Capítulo 4
Enquanto descemos no elevador minúsculo pelo qual subimos, percebo porque é que o Harry me tapou os olhos. Esta coisa é uma jaula de metal minúscula que se balança de forma volátil a mais de oito metro do chão.
-Achas que podemos marcar uma hora para falares comigo?- Pergunto-lhe, na tentativa de me distrair da descida vertiginosa.
-Não estamos a falar?- Ele espreguiça-se e agarra as grades de metal acima das nossas cabeça.
-Sim, mas estamos a falar off the record, não te estou a gravar ou a tirar notas. Preciso da tua autorização.
Harry oferece-me um sorriso frio e assente. Percebo imediatamente que ele não se importa de me mostrar, mas tem dificuldades em falar. Por um momento, fico só a olhar para ele e tenho de conter a cambalhota que a minha mente dá: ele é, irremediavelmente, o homem mais bonito que já vi. Os caracóis escuros caem-lhe sobre a testa, o nariz direito é quase demasiado meigo para o seu rosto, mas o corte afiado do seu maxilar devolve-lhe toda a masculinidade. Reparo com interesse que tem uma cruz tatuada no pescoço, por cima da veia jugular externa.
-Estás a olhar para mim com olhos de assassina.
Num ataque de consciência começo a tossir para disfarçar o embaraço.
-Não, desculpa, perdi-me.- Sinto as minhas bochechas aquecerem sobre o escrutínio dele.
Harry sorri de uma forma particular, sobe o canto direito do lábio e semicerra os olhos, antes de se debruçar sobre mim ainda com as mãos a pairar nas grades acima das nossas cabeças.
-Em mim?- O tom dele é baixo, sedutor e sinto a sua respiração na minha cara.
Como me custa vê-lo ter esse tipo de poder sobre mim, decido jogar uma carta semelhante à dele e meto-lhe a mão no ombro, o que o faz desviar o olhar da minha cara, para a minha mão.
-Isso alguma vez resultou? Com alguém?- Tento o meu melhor tom de engate.
O riso dele espalha-se entre nós e vejo-o afastar-se.
-Quase sempre.
O elevador dá um solavanco e Harry abre as grades que fazem de porta.
-Então eu vou ser a exceção à regra, combinado? - Digo-lhe enquanto tomo a dianteira.
-Posso esforçar-me mais. - Diz-me, enquanto me acompanha até ao ringue, cujas luzes estão agora apagadas.
-Ou podes aceitar que não nos vamos envolver.
-Envolver? És tão querida. - Ele salta para o ringue e puxa-me pelo antebraço para subir para perto dele.
-Poupa-me a conversa de "eu não namoro" ou "é só uma noite", por favor. Somos colaboradores.
Harry desaparece por um minuto e as luzes do ringue acendem-se.
-Colaboradores? A mim parece-me que só eu é que estou a colaborar, não ganho nada em troca.
Agora com as luzes ligadas o ringue ganha outra dimensão e reparo com angústia que o chão ainda está coberto de sangue. Baixo-me e sou incapaz de não pensar naquele homem a desmaiar.
-Se houver alguma coisa que te possa dar.- Murmuro, ainda hipnotizada pelo horror do que se passa neste palco.
O Harry encosta-se às cordas do ringue, testando-lhes a elasticidade.
-Por agora, nada.
Ergo os olhos para ele, desconfiada do tom.
-Por agora?
Ele caminha até mim e pisa o sangue fresco. Baixa-se à minha altura e sorri.
-Vamos concentrar-nos na tua reportagem e depois, daqui a um mês quando a faculdade acabar, vemos se há alguma coisa que podes fazer por mim, sim? Eu sei que tu podes fazer muito pelas pessoas.
Engulo em seco, desagradada pela conversa.
-Eu ou a minha família?
-É a mesma coisa, docinho. Eu preciso de ajuda, não quero esta vida para sempre. - Num gesto descontraído ele dá um pontapé no sangue e o meu estomago revira-se.
