Capítulo 7
O Harry cai em câmara lenta, a cabeça dele bate no chão com um ricochete assustador e sinto o sangue gelar-me nas veias. O meu coração precipita-se numa batida desenfreada que me leva a abrir a boca num grito que nunca chega a conhecer o espaço à nossa volta. De olhos fixos em mim, o Harry mexe os lábios num claro "fica" e nesse momento sinto-me sufocar. A preocupação, o sangue que lhe jorra da têmpora e o facto de eu achar que posso gritar num sitio onde claramente não sou bem vinda, faz-me dar um passo atrás.
-Merda.- Murmuro, levando a mão ao peito.
Sento-me na plataforma instável e tento acalmar a respiração. Os olhos do Harry continuam em mim enquanto o seu adversário se vangloria para uma qualquer câmara. Ele sorri-me e tenho vontade de virar a cara, mas não consigo, nem sequer consigo explicar porque é que me afeta tanto estar a ver uma coisa que sabia que ia acontecer. Ele avisou-me. Pisou aquela poça de sangue na noite anterior, disse-me que se deixava apanhar, que gostava do espetáculo. Talvez o problema seja eu, talvez eu continue a não estar preparada para ver pessoas sofrer... para ver o ver sofrer?
Abano a cabeça. Isso é estúpido, eu nunca lidei bem com o sofrimento dos outros.
Mas os meus pensamentos evaporam-se quando o Harry fecha os olhos, a personificação de uma presa acabada. O peito bronzeado dele sobe e desce num ritmo agoniante e lento, até que ele inspira profundamente e abre os olhos com uma fome negra, uma raiva que nunca vi. Com as mãos trémulas, tiro o telemóvel da mala e deixo-o a gravar.
Num impulso de pernas impressionante ele mete-se de pé. O oponente dele vira-se com um sorriso presunçoso, mas a partir dai o Harry está cego. Desvia-se com elegância de uma investida do grandalhão loiro e a seguir desfere-lhe uma sequência de golpes que deixam o outro tonto. Levanto-me, também eu pareço estar a retirar alguma coisa da energia dele, e caminho à volta da plataforma que circunda o ringue.
Vê-lo é impressionante. O Harry não acaba com ele imediatamente, tal como me disse, faz a cena dele render e é muito agressivo do que o outro tipo, que atacou para matar. Reparo com atenção nos produtores dos jogos, que movem um camara à distância de forma a apanhar os longos golpes.
-Ele é bom...- Sussurro e como se ele me ouvisse, vira-se de costas para o tipo e pisca-me o olho. Estou quase histérica a rir-me sem fazer barulho, quando o brutamontes se agigante atrás dele, e arregalo os olhos para ele.
É como se ele estivesse de costas para o mar e um tsunami viesse na direção dele, quero gritar e espernear, mas ele faz-me um sorriso antes de se virar num movimento ágil e o oponente dele bater com a cara num dos postes do ringue, caindo sem vida no tapete.
-E sem sujar as mãos.- A voz rouca do Harry viaja pelo ar, enquanto ele olha para a camara com cum charme que, embora artificial, não deixa de cortar a respiração. Os ecrãs no armazém vão se acendendo, como luzes de Natal, mas com a cara dele e palavra "vencedor". Ao canto, nos ecrã, surge uma quantidade astronómica de dinheiro. Pego no telemóvel e paro a gravação.
As luzes apagam-se subitamente e olho em volta. Dois tipos arrastam o homem no chão para fora do ringue e observo com interesse quando um homem bastante mais velho se aproxima do Harry, que limpa o pescoço numa toalha. Eles sussurram qualquer coisa um ao outro, antes do mais velho lhe oferecer um aperto de mão genuíno. Penso se será uma espécie de agente, mas o curso dos pensamentos não demora muito porque o Harry olha para mim e levanta as duas mãos, com os dedos esticados, pedindo-me para esperar dez minutos. Reviro-lhe os olhos e ele sorri.
É um martírio ver a lentidão com que as pessoas saem de dentro do armazém, mas por fim, as luzes desligam-se e eu espremo-me para dentro do elevador, que desce com um ruido horrível. Quando chego ao piso zero, as grades deslizam antes de eu ter oportunidade de as afastar e o corpo do Harry ganha forma.
-Olá.- Ele diz-me, e antes que me possa conter, abraço-o. É um abraço de urso, em que as minhas mãos procuram sentir a carne dele.
Os dedos dele passeia-se pelo meu cabelo e pelas minhas costas e inspiro o cheiro dele: cheira a suor, a lavado e ao mentol dos cigarros. Deixo que a presença dele me sossegue a respiração e depois percebo que isto é íntimo. Demasiado intimo.
-Desculpa.- Sussurro, enquanto me afasto.
