaço apenas com algumas vasilhas de comida praticamente intocadas que Manon havia trago para ela nos últimos dias. Apesar do constante enjoo, seu estômago já estava começando a doer e considerando que o sol já devia estar se pondo por detrás das nuvens carregadas e que sua última refeição – um croissant amanhecido, também trazido pela mãe – havia sido de manhã, seus instintos médicos insistiam que ela deveria se forçar a mastigar alguma coisa.

Ao se sentar em uma das banquetas, deixar a caixa sobre o granito da ilha e se servir da última fatia de pizza que restava, ela se surpreendeu em encontrar o celular a poucos centímetros de distâncias.

Mais cedo naquele dia desligou o aparelho como uma tentativa de evitar arremessá-lo contra a parede. A tecnologia é realmente impressionante, mesmo em um estado de apatia tão severo como o em que se encontrava, as recorrentes notificações e ligações conseguiram o feito de fazê-la sentir alguma coisa: irritação.

Por mais que compreender ou se importar com os outros estivesse sendo algo difícil de se fazer, Delphine chegou à conclusão de que deveria pelo menos se esforçar um pouco para tranquilizar aqueles que tanto se preocupavam com ela. E como esperava, quando a tela ligou, ela se deparou com um número razoável de ligações perdidas, sobretudo de sua mãe, junto de algumas outras mensagens que já se acumulavam dos dias passados.

A primeira que resolveu abrir era também a mais antiga, um áudio de dois dias atrás gravado por Alison:

Oi Delphine, estou te mandando esse áudio porque tentei te ligar e você não atendeu. Como você não retornou imaginei que não devia estar querendo conversar, mas é que todos aqui já estamos preocupados. Não recebemos notícias suas desde que você foi para Montreal e realmente gostaríamos de saber como você está. Saber que ela não está mais entre nós é sem dúvidas muito doloroso, só Deus sabe o quanto eu tenho rezado para que ela esteja em um lugar melhor agora, mas acho que tudo pode ser mais leve se nos mantivermos unidos, certo? Compartilhar a dor pode ajudar a gente se recuperar melhor e mais rápido. Não se esqueça que estamos aqui, para tudo que você precisar, não importa a hora, ok? Por favor, me responda alguma coisa.

Reunindo uma energia que ela nem sabia que tinha, Delphine conseguiu digitar algumas palavras tentando se fazer parecer melhor do que realmente estava. Repetiu o feito para a mensagem de Siobhan, de seu irmão mais velho e também um antigo amigo de Cosima – que ficou sabendo da notícia a pouco tempo e gostaria de prestar seus sentimentos, mesmo que com atraso – fazendo com que apenas poucas mensagens continuassem não lidas, dentre elas uma de Felix.


FELIX: Hey loira, como você está? Tá todo mundo morrendo de preocupação com você, sabia disso? Até a Kira ficou chateada porque você não atendeu a ligação dela no domingo. Eu sei que as coisas não estão fáceis querida, mas se isolar desse jeito não vai te fazer bem algum. E é exatamente por isso que eu estou te comunicando; isso mesmo, não pedindo permissão, mas comunicando, que houve uma mudança na programação e minha exposição no Museu de Arte Moderna de Montreal passou na frente de Regina e eu vou chegar aí dentro de três dias. Vou me hospedar na sua casa você querendo ou não, e seria de bom tom se você fosse me buscar no aeroporto. Sabe que eu estou sempre aqui se precisar de alguém pra conversar. Te amo.


O quê?? Abaixando o aparelho, Delphine passou mão no rosto findando o movimento com os dedos entrelaçados no cabelo desgrenhado. Sabia que não tinha a menor condição de receber visitas naquele estado, mas também conhecia Felix bem o suficiente para saber que o "você querendo ou não" dele era verdadeiro e discutir sobre isso só seria desperdiçar uma energia que ela sequer tinha.

"Ok", foi a resposta mais curta que ela conseguiu formular e que serviria como resposta a praticamente todas frases do amigo. Mal a mensagem havia sido enviada, quando uma chamada começou a fazer o celular vibrar. Ser obrigada a falar já era demais, seu polegar chegou a se direcionar para o botão que a enceraria, mas ver a foto de Manon com um rosto sorridente brilhando na tela a fez reconsiderar a decisão.

Oh, graças à Deus! – a mãe disse tão logo a chamada foi atendida – Mon Dieux Delphine! Aonde você estava?? Eu já estava pegando a chave do carro pra ir pra sua casa! Por que não atendeu quando eu liguei??

– Eu acabei esquecendo o celular desligado...

Como você está?

Mas que impasse...

Falar a verdade e deixar Manon ainda mais preocupada, ou mentir e deixar claro que era uma mentira?

– Eu ainda estou respirando, se é o que quer saber – Delphine optou por dizer.

Eu já estou indo, tá legal? – a mais velha soltou agora em um tom menos exasperado e mais profundo – Você já comeu? Vou passar em um restaurante no caminho e pegar alguma coisa pra gente...

– Non! – ela interpôs a fala da mãe – Por favor, não venha aqui. Eu acabei de comer.

E o que é que você comeu?

