alinhamento milenar
Sua Majestade Real,
Tenho ciência de que há duas noites lhe escrevi um relatório a respeito de minhas conquistas, portanto, sei o quanto esta carta é inesperada e sem fundamentos. Contudo, não me subestime, sabe bem que não costumo tomar decisões errôneas com frequência. Há uma razão por trás dessas palavras borradas (perdoe-me, minha mão treme tanto quanto as cordas de uma harpa), e gostaria que se atentasse a elas como sempre fez. Tu sempre fostes atencioso para com minhas palavras, seu sorriso é o mais sincero que já vi ao ler cada verso meu com carinho. Ingênuo, mal sabia que tudo que recitei até hoje foi em seu nome. Os cabelos tão negros quanto o céu noturno, ou os olhos tão profundos quanto abismos infinitos.
Sei bem que não deveria dizer estas coisas dessa forma, e que nossas esposas merecem o devido respeito e jamais podem descobrir a respeito de nossos tempos de juventude. Tu sabes, aqueles dias de verão, onde fugiámos das aulas de Aristóteles, deixando-o louco de ira. Não me arrependo, mesmo sabendo o quão irracional é desperdiçar um momento ao lado do Grande Pensador, se pudesse voltar ao passado, faria tudo novamente. Apenas para poder tocar-lhe a pele, beijar-lhe a face, e murmurar o seu nome em deleite. Meu rei, nós dois sabemos que o que aconteceu não foi apenas uma aventura juvenil, e que o fogo se mantém vivo mesmo nos dias de hoje. Sempre soube que jamais poderia lhe esquecer, e estava mais que certo. Pois mesmo aqui, em meu leito de morte, recordo-me do seu rosto com paixão e nostalgia, desejando poder lhe tocar uma última vez. Por isso lhe escrevo, e espero que não sofra tanto caso a notícia trágica chegue antes desta carta.
Há três dias sofro de uma febre que não passa, meu corpo inteiro dói e sinto o prenúncio do fim cada vez mais. O médico parece saber a respeito dessa doença tanto quanto um peixe sabe voar, pois me mandou parar de comer e apenas dormir até que ela se cure sozinha. Devo estar ficando louco, mas ao meu ver, esse homem me mandou esperar pela morte. E, sabe, Alexandre, eu não a temo. Não tenho medo de morrer, tenho mais medo de ficar vivo e não dizer ou fazer tudo o que desejo. E tudo o que eu gostaria de dizer agora é como o estimo, tudo o que desejo fazer é correr até seus braços e esquecer tudo e todos.
Mas não posso, não consigo.
Sequer consigo manter-me em pé, mas insisto em querer correr até você. Talvez seja a febre, o médico disse que poderia ter pensamentos delirantes pelos próximos dias. A quem quero enganar? Sempre fui um louco quando o assunto é o grande rei da Macedônia, tendo a agir de forma irracional em seu nome. Sim, Majestade, estou lhe culpando por me transformar em seu súdito mais fiel.
Agora, irei ignorar as ordens médicas e saborearei o banquete que parece extremamente delicioso. Estou faminto. Portanto, se eu morrer amanhã, que pelo menos eu vá de barriga cheia e coração em paz sabendo que finalmente lhe disse o que tanto tenho guardado por todos esses anos:
Alexandre, eu lhe amo.
Se existem outras vidas além dessa, continuarei amando-o por todas elas infinitamente.
De seu cavalheiro,
Heféstio
"[...] os historiadores dizem que Alexandre ficou louco de dor, cortando os próprios cabelos e as crinas dos cavalos do exército, mandou crucificar Gláucias, o médico que havia atendido Heféstio. Até os toques de flautas ficaram proibidos no acampamento. Após massacrar a revoltosa tribo dos Cosseanos, numa contenda intitulada Sacrifício Fúnebre de Heféstio, Alexandre celebrou fabulosos jogos funerais em homenagem e determinou que deveriam adorar Heféstio como um herói divino. Guardou um luto rígido durante meses e, pouco tempo depois, ainda estava construindo um esplêndido monumento funerário em honra ao amigo, quando o próprio Alexandre morreu na Babilônia." (Wikipedia)
Os dedos longos seguram o lápis com delicadeza, deslizando a ponta suavemente pela folha, formando os traços precisos e únicos que somente ele consegue produzir. Há um esboço de um olho incompleto, ao qual ele se dedica profundamente para finalizar. Contudo, nem me dou ao trabalho de tentar decifrar de quem seja o olhar que ele eterniza agora, pois seu rosto é, sem dúvidas, muito mais atrativo que um desenho qualquer. Mesmo que seus traços sejam o mais extraordinário, mesmo que a chuva fina lá fora seja inspiradora, mesmo que a música escapando pela vitrola seja agradável; nada disso importa. Não quando tenho Taehyung a dois palmos de distância, ocupado demais com rabiscos para notar o qual hipnotizado por ele estou. Por isso o observo em silêncio, memorizando cada partícula sua, pois ele é, de fato, minha musa. Em breve o eternizarei em tela, só preciso de um pouco mais de tempo, preciso olhá-lo mais.
