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Capítulo 6

Tenho os dedos dormentes de segurar no volante com força e sinto os olhos de Cléo em cima de mim. Tento concentrar-me no lugar onde os faróis do carro iluminam a estrada, mas a minha cabeça está em todo o lado, ao mesmo tempo.

-Então só temos de aparecer? – Cléo, sentada ao meu lado, tira-me do transe. Sinto-a a tensa ao meu lado, mas não sei se é dela, ou da discussão que tive com o meu pai.

-Sim. Ele levou-me lá, ontem.

O silencio estende-se entre nós e deixa-me desconfortável.

-O quê? -Pergunto-lhe, frustrada.

-Têm falado?

Puxo a pele dos lábios com mais força.

-Uma vez ou outra. Só para percebermos o que é que podemos esperar um do outro.

-E a que conclusão é que chegaram? - O couro do banco range quando ela se vira para mim.

-Nada demais, ele vai falar comigo, vai ajudar-me.

-Não pediu nada em troca?

-Não.- Minto.- Acho que também não gosta assim tanto disto e se calhar teve pena de mim.

-Pena?

-Tu sabes... segui-lo depois de não ter conseguido entrar num combate? Enviar-lhe duzentos emails? Ligar-lhe?

Cléo ri-se ao meu lado e vira-se para a frente.

-Tu és determinada.

-Uma péssima qualidade em minha casa.- Sinto o sabor do sangue na língua e olho para os dedos, onde vejo um pedaço da pele do meu lábios.- Merda.- Sussurro.

-É aqui? – Cléo virou a atenção para os armazéns abandonados e olha para tudo numa mistura de perturbação e fascínio. Desligo o carro e a luz dos faróis apaga-se, deixando-nos completamente às escuras. Olho para o relógio de relance: 23:47.

-É aqui perto. Vamos a pé o resto do caminho.

-Assim? Sem luz?- Ela torce o nariz.

Rio-me e ligo a lanterna do meu telemóvel, apontando-a para uma mancha vermelha numa das árvores.

-O Harry deixou umas marcas nas árvores, só temos de nos orientar.

Cléo aproxima-se da mancha vermelha e passa-lhe o dedo por cima.

-Isto não é sangue?- Ela mostra-me o dedo vermelho.

-A sério?- Reviro os olhos e dou-lhe a mão.

-Eu sei que ele tem aquela cara... e aquele corpo! Mas há alguma coisa que não está bem.

Olhamos as duas à volta, e oiço um ribombar de música.

-Provavelmente o facto de ser ilegal.

-Eu sei, e se o meu lado jornalístico está aos pulos, o meu lado medroso quer voltar para casa.

Começamos a caminhar e tenho de admitir que parte de mim começa a sentir medo. O armazém é mais longe do que pensei e tenho a sensação de que nunca estive aqui. As marcas nas árvores tornam-se mais espaçadas e a música que antes parecia vir de frente, agora parece estar mesmo atrás de nós.

-E é tudo online?- Cléo quebra o silêncio.

Aponto a lanterna do telemóvel para uma árvore e fico aliviada por ver outra mancha vermelha.

-Streaming. E o Harry falou-me em apostas milionárias... acho mesmo que há aqui um grande artigo.

-Ele sabe que se conseguirmos publicar, estas pessoas vão saber, certo?

Paro imediatamente de andar.

-Ele não quer o nome no artigo.

Cléo volta a apontar-me o telemóvel para a cara e fecho os olhos.

-Como assim?

-Não quer, pelo menos, ainda não o convenci.

-Cam, que raio de reportagem é esta se não vais ter nomes?!- Ela está zangada.

-Eu vou falar com ele. Vou convencê-lo.

-Claro que não vais! Ele está a brincar contigo!

Olho para Cléo, sem entender.

-Pensei que querias esta história.- Digo-lhe, completamente incrédula.

-E quero... queria, mas não a qualquer custo.

-Que custo? Já conseguimos a parte mais difícil, estamos dentro.

-Estamos? A mim parece-me que estamos perdidas no meio de uma floresta.

A mudança de humor dela apanha-me desprevenida e esfrego os olhos.

-De onde é que isto veio?

Cléo olha em volta.

-Não confio nele. Nem nisto. Acho que... que devíamos largar o artigo.

-Cléo, por amor de Deus, estamos a chegar a algum lado e queres desistir?

-Sim.

-Não.- Dou um passo atrás.

-Eu sou tua editora e estou a dizer-te que acho isto... estranho.

-Claro que é estranho! São lutas ilegais!

-Não é só isso! Se ele não quiser dar a cara vamos parecer fantasiosos. Não vai ser credível, Cam, percebes?

Abano a cabeça.

-Se dissesse que sim, ia estar a mentir.

-Eu acho que podemos fazer melhor que isto. Acho que podes fazer melhor, Cam. Vamos embora e esquecer isto, ok?

No momento em que as palavras lhe saem da boca, a música que ouvíamos é desligada e ficamos as duas presas no silêncio escuro da noite.

-Ok.- Rendo-me, olhando para trás e sem sentido de orientação possível.- Vamos.

O caminho até ao carro é rápido. O problema é o caminho até ao apartamento que ela divide com o irmão.

-Estás chateada?

-Estou.- Digo-lhe, enquanto ligo o pisco para a direita.- Ainda por cima a ideia foi tua.