– Maman, por favor – Delphine falou suspirando – Você pode vir até aqui amanhã, mas hoje eu tenho que ficar sozinha.

Então Manon se manteve em silêncio por um instante.

Você finalmente fez, não foi? – A garganta da loira voltou a se fechar a impossibilitando de dizer qualquer coisa. Por fim, vendo que não iria receber uma resposta da filha, Manon continuou – Tudo bem, se é de espaço que você precisa, que assim seja. Mas saiba que amanhã bem cedo eu vou estar estacionando na frente da sua casa.

– Ok.

À demain, ma fille. Je t'aime.

Tão logo a mãe findou a ligação Delphine voltou a desligar o celular; sua cota de interação social para aquele dia já havia estourado o limite. Sem se preocupar em jogar a caixa da pizza agora vazia no lixo, ela simples se levantou e permitiu que seus pés a levassem até o andar de cima.

Não tinha se dado conta até aquele momento, mas embora tenha conseguido limpar bem as mãos, as pernas e a roupa que vestia estavam consideravelmente sujas de terra. Entrando no banheiro, a loira achou que um contato mais demorado com a água lhe faria bem, então se despiu e parou em frente ao espelho enquanto esperava a banheira encher.

Com as mãos espalmadas sobre a bancada, Delphine olhou em profundidade para o que supostamente era seu reflexo. Quando piscava, a imagem diante de si retribuía o gesto; os movimentos que fez com a cabeça para um lado e para o outro também foram imitados. Racionalmente sabia que era ela ali, mas chegava a ser difícil se reconhecer naquela mulher. Seus olhos estavam marcados por profundas olheiras, os ossos das maçãs do rosto ressaltados pelos quilos perdidos recentemente. Por um único instante conseguiu achar morbidamente engraçado se ver como um personagem de Tim Burton manifestado no mundo real.

Os azulejos começaram a ficar suados pelo vapor d'água, chamando a atenção de Delphine para a banheira que já estava suficientemente cheia. A temperatura estava alta o bastante para deixar a pele dela ligeiramente avermelhada depois de alguns segundos de imersão, mas o calor não era de todo mal. Era bom experimentar alguma coisa diferente de frio pela primeira vez no dia, mesmo que ainda assim essa coisa fosse desconfortável.

Enquanto espalhava a espuma pelo corpo, ficava a cada instante mais consciente de seu cansaço; não só físico, mas um cansaço da alma. Por mais que tentasse, não conseguia ter perspectivas para o futuro, nem sequer conseguia mais enxergar razões para continuar insistindo na vida.

Foi nesse momento que bem ali, ao alcance da mão, Delphine viu uma lâmina afiada com seu brilho cínico sorrindo para ela. Era um verdadeiro déjà vu, impossível não se transportar para mais de duas décadas no passado quando havia estado numa situação idêntica àquela.

Na época, por ignorância, inocência talvez, chame como quiser; não conseguiu previr que ferir apenas os pulsos não seria estrago o suficiente. Se tivesse aberto as artérias metatarsianas nos pés certamente teria conseguido cessar sua estafa mental. Mas o bom aprendiz aprende com seus erros, certo?

Bastava esticar o braço e agarrar a ferramenta que permitiria que ela colocasse um fim à toda sua angústia e sofrimento.

Porém, contrariando seu desejo consciente, algo parecia estar impedindo seus músculos de corresponder ao que foram ordenados. Em vez de alcançar a lâmina, o corpo de Delphine relaxou e ela sentiu as costas escorregando da borda da banheira até ter a cabeça completamente submersa.


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Em outros tempos, quando sonhar e criar metas para o futuro ainda faziam parte de sua rotina, Delphine tinha certeza de que se tornaria médica quando tivesse idade para isso. Agora, deitada naquele leito de hospital, estava certa de que não conseguiria respirar aquele cheiro asséptico nem mais um minuto sequer. Apesar da repulsa que sentia, tentar se concentrar no ar que entrava por suas narinas era menos tortuoso do que ouvir o som que invadia seus ouvidos sem pedir licença.

– Você tem tudo na vida. Roupas de marca... Perfumes caros... Estuda na melhor escola de Paris! – o homem bradava, desrespeitando completamente o silêncio que era de requerido naquele tipo de ambiente – Queria só ver se tivesse problemas de verdade!

– Pierre, já chega! – Manon pediu de onde estava, próxima à cabeceira da cama.

– Eu sim tenho motivos pra querer me matar! Tudo o que eu faço na vida é me matar de trabalhar pra sustentar essa família e o que eu ganho em troca? Não posso nem ter o meu descanso merecido depois de um dia cheio porque minha filha mimada decide que a vida dela não é boa o bastante!

– Enfoiré, não me surpreende que alguém como você não consegue entender que a vida não se resume a dinheiro – Apolline interpôs ao se levantar da poltrona de acompanhante – Se fosse um pai minimamente decente já teria percebido que sua filha não está bem!

– Maman, por favor... – Manon disse, em uma tentativa vã de impedir que a situação ficasse ainda pior.

