Capítulo 1
A respiração saia-me em túneis de fumo trémulos, enquanto eu tentava a todo o custo racionalizar a situação: estava sozinha, às duas da manhã, numa rua escura. Parecia-me o cenário ideal para a) desaparecer, b) morrer ou c) as duas opções anteriores.
Para agravar o cenário de filme de terror, o som pesado de um par de botas flutuava pelo ar e eu tinha de me manter firme, enquanto apertava a carteira debaixo do braço.
O meu plano, caso as coisas corressem mal, era simplesmente oferecer-lhe dinheiro. Sim, isso seria capaz de o convencer, ou pelo menos podia comprar-me tempo.
Voltei os olhos para o céu, a perguntar-me se estaríamos a chegar a uma área mais iluminada ou residencial, quando a luz do candeeiro ao fundo da rua se apagou e eu estaquei, aterrorizada.
-Tem calma. - Sussurrei para mim mesma.
A luz voltou, mas o meu alívio não durou mais do que uns segundos. Ele já não estava aqui. Olhei à volta, em pânico, mas não havia vestígios de que ele alguma vez aqui tivesse estado. Foi só quando dei um passo em frente que o coração se me partiu aos pés. O meu pulso foi torcido numa manobra exibicionista e o meu grito não passou da palma da mão dele.
-Porque é que me estás a seguir? – O sotaque inglês atingiu-me com força e senti os lábios dele mexeram-se contra a minha orelha.
Tentei lembrar-me de que era isto que eu queria. Falar com ele.
-Hum? - O tom grave ribombou-me pelo corpo.
Senti a mão dele deslizar-me da boca com alguma cautela e suguei o ar rápido.
-Eu que... queria falar contigo. – O pânico na minha voz fez com que ele se risse, de uma forma arrogante e ao mesmo tempo desconfortável. - Estás a magoar-me.
Ele sugou o ar por entre os dentes num assobio e puxou-me mais para perto dele. Conseguia sentir-lhe o coração das costas.
-Não mintas. – Sussurrou-me, enquanto me torcia ligeiramente mais o pulso. Ainda não doía, mas quase. - Se te estivesse a magoar, ambos saberíamos porque já estavas a gritar, não é?
Olhei em frente e tentei manter-me focada na luz do poste traiçoeiro que se apagara instantes antes.
-Eu não preciso de gritar, não estou com medo.
Num toque suave, com a mão que me prendia, ele passou-me o polegar de forma meiga pelo interior do pulso.
-És uma péssima mentirosa. - Ele pressionou-me as veias no pulso e de repente fiquei consciente da velocidade a que batia o meu coração. – Queres mesmo que eu acredite que não tens medo?
Sentia a mão livre dele no meu queixo e quando tentei soltar-me ele agarrou-o com mais força.
-Fica quieta... – Senti a respiração dele na minha nuca. - Queres mesmo que eu acredite que, neste momento, não estás a pensar em todas as coisas horríveis que eu podia fazer?
Os dedos dele desceram-me para o pescoço e engoli em seco.
-Eu tenho dinheiro. - Dei-me um estalo mental por soar tão desesperada, mas o toque dele estava a tornar-se demais. - Se falares comigo, posso pagar-te.
-Estou a ver. Agora sou uma espécie de prostituta?
Eu devia ter ficado nervosa com a pergunta, mas começava a irritar-me estar de costas para ele.
-Podes largar-me?
Senti-o encolher os ombros.
-Não vou mentir que me está a saber bem abraçar uma miúda depois de ter passado a noite a bater em matulões de dois metros.
Num impulso de coragem empurrei-o para longe e para minha surpresa, ele deixou-me ir.
-Eu enviei-te emails. Telefonei-te. – Eu era a coisa mais parecida que ele tinha de uma stalker.
-Não costumo responder a emails e falar ao telefone é o flagelo da nossa geração, miúda.
Dei um passo em frente, zangada.
-Então sabes quem eu sou?
Ele não se deixou ficar e também deu outro passo em frente. Era bem mais alto do que eu, o seu queixo flutuava ainda a dez centímetros do topo da minha cabeça.
-E tu? Não sabes quem eu sou? Não devias estar apavorada?