-Porquê?- Ele tem um sorriso felino na cara que me faz querer revirar os olhos.
-Não sei o que me deu.
E mal as palavras me deixam a boca, viro-lhe o queixo com o punho e ponho-me a inspecionar o local onde o outro idiota o atingiu.
-Sentes-te zonzo?- Pergunto-lhe, enquanto ligo a lanterna do meu telemóvel.
-Não.
-Olha para a luz.
Aponto a lanterna contra os olhos verdes dele, e vejo a iris diminuir de tamanho. Ótimo.
-E agora? Algum desconforto?
-Tirando o facto de não ver nada.
-Estás disposto? Enjoado? Vertigens? Cegueira.
-Cegueira, sim.
Baixo a lanterna e olho para ele, séria.
-Devíamos ir ao hospital.
-Para quê?
-Cegueira, traumatismo... preciso de explicar? Anda, alguém vai tratar de ti.
Agarro-lhe na mão para o puxar, mas ele não se mexe e puxa-me de volta para ele. Penso que se estará a sentir mal, mas em vez disso encontro-o com o sorriso no rosto.
-És tão gira quando te preocupas.
-E tu bateste com a cabeça.
-Na verdade, bateram-me na cabeça.- Tento não sorrir.
-Podes morrer.- Digo-lhe, consternada.
Ele arregala os olhos numa preocupação fingida.
-Estás a gozar comigo.- Digo-lhe e tento afastar-me, mas ele não me deixa. Em vez disso, sinto a mão dele em punho, debaixo do meu queixo. É meigo e gentil, forçando-me a olhar para ele.
-Não. Estou feliz.- A descontração nos olhos dele é quase palpável.
-Feliz?- Digo, incrédula.- Uma pessoa não pode possivelmente fazer o que tu fazes e estar feliz.
-Tens razão, geralmente isto não me deixa feliz, mas hoje... foi bom ter-te aqui.
A mão dele muda de posição no meu queixo e sinto o dedo passar-me por cima do lábio inferior, o que me envia um arrepio espinha abaixo.
-Estavas com medo? - A voz dele é profunda, e no escuro, depois de uma experiencia de adrenalina como senti poucas vezes, aceno.
-Sim, estava. Feliz?
O sorriso dele tem voltes suficientes para iluminar a cidade.
-Depende, tiveste medo de mim?
-Não. - Sou tão rápida a responder que me surpreendo. - Tive medo por ti.
Afasto-me dele e aclaro a garganta.
-Se já ouviste tudo o que querias, podemos ir embora? Tenho perguntas.
O Harry sorri e tira um cigarro de mentol do bolso.
-Tens problemas com demonstrações de afeto.
-Não tenho nada!- Fico ofendida e a verdade é uma pontada crua e dura.
-Não faz mal, eu tenho tempo.- Ele acede o cigarro e sai em direção à porta. Vou atrás dele, irritada e curiosa.
-Tempo para quê?
Harry não responde e continua a andar, mas eu tenho a certeza de que o oiço rir. O imbecil...
-Harry!
-Cam!- Ele afina o tom numa tentativa de me chatear, e consegue.
Ele abre a porta e gesticula a cabeça para que eu passe.
-Tempo para quê?- Pressiono.
-Tempo, no geral.- Passo para a rua fria e olho para o relógio no pulso dele. São quase três da manhã.- Sou um tipo novo, com saúde... tenho hobbies ligeiramente menos seguros, mas no geral.
-És impossível.- Sussurro enquanto passo por ele e oiço rir. A porta fecha com um baque atrás de nós.
-As minhas pernas parecem gelatina. – Comento.- Tenho o carro ali mais à frente.
Harry segue-me, e o cheiro do cigarro dele é ligeiramente demais a esta hora da noite com o estomago vazio.
-Achei que não vinhas.
-Eu também. – Mas não lhe conto da Cleo, ou da falta de perspetivas da nossa pequena investigação.
Sinto a saliva acumular-me na minha boca e paro. Será isto uma descarga de adrenalina? Paro de andar e apoio-me a uma árvore enquanto ele continua a andar. Olho para a lua e tento focar-me nela, antes de retomar a andar. O Harry para uns passos mais à frente, antes de se virar para mim.
-Cam? Estás bem?- A preocupação na voz dele teria sido querida em qualquer altura, mas não quando estou a tentar conter o que resta do meu jantar dentro do estomago.
-É o teu cigarro, o cheiro... não sei, estou enjoada.- Fecho os olhos e sinto o suor frio no fundo das costas.
-Fodace, desculpa.- Abro os olhos a tempo de o ver atirar o cigarro para o chão e de o esmagar com a bota. O olhar na cara dele é resoluto quando tira o casaco e se aproxima de mim.