– Olha só, eu não me importo nenhum pouco com o que a senhora pensa sobre mim – Pierre rebateu – Inclusive, não sei nem o porquê ainda está aqui. Não é bem-vinda, sua velha intrometida! Isso é um assunto de família!

– Nossa, agora eu realmente fiquei com medo! – Apolline desdenhou – Meu caro, eu já enfrentei nazistas, não pense que um porco desprezível como você vai conseguir me intimidar! E caso sua falta de empatia tenha afetado seus neurônios e te deixado um completo retardado, faço questão de te lembrar: Essa é a minha família também!

– Basta! – a voz de Manon se fez presente mais uma vez, dessa vez com mais firmeza – Não veem que isso não estão ajudando em nada?

– É por isso que essa menina se tornou fraca desse jeito! Vocês duas só sabem passar a mão na cabeça dela e não me deixam dar educação como se deve!

– Pierre... – Manon insistiu – Acho melhor você sair daqui.

Com o rosto quase explodindo em um tom vermelho latejante, ele ajeitou o blazer no corpo e pegou a maleta que havia sido deixada no chão, próxima a porta. Contudo, antes de se retirar, se voltou novamente para Delphine. Olhou nos olhos dela, apontou o indicador em sua direção para então disser entre dentes:

– Você tem sorte de estar viva.

Os passos firmes do pai sumiram no corredor deixando o quarto em completo silêncio, mas a saída dele não fez com que a vergonha e humilhação que Delphine sentia também desaparecessem. Ela se encolheu ainda mais na cama, com o único desejo de poder sumir sem deixar rastro algum.

– Eu nunca devia ter deixado você se casar com esse verme – a avó disse em um tom mais baixo agora.

– Mãe... – Manon falou em tom de súplica – Agora não.

– Delphine – Apolline se aproximou dela, delicadamente afastando uma mecha de cabelo da neta que a ajudava a esconder o rosto – Querida, me escute. Você não pode dar ouvidos ao seu pai, está bem? Há anos que eu não ouvia tanta insanidade e baboseira ser vomitada de uma vez só. O que importa é que eu e sua mãe vamos cuidar de você a partir de agora, está me entendendo?

Aumentando a velocidade de suas piscadas para evitar que as lágrimas começassem a rolar, a garota apenas acenou levemente com a cabeça.

– Maman, estou com fome – o pequeno Cedric disse de um dos cantos do quarto.

Quase havia se esquecido da presença dos dois irmãos ali. O mais novo estava concentrado na tela do PSP com os ouvidos tapados pelos fones de ouvido desde que chegou no hospital até aquele momento. Se ouviu a briga entre o pai e a avó, parecia não se importar. Albert, por outro lado, aparentava estar bastante perturbado depois do que havia acabado de presenciar.

– Mon Dieux, já passou e muito da hora do jantar de vocês... – Manon constatou ao conferir as horas no relógio de pulso. Ela se apressou para sua bolsa e tirou algumas notas de dinheiro de lá de dentro – Albert, pegue isso. Acompanhe seu irmão até a cantina, por favor.

– Eu vou com vocês – Apolline acrescentou – Sua irmã deve estar precisando de um pouco mais de privacidade.

O mais velho se aproximou da mãe para pegar o dinheiro, no entanto, se deteve um instante antes de sair.

– Del... – ele disse, visivelmente encontrando dificuldade de encontrar as palavras certas para expressar o que queria – Eu...

– Albert – Apolline chamou já do lado de fora – Vamos.

Então mesmo que hesitante, o jovem Cormier abaixou a cabeça e atendeu ao chamado da avó.

Restando apenas mãe e filha no quarto, Manon se sentou na borda da cama de Delphine e começou a acariciar a cabeça dela. Por mais que soubesse das boas intensões da mais velha, a garota preferiria ter ficado completamente sozinha; o toque não estava sendo bem-vindo. Incapaz de comunicar seu desconforto, ela simplesmente se virou de costas e trouxe os joelhos para próximo do peito.

O sentimento de vergonha ainda se apossava dela, não por ter feito o que fez, mas por não ter conseguido cumprir com seu objetivo sucesso e ter sido descoberta. De forma automática – apesar de tomar cuidado para que a mãe não visse – começou a forçar o polegar contra a bandagem que envolvia seu antebraço com a esperança de que a dor física pudesse lhe conferir uma trégua da dor emocional.

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Seus pulmões gritavam, implorando por oxigênio. Em um movimento desesperado o corpo de Delphine se ergueu, fazendo com que um pouco das águas agitadas da banheira se espalhasse pelo chão do banheiro. O alívio que sentiu ao respirar novamente foi tanto que por um segundo ela se esqueceu do motivo que a havia feito submergir.

O instinto de sobrevivência que salvou a loira do afogamento foi o mesmo que a vez se levantar apressada e vestir o roupão antes mesmo antes de se enxugar, alcançar aquela que poderia ter sido sua foice e seguir para o quarto. Não pensou duas vezes em arreganhar a janela do quarto e arremessar a lâmina com toda a força que seu braço lhe permitia.

Delphine acompanhou a trajetória da pequena peça metálica em direção ao arbusto até que desaparecesse completamente entre as rosas brancas. Só depois de perdê-la de vista é que foi notar o quanto sua respiração ainda estava afobada e que o coração batia disparado.