-Eu sei! Não devia ter sido tão precipitada, só achei que por causa do...

Interrompo-a imediatamente.

-Do Max, eu sei.

Paro o carro em frente ao prédio dela e Cléo abre a porta antes de a fechar outra vez.

-Vamos arranjar outra coisa. Podemos trocar-te com o Daniel, ele está com o Ozempic, mas podem trabalhar os dois?

-Amanhã falamos, pode ser? Ligo-te.- Esfrego os olhos com as mãos e Cléo abana a cabeça.

-Achas que te estou a sabotar?- A pergunta-me dela apanha-me de surpresa.

-Não. Estou cansada e honestamente nem me passou isso pela cabeça.

-Porque não estou. Estou preocupada contigo. Emagreceste, deixaste de ir às aulas, acabaste com o Max...

-Cléo, vamos parar de dissecar a minha vida, ok? Já tenho problemas que me cheguem.

-Desculpa...- Pelo menos tem a delicadeza de parecer envergonhada. – Queres subir? Podes dormir aqui hoje e podemos pensar em temas para outro artigo...

Com uma fora hercúlea, sorrio-lhe. Aliás, ofereço-lhe o meu maior e mais falso sorriso.

-Estou cansada.

-Vais para casa?- Pergunta-me, cheia de expectativas.

-Sim. Até amanhã.

Cléo abre a porta e sai, antes de se baixar novamente.

-Não me odeies.

Os meus olhos encontram os dela, azuis e aceno-lhe.

-Nunca.- Repito, antes dela fechar a porta do carro.

Arranco na direção do meu dormitório, e quando deixo de a ver pelo retrovisor do carro, acelero em direção à zona industrial.

***

O ar tornou-se mais frio e o cheiro do pacifico rodeia-me. Seattle é um lugar naturalmente cinzento e frio, mas as noites de inverno são rigorosas, mais do que em qualquer outro sítio. Enquanto caminho à procura das manchas vermelhas que o Harry deixou nas árvores, sou novamente assaltada pela incerteza. Estou a fazer a coisa certa? Coço a sobrancelha e puxo-a antes de notar que há luz numa das portas do edifício. Reconheço as traseiras por onde o Harry me tirou.

-Aleluia.- Murmuro, enquanto me dirijo para a porta, que abro sem fazer barulho.

Entro dentro do armazém e não vejo ninguém. A música que ouvi antes está agora mais baixa e olho em volta. Há paredes de madeira a separar-me do centro do edifício e lembro-me da conversa que tive ao telemóvel com o Harry.

Cléo olha para mim e viro-lhe as costas antes de atender.

-Harry.- Digo na minha voz mais profissional.

-Docinho.- Oiço-lhe o sorriso na voz.- Pronta para desistir?

Ele arfa ao telemóvel, como se tivesse corrido uma maratona.

-Nunca.

-Sempre tão corajosa. – As palavras dele são quase um desafio.- Vamos ver até quando é que isso dura.

Reviro-lhe os olhos e viro-me para Cléo, que olha para o telemóvel com uma expressão raivosa. Com os olhos, pergunto-lhe se está tudo bem, ao que ela me sorri, acenando que sim.

-Então consegues vir ter ao sitio que te mostrei ontem?

-A pé? Vou morrer de frio.

-Deixa o carro no fim da estrada e vou deixar-te umas marcas.

-Marcas?

-Tipo Hansel e Gretel, conheces?- Ele provoca-me.- Vou deixar umas marcas vermelhas nas árvores.

-Ok. Mais alguma coisa?

-Sim. Entra pelas traseiras, vais saber onde são e depois enfiaste naquele elevador.

-Sozinha?- Guincho, antes de olhar para Cléo e de me lembrar que ela vai.

-Ninguém te vai ver, é mais seguro se ficares lá em cima, do que cá em baixo onde alguém ainda dá contigo.

Cléo virou-se para ir ligar a alguém.

-E se alguém me visse?- Sussurro.

-Bom.- O Harry diz, antes de respirar fundo.- O mais provável é que eu precisasse de matar meia dúzia de gajos, e ainda ia ficar mal tratado. Por isso vais esconder-te, ok?

O pensamento do Harry a virar-se contra a alguém causa-me estranheza e penso se terei mesmo estômago para o ver lutar com alguém.

-Nada de gracinhas.- Diz-me.- Não me quero distrair, preocupado contigo.

-Ok.

-Ótimo.

Ele desliga e viro-me para a Cléo. Ela não vai poder ir, dê por onde der.

Enquanto subo no elevador, penso na Cléo, segura e quente no seu apartamento, provavelmente preocupada que eu nunca mais lhe fale. A verdade é que não foi nada disto que eu quis, mas pareceu-me que a única maneira de a manter a salvo era descredibilizar por completo o Harry. Se isso faz de mim uma boa ou má pessoa, não consigo decidir, mas quando o elevador para no oitavo andar e me precipito para a varanda flutuante sou imediatamente trazida para a realidade: lá em baixo, em tronco nu e com o cabelo molhado, um Harry suado e ensanguentado olha para cima. Os nossos olhos trancam de repente e tenho uma sensação estranha no fundo do estômago, que não dura mais do que uns segundos antes de o oponente dele, um homem de quase dois metros lhe desferir um gancho na lateral da cabeça, fazendo-o cair. 

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