O cabelo cacheado recai na testa com delicadeza, suas ondas perfeitas me fazem pensar no mar, e, por um momento, sinto cheiro de maresia. Os olhos agudos são espetados pelas pontas da franja, fazendo-o manear a cabeça vez ou outra, numa tentativa inocente de tirar os fios da sua visão. Mas nunca adianta, e ele parece desistir disso em certo momento. Sorrio, eu amo o seu cabelo. Seus olhos, fixos no desenho, são como duas pedras preciosas a qual sempre parecem ver bem mais que o normal da humanidade. Taehyung sempre consegue me ler como se eu fosse um livro, desvenda-me com uma facilidade assustadora e conhece cada parte do meu corpo ao ponto de saber onde e como tocar para me atingir. Contudo, ele não deseja isso e penso que talvez nem saiba do poder que exerce sobre mim. Seu olhar é meigo, seu sorriso é doce, sua alma é muito inocente para pensar em atividades cruéis e manipulativas.
Um suspiro suave escapa por entre seus lábios, trazendo-me de volta a realidade doce a qual estamos inseridos. No meio da sala, entre tintas, papéis e pincéis, Taehyung desvia o foco do desenho e me encara por trás da franja cacheada que ainda lhe atrapalha a visão. Um sorriso discreto entorta o canto esquerdo da sua boca e sou obrigado a sorrir feito bobo, porque ele é o homem mais lindo que já pus os olhos e por isso, sou obrigado a sorrir o tempo inteiro.
— O que foi? — Taehyung pergunta manso, fazendo meu estômago borbulhar pelo som aveludado da sua voz.
Eu poderia dizer que estou há um tempo observando-o porque ele é fabuloso, e quando o olho, o mundo inteiro perde a cor. Poderia listar todas as particularidades suas que me fazem desejá-lo ainda mais, como o chocolate ao leite do seu olhar, ou o caramelo da sua pele. Poderia gritar aquelas três palavras como um louco, como se nunca tivesse as dito, mas não o faço. Admiro-o tanto, que me faltam as palavras para descrever todo esse sentimento de devoção. Abro a boca, mas minha língua sempre parece enrolar ao dizer te amo, e nada coerente sai dos meus lábios. Então, sorrio, abano o ar como quem diz que não é nada demais e engato um assunto qualquer a fim de fugir do estado de êxtase que ele me deixa.
— Nada, não. — desvio os olhos para o seu desenho, ainda incapaz de identificar o dono do olhar que ele tanto se dedica a eternizar. — De quem é?
Desconverso, pois essa é a minha especialidade.
— Seu, é claro. Eu amo seus olhos.
Sorrio, onde foi que encontrei esse homem? Se não o conhecesse desde o ensino médio, diria que ele não existe, que não há como alguém ser tão perfeito assim. Se eu o visse de fora, sendo descrito por um amante louco feito eu, diria que são exageros de alguém apaixonado, e que este certo alguém andou lendo Shakespeare demais. Contudo, conhecendo Taehyung como conheço, sei que ele consegue ser ainda mais poético que qualquer soneto, e me atrevo a acrescentar que mais lindo que qualquer personagem histórico ou deus grego. No entanto, às vezes pondero se na verdade ele não seja uma reencarnação de algum herói dos livros, aqueles montados em cavalos, com cabeças erguidas e empunhando espadas. Ou talvez, Taehyung seja o próprio Apolo em pessoa, que, de alguma forma, acabou como humano.
Se ele for mesmo um deus, me ajoelho aos teus pés todos os dias.
— Hoje tive um sonho muito louco. — Taehyung exclama, me arrancando do meu estado de torpor.
— É mesmo? E como foi? — apoio o cotovelo na mesinha e o queixo no punho, me atentando a cada microexpressão sua, decidido a não deixar nada passar.
Ele faz um biquinho adorável ao ponderar na resposta, batucando o lápis suavemente na folha, fazendo-o parecer um garotinho aprendendo a ler no primário.
— Estávamos fugindo de alguém, mas parecíamos estar nos divertindo com isso. — ele solta um risinho nostálgico, como se recordasse do fato. — Você estava diferente, seu cabelo era maior e o lugar em que estávamos era muito estranho.
— Estranho? Como assim?
— Parecia aquelas pinturas antigas, sabe? De lugares como Roma, Grécia, em uma época bem antes de Cristo.
Sem me conter, solto um riso ao segurar o pincel, sentindo-me inspirado a pintar de repente.