O vento estava forte, chacoalhava seu cabelo molhado e espalhava respingos de água gélida sobre o piso de madeira. O cheiro de chuva já estava no ar e clarões cortavam as nuvens indicando que a tempestade seria intensa e que estava próxima. Com isso voltou a fechar a janela e puxando o roupão para mais junto do corpo, ela entrou novamente no banheiro. Alcançou a toalha e descuidadamente tratou de tirar o excesso de umidade de seus fios.

Não se surpreendeu ao abrir as gavetas e não encontrar mais nenhuma peça de roupa limpa. Pelo fato de ainda não ter desencaixado todos seus pertences e por já não lavar roupa a vários dias, se viu obrigada a continuar vestindo apenas seu traje de banho. A ideia de se jogar na cama daquele jeito mesmo era grande, mas a possibilidade de conseguir pegar sono lhe parecia altamente improvável e temia as ideias destrutivas sua mente poderia lhe sugerir se ficasse por muito tempo parada e sem ocupação.

O ambiente estava escuro, mas suas pupilas já haviam se habituado com a ausência de luz. Deixada ao lado da cômoda, uma mala recheada de roupas limpas aguardava para ser desfeita, portanto, Delphine a pegou e levou para cima da cama.

Pela falta de padrão, julgo que aquela remessa não fora organizada por ela própria, ainda que não tivesse certeza de nada. Por sorte, logo por cima encontrou seu pijama mais velho e confortável, e não tardou a vesti-lo. Contrariando qualquer ordem lógica, na sequência encontrou desde suas roupas de trabalho até aquelas que usava para frequentar a academia.

O processo de guardar suas vestes no armário já estava se mostrando como algo que beirava o agradável quando ao retirar um de seus jalecos, quase alcançando o fundo da mala, os olhos da loira se detiveram em algo que a fez travar.

Mesmo na baixa luminosidade, o casaco vermelho muito bem dobrado se destacava entre tudo que o circundava.

Não era para isso estar aqui.

Aquela peça deveria ter sido encaminhada para caridade junto com todas as outras. Um erro como aquele só poderia ter sido cometido por Manon enquanto ajudava a filha a arrumar as coisas para a mudança.

Delphine demorou para conseguir reunir coragem de que precisava para tomá-lo nas mãos e o desdobrar. O modelo não era o mesmo daquele que a morena vestia na primeira vez em que se viram; um ou dois já tinha vindo depois daquele, mas Cosima se recusava a experimentar outras cores, afinal de contas, vermelho lhe caia muito bem.

Quando abraçou o casaco com força, o deslizando até as narinas para respirar avidamente o perfume que resistia impregnado em suas tramas, foi o sentimento de saudade misturado com desespero que preencheram a loira. Desespero em saber que aquela peça nunca mais voltaria a ser preenchida por sua legítima dona.


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O dia estava lindo, perfeito para um daqueles passeios de bicicleta pelo parque que haviam se habituado a fazer ao longo dos anos. No entanto, não foi no estacionamento de nenhum parque que Delphine parou o carro, mas sim no do Hospital. Essa vinha sendo sua rotina nas últimas semanas e não seria por isso que viria reclamar de estar perdendo um precioso dia de verão.

Mal tinha acionado o alarme do veículo quando avistou ao longe, saindo do interior do edifício, alguém que ela realmente não espera encontrar por ali.

– Hey, Adele! – ela chamou acenando com o braço, mas a ruiva parecia não tê-la visto. Delphine poderia muito bem ter insistido outra uma vez, porém com um pouco mais de observação, reparou que a irmã biológica de Felix parecia chorar enquanto carregava uma pasta a passos apressado em direção ao taxi que já esperava por ela.

Se sentindo confusa, a francesa conferiu as horas e como pensava, ainda faltavam 5 minutos para o começo do horário de visitas. O que Adele estava fazendo ali? Não se lembrava dela ter falado nada a respeito de sua vinda à Toronto, e considerando a conversa que teve com Felix a menos de meia hora, não fazia muito sentido que ele pudesse ter sofrido algum acidente ou algo do gênero...

O carro partiu antes que Delphine conseguisse percorrer metade do caminho até lá, não a deixado outra escolha senão adentrar no hospital apenas com sua curiosidade e a rosa rubra que trazia nas mãos. Ter sua entrada liberada era algo que ficava a cada dia mais rápido, devido a familiaridade que foi desenvolvendo com os funcionários, mas naquele dia em específico foi uma recepcionista desconhecida que a atendeu, de modo que precisou apresentar seu documento.

– Sra. Niehaus! – a moça chamou depois de Delphine já ter dado alguns passos em direção ao elevador – Está esquecendo sua carteira.

Com um sorriso cordial e um agradecimento gentil, a francesa voltou para apanhá-la antes de seguir seu caminho. Dentro da caixa metálica, olhando o número no display crescendo até atingir o 4º andar, ela reparou em seu polegar ficando ardido de tanto raspar inconscientemente em um dos espinhos que se espalhavam pelo caule da flor.