-Eu vou ver o que posso fazer.- Sussurro. Sei que estou a mentir, pelo menos em parte, mas ele não precisa de saber que não falo com o meu pai.
-Vais fazer melhor que isso. Não há nada que o Doutor George Beaufort não consiga em Seattle.
Irritada, levanto-me e cruzo os braços.
-Há alguma coisa em específico que queiras? Não estou a perceber o que teu tom.- Cuspo, furiosa.
Harry levanta as duas mãos no ar, num claro sinal de paz. Arrependo-me imediatamente de ter reagido assim, mas parece que sou incapaz de dar dois passos sem que o meu pai se atravesse no meu caminho.
-Tópico sensível? - Pergunta-me.
-Não, só que até há dois dias não querias nada, agora esta conversa sobre a minha família...
Harry morde o lábio inferior pensativo e aproxima-se de mim, o dedo indicador ergue-me o queixo e dou-lhe um abanão o que o faz sorrir.
-Tudo nesta vida tem um preço, Cam, o teu pai deve ter-te dito isso.
-Muitas vezes.- Não recuo.
-Às vezes o preço é imediato, outras, demora anos a chegar... mas no fim, pagamos todos a nossa conta.
-Eu não te vou a ficar a dever nada. Se é um emprego que queres, é isso que te vou arranjar.
Harry encolhe os ombros e vira-se. Uma bola de irritação cresce-me no estomago e tento lembrar que ele consegue ser uma pessoa engraçada quando quer, mas subitamente, neste sítio, parte da pessoa que falou comigo há apenas umas horas desapareceu.
-Se calhar. - Experimento.- Devíamos só encontrarmo-nos por razões profissionais. Acho que vires ter comigo, sem combinarmos, pode não funcionar.
Vejo compreensão passar-lhe pelos olhos numa pelicula fina.
-Desculpa. Estou a ser demasiado direto? Achei que querias estabelecer regras, para além da treta de não nos beijarmos ou fodermos. Embora estejamos os dois disposto a isso.
Passo os dedos pelo cabelo, exasperada.
-Tens te em grande conta, tu.
-É preciso, quando se faz o que eu faço.- Ele aponta para o ringue.
Decido mudar a direção da conversa.
-Quantos combates perdeste nas últimas semanas?
Lembro-me de ele me dizer que tinha posto um tipo em coma, quando nos encontrámos. Devia estar com medo, mas alguma coisa nele me deixa mais irritada do que assustada.
-Nenhum.
-Ok. Então e nos últimos três meses?
Harry abana a cabeça e puxa os lábios entre o polegar e o indicador.
-Seis meses?
O olhar nulo dele deixa-me incrédula.
-Não me lembro da última vez que fiquei inconsciente. - Diz-me, enquanto salta do ringue e começa a desligar as luzes, uma a uma.- Deixo que me atinjam algumas vezes, torna o espetáculo interessante, sabes?
Menos uma luz. Menos duas. As luzes vão se apagando à minha volta e vou seguindo o padrão, numa tentativa de me manter à tona.
-De propósito? Deixas que te batam só porque sim?- Estou chocada.
-Gosto de ser imprevisível. Ao contrário do teu namorado e as camisas dele.
A última luz apaga-se e fica apenas um holofote por cima de mim.
-Ele já não é meu namorado.
Harry salta de novo para dentro do ringue.
-E que reviravolta interessante, não achas?
-Isto está a ficar muito pessoal.- Sussurro-lhe.- Podemos ir?
A última luz apaga-se sobre mim e fico no escuro, há espera que ele me venha buscar, enquanto toma uma nota mental de nunca mais vir atrás dele.
***
Sextas de manhã não tenho aulas, e o que geralmente é uma boa desculpa para ficar a estudar ou a dormir, hoje tornou-se uma praga. Enquanto espero que alguém de casa me abra os portões duplos da entrada à propriedade. Quando venho a casa, tenho a sensação de que vivo em dois mundos diferentes. De um lado existe uma vida pacata, livre de dramas familiares e relativamente aborrecida e do outro, uma vida hiper estimulante onde nada nem ninguém está satisfeito, por muito que tenham.