— Você assistiu aquele filme de novo, não é? — comento divertido, ao mergulhar as cerdas na tinta azul. — Como era mesmo o nome? 300?
— Não ria de mim, eu tô falando sério! — apesar de sincero, Taehyung também ri. Deslizo o pincel pela tela com suavidade, admirando o tom de azul da mesma cor do moletom de Taehyung. — Estávamos correndo por aquela cidade e...
Encaro-o, confuso pela falta do fim da frase e pude vê-lo encarar seu próprio desenho com o cenho franzido. Interrompo minha pintura, erguendo o pincel para que as cerdas não atingissem mais a tela e o incentivo a continuar:
— E...?
— Pareceu bem real, como se... como se realmente estivéssemos lá.
Por um momento, apenas encaro Taehyung em silêncio, até que não aguento segurar o riso e explodo em uma gargalhada, forçando-me a abandonar o pincel sob a paleta para prevenir grandes estragos. Taehyung bufa, fazendo-me rir ainda mais.
— Certo, chega de filmes e livros de História para você. — comento, ainda aos risos.
Taehyung segura o lápis com força ao voltar a dedicar-se ao seu desenho inacabado e murmurar entre dentes:
— Eu te odeio.
— Fofo. — devolvo, antes de voltar a segurar o pincel.
Dedico-me a pincelar a tinta com azul, não sabendo ao certo o que quero produzir, mas tendo a certeza que algo tem relação com o sonho distópico de Taehyung.
— Yoongi? — ele chama, forçando-me a interromper as pinceladas. Encaro-o por trás do cavalete e murmuro uma interrogação incompreensível. — Acredita em reencarnação?
Suspiro, ao ponderar na resposta. Recordo-me então das minhas divagações acerca de Taehyung ter sido um herói ou um deus grego e sorrio ao assentir.
— Com certeza.
Taehyung enverga a cabeça para o lado, como um cãozinho ao analisar situações intrigantes.
— Para quem estava rindo do meu sonho, você parece muito crente. — disse ele, roubando-me uma risada — E baseado em que você acredita nisso?
— Porque você se parece muito com os heróis da antiguidade, então não me surpreenderia se realmente tivesse sido um deles.
Dessa vez é ele quem ri, divertindo-se da minha resposta.
— É mesmo? — ele solta outro riso, desacreditado. — Você é muito bobo, sabia?
— Você me faz ser assim.
— Certo — ele ainda sorri ao cruzar as mãos para apoiar o queixo e me encarar de uma maneira única que divide entre doçura e sacana, me sinto confuso. — Então, suponhamos que reencarnações realmente existem, o que você acha que eu fui em uma vida passada?
— Hum... — finjo pensar. — Um rei, o melhor e mais lindo de todos.
— Tá sendo bobo de novo... — Taehyung exclama, risonho. — Mas e você, seria o quê, então?
— Um cavalheiro, seu súdito mais fiel, destinado a enfrentar batalhas e matar dragões ao seu lado.
Sinto um dejávù e isso me faz suspirar, Taehyung também suspira, mas nenhum de nós entende realmente o porquê. Ele apoia a mão no rosto, olhando-me com uma expressão tão terna, que sinto vontade de eternizá-lo exatamente assim.
— Então, eu te nomearia comandante do meu exército, e, sem dúvidas, seria aquele em quem mais confio.
Sorrio ao me aproximar dele como um felino, desistindo da minha pintura e desejando que ele pare de rabiscar naquela folha.
— Quem está sendo bobo agora?
— Não me culpe, você que me deixou assim.
Outro dejávù, sinto uma imensa vontade de beijá-lo, mas antes que eu o faça, Taehyung me interrompe e se empertiga na minha direção, decidido a sentar no meu colo. E em como todas as outras vezes que ele faz isso, lhe mostro os anjos, faço-o ver estrelas e deleito-me com a sua expressão prazerosa ao atingir o ápice. Se ele foi ou não um rei na vida passada, nunca saberei, mas continuarei reverenciando-o pelo resto da minha vida. Não é atoa que nosso relacionamento é ovacionado por quem nos conhece, seja onde for, estamos nós; não como duas pessoas, mas sim uma única alma. E Taehyung parece compartilhar do mesmo pensamento que eu, pois seus olhos brilham com todas as estrelas da galáxia e me fazem ter a certeza de uma coisa, que acaba escapando pelos meus lábios:
— Se existem outras vidas além dessa, eu vou te amar em todas, assim como amei nas passadas.
Taehyung sorri largamente, enchendo meu peito de amor ao admirar seu sorriso retangular.
— Eu também te amo.
— Olha isso, você me ama e eu te amo. — aponto o óbvio, fazendo-o rir. — Alinhamento milenar, você não acha?
— Tenho certeza.
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