Seus passos ecoavam pelo corredor sem que ela notasse as pessoas que cruzavam seu caminho; de alguma forma a presença de Adele havia lhe despertado uma angustia e preocupação que só aumentava conforme ela se aproximava do quarto 445.

Sozinha, no conforto do lar, Delphine se permitia chorar, lamentar o fato de que aquela doença maldita ter novamente acometido sua amada mesmo depois de anos achando que tudo estava bem. Dessa vez foi uma versão mais grave e agressiva, que poucas semanas depois da descoberta prendeu a morena em uma cama de hospital sem a chance de poder voltar para casa.

No entanto, quando na presença de Cosima ela sentia a necessidade se manter forte e otimista; ser o porto seguro de que ela necessitava. Com isso em mente, antes de adentrar o quarto ela parou por um instante, apenas para se certificar de que a máscara de falsa tranquilidade estava bem presa e não cairia revelando o medo que escondia por trás dela.

– Bonsoir chérie – Delphine disse com um sorriso otimista nos lábios ao passar pela porta.

Mesmo vindo visitá-la dia após dia e estar acompanhando de perto a evolução do quadro de Cosima, era difícil para a loira manter o personagem e não se deixar abater frente ao estado tão abatido em que ela se encontrava.

Delphine se aproximou do leito e deixou um beijo delicado na fronte da esposa antes de acomodar a rosa que trazia no vaso disposto sobre a mesa de cabeceira, para que se juntasse as outras que havia trago que nas visitas anteriores.

– Como passou a noite?

A morena nem precisava falar para que Delphine notasse a piora. Quando chegou, Cosima já estava usando a máscara de oxigênio e mesmo assim parecia respirar com dificuldade. O baixo nível de oxigenação expresso no monitor à sua direita também indicava que aquele recurso não estava mais sendo o suficiente. A pressão baixa tampouco não era algo que pudesse se chamar de bom sinal.

Depois de um breve relatório de como os médicos acharam melhor trocar uma de suas medicações, visto que o antigo antibiótico não vinha se mostrando muito eficaz para combater seu caso de pneumonia, Cosima parou, o cansaço estampado em seu rosto, e Delphine também se manteve em silêncio, só olhando para ela.

Aquele não estava sendo um dia tão comum como a rotina repetida lhe forçava a acreditar. Geralmente sempre analisava muito bem os remédios prescritos para a esposa, vez ou outra até mesmo discordando da escolha e indo falar com o responsável pelo caso dela. Mas por algum motivo isso não aconteceu naquela ocasião. Ainda era a presença de Adele no hospital que estava ocupando os pensamentos de Delphine.

– Você não vai acreditar em que eu vi no lá no estacionamento agora a pouco – a loira disse tentando forçar um tom despretensioso.

– Adele? – Cosima falou, sua voz saindo abafada pelos vãos da máscara.

– Como... Ela veio aqui? – recebendo apenas um anuir de cabeça como resposta, ela prosseguiu – Mas ainda não tinha começado o horário de visitas... Você já sabia que ela estava na cidade?

– Ela chegou hoje mais cedo – a morena começou a explicar – E ela não precisou esperar o horário de visitas porque não veio até aqui como minha amiga, mas sim como minha advogada.

Enquanto um calafrio percorria o corpo de Delphine fazendo o corpo dela gelar, Cosima teve sua fala interrompida por uma crise de tosse.

– Fui em quem a chamou, na verdade – ela continuou instantes depois.

Irritada com o objeto de silicone que atrapalhava sua fala, a morena levou a mão no rosto para se desfazer da máscara.

– Não, Cosima – Delphine falou preocupada, conferindo mais uma vez o monitor e vendo a taxa de oxigenação ainda menor de quando havia entrado no quarto – Você precisa ficar no oxigênio.

– Não, eu preciso falar com você. Vem cá – ela disse dando tapinhas no colchão ao seu lado para que a esposa se aproximasse – Delphine, eu... Você sabe tão bem quanto eu que o meu caso não está evoluindo nada bem – Cosima fez mais uma pausa, se certificando de olhar fundo nos olhos da francesa – O Dr. Burke disse que teria que me entubar se eu não começasse a melhorar logo e isso foi a dois dias atrás.

– Sim, eu conversei com ele e nós concordamos que era melhor esperar um pouco mais para ver como você reage.

– Exato. O fato é que, bom... Acho que estamos ficando meio sem saída– novamente a tosse a interrompeu – Foi por isso que eu chamei a Adele aqui. Eu nunca poderia te pedir isso, não seria justo da minha parte, então fiz questão de ser eu mesma a assinar os papéis.

– Cosima... – a voz da loira saiu fraca – O que você está tentando me dizer?

– Estou dizendo que não quero que os médicos me tragam de volta caso eu tenha uma parada cardiorrespiratória.

– Como é? – Delphine sorriu nervosamente, como se aquilo fosse algum tipo de brincadeira de mal gosto – Não... Não, escuta. Cosima, você não pode desistir de viver... Precisa continuar lutando!

– Delphine...