-Miss. Beauford.- O segurança sorri-me e abre-me os portões.
-Obrigada, Gary e o meu nome é Cam.
Arranco com o carro e preparo-me para a viagem de cinco minutos que me leva até "casa". Os telhados pretos fazem-se ver de longe e rapidamente começo a ser cega pelo reflexo do sol nas vidraças gigantes que adornam as paredes de casa. Numa visão excêntrica de moder tudor, como o meu pai lhe chama, a casa que ele construiu para a família parece tirada de um postal. Várias vezes, enquanto crescia, via pelos olhos dos outros que este nível de riqueza não era uma coisa normal, lembro-me da filha da Maria, a nossa cozinheira, adorar vir para cá nos verões e de me dizer que quando crescesse, queria dar uma casa assim à mãe. Foi só com o tempo que percebi que a minha casa perfeita, era o lar de uma família destinada ao fracasso. O meu pai nunca estava em casa, a minha mãe perdia-se sem ele, a minha irmã foi enviada para um colégio na Suiça e eu fui crescendo no meio das feridas que iam cicatrizando, até eu própria me ter tornado uma sombra.
Travo o carro de repente, quando o cão da minha irmã, Noodles, se atravesse à minha frente.
-Merda!
Rose vem atrás dele e pega-lhe ao colo.
-Ias matando o Noddles!- Grita-me.
Saio do carro, completamente desnorteada.
-Ele é que se meteu à minha frente!
Ela abraça-se ao cão de pelo branco e brilhante e o cabelo dela confunde-se com o dele. Não percebo a obsessão com o loiro platinado, que a impede, entre muitas coisas que ela adora, de nadar.
-Estás mais loira.- Digo-lhe e vejo um par de olhos castanhos escuros virar-se na minha direção.
-Se isso é um elogio ou uma ofensa, nunca vamos descobrir. Não é?- Rose abraça-me com um braço e ri-se.- Desculpa, ando nervosa com um caso que estou a defender e nem dei por ele escapar.
Ela passa-me o cão para os braços e sorrio.
-Ias dar um belo tapete.- Rosei dá-me uma palmada brincalhona no braço.
-Ouvi dizer que acabaste com o Max. O pai está furioso.
Passo-lhe o cão e apanho o cabelo.
-Não está sempre?
Sigo-a em direção a casa, e juntas subimos os degraus de mármore que nos levam a uma porta de quase dois metros.
-Vieste meter juízo na cabeça do pai? Dizer-lhe que é um filho da mãe sem escrúpulos?
Rose abre a porta e sou imediatamente atingida pelos dezasseis graus que o ar condicionado mantém, independentemente da altura do ano.
-Não. Ele contratou um advogado especialmente machista para tratar do assunto e a mãe recusa-se a pedir-me ajuda.
-Porque é que ela ainda não se foi embora? - Pergunto enquanto caminhamos pelo corredor e as luzes se vão acendendo à medida que passamos.
-Ela acha que se for, ele vai achar que ela desistiu. Neste momento esta casa é Berlim, e o muro nunca foi tão alto.
Noodles é posto no chão e quase imediatamente o poodle branco corre de volta para a rua.
-Não!- Rose corre atrás dele e sou deixada sozinha.
Fico a olhar para o cão e para o seu apetite por liberdade e de alguma forma, quase que o compreendo. Ando há quatro anos a tentar escapar a esta casa e mesmo assim, mesmo tendo metido o pé fora dos portões, ainda me sinto presa. Ainda sinto que estou a fugir, ainda sinto que por muito que corra, estou sempre no mesmo lugar e tudo porque fui incapaz de ser o que devia ter sido.
-Ora, ora, se não é a minha doutora preferida.
A voz do meu pai viaja do piso de cima e levanto a cabeça para lhe encontrar os olhos brilhantes, vivazes e cheios de reprovação.
-Pelo menos desta vez só partiste um coração, não mataste ninguém. - Diz-me, como um verdadeiro soco no estômago.
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