-O que é que estás a fazer? Estão dois graus!- Ralho.
-O casaco tresanda a tabaco.
-Vais morrer de frio.- Discuto.
-E tu precisas de ajuda. Consegues andar?
-Estou só enjoada.- Reclamo.
-Estás pálida.
-Porque estou enjoada. Não te aproximes.
-Para de ser teimosa.- Ele larga o casaco no chão e aproxima-se.- Quando é que foi a última vez que comeste?
-Lanchei.- Respiro profundamente quando sinto um vómito formar-se na base do meu estomago.
- Ontem?
-Isso.
O olhar de raiva na cara dele é rapidamente substituído por outra coisa que não compreendo e ele vira-se.
-Sobe.
Olho a volta.
-Para as escadas invisíveis? Só preciso de descansar.
-Vais desmaiar. Sobe para as minhas costas.
-Como uma menina?
-Como uma mulher. Vá. Não faças pedir outra vez, não tenho força para lutar com mais ninguém.
Rio-me e quando ele se baixa encaixo-me nas costas dele. O Harry apanha o casaco e caminha com ele debaixo do braço.
-Deixaste o carro onde te disse?
-Sim. Já agora, as marcas que me deixaste eram péssimas.
-Mas encostraste o sitio.
Descanso a cabeça no ombro dele e fecho os olhos.
-O teu cabelo não cheira a tabaco.
-Tomei duche. Mas as minhas roupas tresandam.
-Estás sempre a fumar?
Harry ajeita-me as pernas e sinto os dedos dele apertar-me as coxas.
-Estou a pesar?- Pergunto.
-Querias que eu dissesse que sim, não querias.
Sinto os dedos dele apertarem-me, como se estivesse a tocar piano.
-Desculpa, isto deve ser a adrenalina, o sono, a fome... caramba, nunca tinha visto uma luta.- Soou envergonhada.
-E mesmo assim queres escrever sobre isto?- A voz dele é mais profunda quando está tudo escuro. Mais perigosa até.
Penso em tudo aquilo que está em jogo, a minha nota final, a minha amizade com Cléo, que me disse especificamente para não fazer isto, a minha amizade/parceria com o Harry.
-Sim.
Porque a verdade é que isto tem sido a única coisa que me tem dado sentido nos últimos dias. Aqui sou só eu. Não há a pressão do meu pai, o divórcio, a separação do Max.
-Aquele tipo vai ficar bem?
O Harry para de andar por um segundo.
-O Cooper?
-Era esse o nome dele?
-Sim.- Curto e direto. Não quer falar sobre isto. Que pena que é precisamente isso que eu quero.
-E vai ficar bem?- Sei que estou a esticar a corda.
-Vai, Cam.- O tom contrariado espicaça-me a curiosidade. Vá-la, Harry, mais. Eu quero mais.
-Ficam sempre bem?
O Harry limpa a garganta e ajeita-me novamente nas suas costas, que agora me parecem tão confortáveis que tenho vontade de dormir.
-Geralmente.
-Isso é muito vago.- Reclamo.
-É o que é.
-Não me queres contar?- Apoio o queixo no ombro dele, já mais tensa.
-Posso contar-te isso noutro dia? Quando não estiveres risco de me vomitar para cima?
Levo aquilo muito a peito.
-Eu nunca te vomitaria em cima!
-Vamos ver. – Ele para de andar.- Chegámos.
Olho em volta e não vejo o meu carro em lado nenhum. Só um mercedes... velho.
-Este não é o meu carro. A não ser que tenhamos viajado no tempo e estejamos na década de 70.
Harry abre a porta do pendura.
-Não é o teu carro. É o meu.
Deslizo pelas costas dele e o ardor no meu estomago quase que desapareceu. Quase.
-Uau.- Passo um dedo pela porta brilhante.
-É um SL 350.- Ele diz com algum orgulho.
-É um carro. Tem rodas.- Digo-lhe, a rir-me. – Mas não posso aceitar, não quero deixar aqui o meu carro, no meio do mato, onde o pessoal vem fazer lutas ilegais.
Harry aponta novamente para a porta.
-Até os mauzões precisam de dormir, Cam, acredita. Eu venho buscar o teu carro amanhã, ou trago-te.
-Porquê?- Sei que pareço uma criança petulante, mas não me agrada deixar aqui o meu carro.
-Porque o teu carro está mais longe e tu estás verde.
-E tu estás amarelo.
-Entra Camélia.
Levo a mão à boca para abafar a minha gargalhada.
-Pareces o meu pai.- Digo-lhe e no mesmo instante, a cara dele congela. Não há um único musculo vivo por debaixo da pele dele, enquanto me fita com um horror mal escondido.