– Por favor, você não pode fazer isso comigo – loira disse mudando de posição na cama e agarrando a mão da esposa como se aquele gesto desesperado tivesse o poder de mudar as coisas – Vamos só ligar pra Adele e dizer pra ela rasgar aqueles papéis, ok? Eu não... Me diz como... como que eu ia conseguir continuar vivendo sem você?

– Por favor Delphine, exagero não combina com você – Cosima riu, embora não fosse um riso de felicidade, mas sim carregado de melancolia – Você não é mais aquela moça perdida no campus que eu conheci há tantos anos atrás, chérie. Não está mais sozinha; agora tem amigos que são sua família aqui.

Com a boca entreaberta, mas sem conseguir dizer nada, Delphine pareceu finalmente absorver o que tinha acabado de ouvir e ao ler naquele rosto tão amado que a decisão já estava tomada, sem chances de retorno, ela se deixou tombar no colchão enquanto as gotas salgadas extravasavam de seus olhos.

– Eu tive uma vida boa, Delphine, – Cosima prosseguiu – e os anos que passei ao seu lado foram os melhores dela, sem sombras de dúvida. Nós conquistamos tantas coisas grandes juntas... De alguma forma sinto como se a minha existência sobre a Terra já tenha se justificado – ela disse afagando os cabelos da loira – Além disso... A morrer parece menos terrível quando se está cansado; e se tem uma coisa que eu estou, essa coisa é cansada. Cansada de hospitais; cansada dessa doença... Acho que chegou a minha hora de acolher a morte como uma velha amiga.

– Mas você ainda pode vencer – Delphine tentou se fazer ouvir entre os soluços – Já conseguiu uma vez...

– Agora é diferente e você sabe bem disso. Com leucemia... Uma vez que eu não sou compatível com o meu pai, minhas chances são ínfimas, mesmo se eu conseguir superar essa pneumonia.

– Um filho poderia ser compatível – a loira disse sem refletir, levantando ligeiramente o rosto enquanto tentava enxugar as lágrimas.

– Mesmo se você engravidasse hoje eu provavelmente já teria partido muito antes da criança ter idade para o transplante, e isso se desse a sorte de ser compatível. Tirando o fato de que se fosse pra eu ter um filho ia querer que fosse espontâneo, não para ser meu banco genético ambulante ou algo assim.

– Então nós vamos achar a cura – Delphine se ergueu, agora um pouco mais confiante – Scott está retomando seu primeiro estudo de edição de DNA, os testes em camundongos já devem começar na semana que vem.

– Ele não me disse que estava tão avançado, isso é uma ótima notícia – Cosima disse sorrindo, apesar da falta de ar já estar quase a incapacitando de falar – Quem sabe eu não consigo entrar na fase de testes em humanos...

– Você vai – a francesa fez questão de apertar a mão dela ao fazer a afirmação – Mas agora você precisa voltar pro oxigênio; já se esforçou demais hoje.

Sem ter como negar sua dificuldade de respirar, Cosima voltou a ajustar a máscara no rosto e precisou de inspirar algumas vezes mais profundamente antes de conseguir restabelecer o que agora era seu novo normal. Ao mesmo tempo, contrariando o silêncio que preenchia o quarto, a cabeça de Delphine estava um completo caos depois do que tinha acabado de ouvir. De tudo que poderia ter esperado escutar aquele dia, descobrir que a esposa estava rejeitando socorro médico certamente não era a uma delas.

– Com licença – uma enfermeira disse sutilmente ao bater na porta – Desculpe interromper, mas é que o horário de visitas já terminou.

A loira se levantou apressada da cama, mal acreditando em como o tempo havia passado rápido.

– Obrigada, Abby, eu já estou de saída.

– Delphine... – Cosima chamou – Só mais uma coisa.

– Sim?

– Você se lembra da primeira vez em que eu te levei pra dar um passeio no veleiro dos meus pais? – dessa vez sendo ela a tomar a mão da francesa nas suas.

– Bien sûr – Delphine inevitavelmente sorriu ao ser preenchida pelo sentimento de nostalgia – Como poderia me esquecer?

– Lembra que foi quando você me contou que sua avó sonhava em ser cantora de ópera e só não foi porque seu avô a impediu?

– Sim... mas acho que não estou entendendo onde você quer chegar...

– Naquele dia eu te fiz me prometer que nunca me deixaria te limitar – Cosima retirou a máscara de oxigênio novamente, para ter certeza de que suas palavras seriam bem compreendidas – Por favor, Delphine, não desista do seu sonho por minha causa.

– O que...

– Sra. Niehaus, eu lamento muito, mas... – Abby as interrompeu – A senhora realmente precisa ir agora, se não eu vou ter problemas com a minha supervisora...

– Ok... – Delphine soltou em voz baixa, sem desgrudar os olhos de Cosima – Olha só, eu vou embora agora, mas nós não terminamos essa conversa. Amanhã cedo eu volto e vou querer entender tudo isso direito, está bem?

– Bien sûr – Cosima devolveu – Je t'aime.

– Je t'aime aussi.

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Quando abriu os olhos, em seu quarto, numa casa ainda pouco familiar a ela, a sensação que teve era de ter acabado de sair daquele quarto de hospital pela última vez.

– Eu tenho sorte de estar viva – ela ressonou sem conseguir se identificar com as palavras que proferiu.

Não importa quanta experiência ou conhecimento técnico um médico atinge ao longo da vida, quando os problemas de saúde afligem aqueles por quem eles nutrem afeto, nunca é algo fácil de se lidar. É claro que Delphine sabia das estatísticas de reaparecimento do câncer em pacientes oncológicos, mas Cosima era muito mais do que um número e ela não poderia deixar de ter seu mundo virado de cabeça para baixo quando descobriram a leucemia em um dos exames de rotina. Se já não bastasse ter se mostrado uma doença mais agressiva e resistente aos tratamentos disponíveis, o quadro se agravou e muito quando uma bactéria infectou os pulmões da morena após uma de várias internações.

Na noite daquela última conversa, Delphine recebeu um telefonema do Dr. Burke informando que Cosima havia sido levada para UTI e colocada em um respirador artificial para que fizesse o trabalho que os pulmões dela estava falhando em realizar. 7 dias depois foi a vez dos rins perderem sua função e levou apenas mais 5 dias até que o coração seguisse o mesmo destino.

Delphine foi obrigada a viver sem conseguir concluir aquela conversa.

Em meio a tanto caos que se seguiu, a loira se recordava de ter se sentido revoltada e até mesmo decepcionada por algum tempo. Afinal de contas, ela desistiu. Poderia ter persistido mais; lutado mais. Agora ali, tendo o rosto lambido pelo vento que entrava pela janela aberta e segurando o casaco vermelho ainda suspenso em suas mãos, ela conseguia ver que talvez fosse justamente o contrário. Talvez Cosima tivesse resistido até mais tempo do que seria exigido a ela.

A despertando de seus devaneios, um estrondo tremendo invadiu seus tímpanos quando um raio cortou os céus. O quarto foi iluminado por uma fração de segundo para então deixá-la em uma escuridão ainda maior do que antes. A luzinha vermelha da televisão se apagou assim como aquela proveniente dos postes de iluminação pública. O barulho devia ter sido causado não apenas pelo forte trovão, mas também ser advindo do curto circuito em algum dos transformadores da região, o que acabou por deixar o quarteirão todo sem energia.

Percebendo que o quarto acabaria por ser inundado pela chuva que começava a cair caso ela não fosse fechar a janela, Delphine dobrou o casaco antes de descansá-lo sobre o colchão, com tamanho cuidado como se ele guardasse vida pulsante em suas tramas de fios vermelhos.

Agora o ambiente havia se tornado insustentavelmente escuro. Seu primeiro impulso foi recorrer a lanterna do celular, mas se lembrou que o aparelho tinha sido deixado desligado em cima do balcão da cozinha. Talvez encontrasse alguma vela em uma das caixas que ainda persistiam intocadas, mas no breu que se encontrava, muito dificilmente as acharia. Foi então que se lembrou de ter guardado na gaveta do hall de entrada o restante de algumas barras de parafina junto de uma caixa de fósforos que usou no primeiro dia morando naquela casa, quando a luz ainda não havia sido ligada pela companhia de energia.

Tateando as paredes para se guiar pela residência pouco reconhecível na ausência de seu sentido dominante, Delphine saiu do quarto e começou a descer as escadas. Seus ouvidos eram preenchidos pelo barulho da chuva atingindo a casa pelo lado de fora e pelo estalar das tábulas de madeira sob seus pés, enquanto as pupilas iam ficando mais e mais adaptadas à baixa luminosidade.

Quando pisou no último degrau, outro feixe de luz entrou pelas vidraças, a fazendo notar a presença de duas orbes verdes cintilantes olhando em sua direção. Antes que pudesse perceber o que era de fato, o corpo de Delphine foi atingido por uma enorme descarga de adrenalina que fez com que toda sua pele se arrepiasse e ela quase tropeçasse em seus próprios pés.

O gato de pelo negro se empoleirava em cima de uma pilha de duas caixas que estavam equilibradas sobre a mesa de centro da sala. Seria o gato de algum vizinho?

A presença humana não pareceu intimidá-lo, que ao invés de fugir se manteve estático, fitando a loira por longos segundos. Apenas quando Delphine fez menção de se aproximar que o animal saltou para o chão e saiu em disparada em direção a cozinha, por onde desapareceu de vista pela fresta da janela e por onde provavelmente devia ter entrado na casa. Com o impulso, a caixa sobre a qual o felino estava foi derrubada, tendo sua tampa desprendida e fazendo com que todo seu conteúdo se espalhasse sobre o piso.

Ainda atônita pelo susto que o animal lhe havia provocado, a francesa demorou um instante até conseguir se colocar em movimento novamente e se lembrar o motivo de ter descido as escadas para começo de conversa.

Ela cumpriu seu objetivo e com a chama tremulante concedendo sua fraca luz à sala, Delphine logo percebeu que a caixa derrubada estava cheia de documentos. Como naquela casa tudo parecia fora de ordem, com esta não foi diferente; deveria ter sido levada diretamente para o escritório.