-Entra.- Pede-me, desta vez com uma calma mal disfarçada.
Confusa, sem saber ao certo o que disse, acabo por me sentar e ele fecha-me a porta com uma calma gelada. Quando se senta ao meu lado, parece mais distante do que alguma vez me lembro de o ver.
-Ofendi-te?
-Não.- Diz-me enquanto mete o carro a trabalhar.- Estou cansado, só isso.
Penso nisso por uns segundos. Parece-me que pode estar cansado, mas também me parece que está a mentir.
-Posso abrir a janela?- Peço.
Harry acena, e vejo-o repuxar o lábio inferior enquanto nos tira da floresta e entramos na estadual que nos leva até casa. O vento frio na cara sabe-me bem e o Harry conduz bem o suficiente para que eu não volte a enjoar.
De vez em quando olho para ele de lado, é a contra gosto que admito que ele preenche todos os meus requisitos de homem e se parece, inegavelmente, com um ator de quem eu costumava gostar em miúda. Porque é que os homens bonitos são tão complicados? Eu sabia que isto era uma verdade universal, tinha passado a vida a evitá-los e a minha mãe tinha-mo dito muitas e muitas vezes: não confies em ninguém mais bonito que tu. Era um conselho vazio, mas cheio de sabedoria pessoal. Ela tinha casado com um homem desejável, em todos os aspetos e isso só lhe tinha trazido desgostos.
-Estás muito calada.
-Estou a pensar se serás muito mais bonito do que eu.- Digo-lhe, e tento não me envergonhar.
É ao mesmo tempo a coisa mais assustadora e mais incrível do mundo quando o sorriso dele começa a despontar do lado direito da cara. É como ver o sol nascer e pôr-se ao mesmo tempo, o que é, cientificamente impossível, exceto agora, em que tenho a certeza de que nunca vi ninguém com um sorriso destes. Dá-me uma sensação de vertigem que não reconheço.
-Achas que sou?- Harry ri-se, mas parece-me que tenta esconder o nervosismo.
-Bonito?- De certeza que já lhe disseram isso.
-Já me chamaram muitas coisas, mas não tenho a certeza de alguém me ter dito isso... sem ser a minha mãe, claro.
-E isso não conta.- Descalço os sapatos e abraço as pernas em cima do banco.
-Claro. É uma mentira universal.- Ele para num semáforo e eu volto a meter a cabeça fora da janela.- É o cheiro do tabaco?
-Eu gosto, juro, mas é quando tenho comida no estomago. Mas claro que desaconselho toda a gente a fumar.
-Nunca me desaconselhaste.
-Fica-te bem. O que é uma razão horrível, mas é verdade... é meio, James Dean, sabes?
O Harry assente e retoma a marcha.
-Acho que sim, ajuda-me a acalmar.- Ele morde a unha do polegar e olho novamente para os prédios à nossa volta. Estou a chegar.
-Costumas ficar nervoso?
-Às vezes.
-Não parece.
Entramos no complexo do meu dormitório e ele estaciona. Abro a porta do meu lado e quando me viro para lhe agradecer a boleia, oiço a porta dele bater.
-Óh!- Digo, quando ele se aproxima de mim.
-Óh.- Repete, como se fosse uma piada qualquer.- Então, a luta de hoje ajudou? Para a tua reportagem?
-Sim. Dá uma bela entrada... gravei, achei que te devia dizer. Se quiseres posso enviar-te, mas-
O Harry faz uma careta e dá um passo atrás.
-Não. Não gosto de ver.
-Ok. Desculpa.- Tiro as chaves da mala.- Isto ainda é novo para mim, mas acho que quanto mais falarmos, mais fácil vai ser também para mim. Tu sabes, não dizer a coisa errada.
Abro a porta e entramos os dois. O calor que ele emana é aconchegante enquanto subimos as escadas, comigo dois degraus à frente.
-Do que é que precisas mais?- Pergunta-me quando chegamos ao primeiro piso.
-Gostava de te fazer umas perguntas, para saber como é que funcionam as apostas, e gostava de falar com outras pessoas.
-Outras pessoas?
-Não podes ser a minha única fonte.- Digo-lhe quando chegamos ao meu andar.- Nem sequer me disseste se posso usar o teu nome... não posso correr riscos.
-Hum. Ok.- O tom dele não me deixa descansada.
-Ok, aceitas ou ok, vais pensar?
-Um bocadinho das duas. Acho que conheço alguém com quem podes falar, além de mim, claro. – Ele passa a língua pelos dentes, em desafio.
-Boa. Então, vemo-nos depois?
Harry acena que sim e nessa altura, oiço passos atrás dele.
-Cammy?
O coração cai-me aos pés e tanto eu, como o Harry nos viramos para trás.
-Max?!
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