Repousando a vela sobre a mesa, a loira se ajoelhou no chão e deu início ao processo de recolher os papéis espalhados. E ali ela encontrou de tudo; sua antiga identidade com nome de solteira e nacionalidade apenas francesa; o certificado de conclusão do doutorado – que julgou piegas demais colocar em uma moldura; a escritura da casa entre tantos outro. Inclusive a folha que a fez ter vontade de parar o que estava fazendo na mesma hora e retornar para o quarto.

Certidão de óbito.

Já bastava de reviver sentimentos; já tivera recordações dolorosas o suficiente nas últimas horas. Daria tudo para esquecer de tudo aquilo por cinco minutos que fossem. Só precisava conseguir se lembrar de como era estar viva.

Tentando convencer ser de que aquele pedaço de papel nada mais era do que só mais um e nada especial boleto de conta paga, Delphine pegou o documento, evitando encará-lo profundamente, e o dispôs no topo da pilha que começava a se formar novamente dentro da caixa.

Porém esse truque de ignorar não surtiu nenhum efeito para o envelope que estava imediatamente abaixo.

Clínica de Reprodução Humana.


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– Não adianta – Cosima exclamou enquanto a esposa ainda tirava as botas molhadas de neve no capacho de entrada – Eu não vou fazer isso Delphine!

– Você me prometeu que a gente ia conversar sobre antes de tomar uma decisão!

– Sim, mas isso foi antes de saber o que eu sei agora – a morena respondeu enquanto abria a geladeira para se servir de um copo d'água – Meu câncer não foi aleatório, essa merda está nos meus genes!

– O que não implica que justamente esses genes vão ser transmitidos para os seus filhos. Você sabe muito bem disso.

– Filhos, uau. No plural, ok – Cosima pausou para provar do líquido – Dirigir embriagado também não implica que você vai dar de cara em um poste, mas bom, os números não são nada encorajadores.

– Nós temos acesso a laboratórios muito bem equipados – Delphine argumentou – Poderíamos... Fazer a seleção dos óvulos que não tiverem o marcador CA-125...

– O quê?! – Cosima rebateu – Ok, vou fingir que eu não escutei isso. Não quero acreditar que me casei com uma eugenista.

– É eugenia querer evitar a possibilidade de uma criança desenvolver câncer? – a loira falou, agora também aumentando seu tom de voz – Porque se for, bom, acho que não me importo de ser chamada assim!

– Você sabe que seleção embrionária abre precedente pra daqui uma década ou talvez um século a humanidade estar selecionando a raça pura, e francamente, não me surpreendia se todos bebês passassem a nascer brancos dos olhos azuis. E isso não era uma discussão sobre bioética pra começo de conversa.

– Realmente, era uma discussão sobre construir família, Cosima.

– Nós já somos uma família, Delphine, nós duas.

– Você sabe que eu quero ser mãe!

– Então por que não usa seus próprios óvulos? Ou então recorre a doação de alguma outra mulher que não vai passar os meus problemas pro seu filho?

– Porque eu quero que seja o nosso filho, você não entende? Nosso. Eu vou gerar, nada mais justo que você também fizesse parte do processo.

– Desde quando laços sanguíneos são tão importantes assim?

– A questão não é só essa... Também seria mais prático, os seus já foram colhidos, estão preservados, prontos para serem fertilizados. Sem contar o fato de serem vários anos mais jovens do que os meus, o que é uma grande vantagem.

– Delphine, escuta – Cosima abaixou a voz enquanto pousava o copo vazio sobre o balcão. Com uma das mãos apoiada na cintura, ela pressionou a têmpora com a outra – Eu nunca quis ser mãe. Esse sonho... nunca foi meu; e eu nunca te escondi isso.

Certas coisas são obvias quando se está disposto a percebê-las. O problema é que para algumas delas é bem mais simples simplesmente virar o rosto e fingir que não estão acontecendo.

– Tudo bem – a loira soltou em um suspiro, sentindo seu peito implodir sem fazer barulho – Você precisa de mais tempo para pensar.

– Delphine...

– Nós conversamos depois – então sem dar chances de réplica, ela se retirou do ambiente – Outro dia Cosima.

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Parada com o envelope nas mãos foi como ela ficou nos instantes que se sucederam.

– Era disso que ela estava falando – Delphine concluiu depois de revisitar as cenas de seu passado mais algumas vezes – Era esse o sonho a que ela se referia.

Então pela primeira vez em semanas, Delphine conseguiu sentir lembrança de um calor interno; uma mera faísca que lhe dizia que as coisas podiam estar prestes a mudar.

– Je suis desolé, chérie, eu sei que não era isso que você queria – ela voltou a balbuciar – Mas eu preciso ter algo; alguém em que me segurar.




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Por favor não me matem haha. Apesar dos pesares, espero que tento tenha consegido agradar. Me deixem saber o que acharam nos comentário e não esqueçam de votar na história caso tenham gostado. Obrigada por sua presença até aqui!

Link para a continuação, Aqueles Que Nos Amam Nunca Nos Deixam de Verdade: https://www.wattpad.com/story/262095734-aqueles-que-nos-amam-nunca-nos-deixam-de-verdade

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