Como se estivesse de frente para um canhão, os zumbidos sobre ele varreram-me de uma assentada: ele tinha matado o pai, ou pelo menos, era isso que se dizia. Este não era um rapaz com o qual eu me quisesse meter, na verdade devia ter virado costas a esta reportagem desde que Cléo ma tinha proposto, mas alguma coisa no facto de nunca ninguém ter conseguido chegar a um lutador ou apostador clandestino, fazia-me sentir um formigueiro no corpo. Eu sabia o que era, era o meu ego, a minha necessidade de provar que conseguia.
-Eu só quero falar contigo. Se falares comigo, talvez possamos limpar o ar à tua volta.
Um sorriso torto e dissimulado brincou-lhe na face e fui obrigada a admitir que apesar de tudo, ele era, inegavelmente, atraente. Vi enquanto ele tirava um cigarro do bolso de trás das calças e o acendia. A chama do isqueiro iluminou-nos as caras e vi o verde dos olhos dele transformar-se em fogo líquido.
- O ar à minha volta está podre. Fazias bem em lembrar-te disso.- Numa tirada de génio, ele deixou o fumo sair-lhe dos pulmões.
Tentei a minha última tática: aligeirar.
-Eu não tenho medo.
-Pensei que tínhamos chegado à conclusão que estavas a mentir.- Ele deu outro trago no cigarro.
Reuni toda a coragem que consegui.
-Ouve, Harry, eu sei que isto não é da tua conta, mas eu quero muito fazer uma reportagem sobre os combates ilegais. Quero perceber as mecânicas, não vou usar o teu nome...
-Pois não. Não vais.
Ele estava a dar-me uma nega.
-Eu sou uma boa jornalista, posso enviar-te o meu portefólio. Estou no último ano de jornalismo, esta peça... esta peça podia ser tudo.
Harry atirou o cigarro ao chão e pisou-o. Aproximou-se de mim com uma calma aterrorizante e ficou a pairar-me sobre o corpo.
-Ouve, Camelia, não é? Olha, não me leves a mal, mas eu ganho a vida assim, percebes? Duas noites por semana vou a um sítio merdoso, espanco três ou quatro gajos e volto com dinheiro e sangue nas mãos.
Como que para provar o seu ponto, mostrou-me as costas das mãos, ensanguentadas.
-Não me parece que aguentes um sítio daqueles e muito menos que me aguentes a mim e sinceramente, não me apetece meter isto tudo em causa porque uma menina mimada e rica que quer ganhar o pulitzer das universidades. Ok?
A frase tinha sido toda muito ofensiva, mas eu ainda estava para na primeira parte.
-Eu aguento.
Ele olhou para o céu negro, exasperado.
-Para de mentir. Tresandas a medo, se estivesses confortável em falar comigo nunca me tinhas oferecido dinheiro.
-Tu agarraste-me.
-Porque me estavas a seguir. Acabei de meter um gajo em coma, é óbvio que achei que alguém me vinha pedir a desforra!
-Dá-me uma oportunidade! Eu só quero saber...
-Saber o quê? - O tom estava a escalar rapidamente.
-Saber porque é que fazes isto! Porque é que as pessoas fazem isto!
-Porque é dinheiro fácil e eu sou muito bom a magoar os outros.
A esta altura ele estava, de facto, em cima de mim. Os olhos calmos tinham sido substituídos por uma raiva quase demasiado familiar e quando tentei dar um passo atrás, fui surpreendida por uma luz vermelha e azul. Era à polícia.
-Está tudo bem, aqui? - O agente baixou o vidro e olhou para nós, desconfiado.
O agente tinha a mão no cinto de segurança, prestes a tirá-lo para vir cá fora. Pelo canto do olho, vi o Harry enfiar as mãos ensanguentadas nos bolsos.
-O rapaz está a incomodá-la, menina?
-Não, estávamos só a falar. - A voz saiu-me trémula, o que só deixou o homem mais desconfiado.
-Daqui não parecia nada.
-Foi só um mal-entendido de namorados.
O Harry olhava em volta, e reparei que o polícia se esforçava por o reconhecer na escuridão da noite. Num impulso, que talvez viesse a odiar para o resto da minha vida, virei-me para ele, agarrei-o pelo pescoço e trouxe a boca dele de encontro à minha. O silêncio da noite tornou-se ensurdecedor e conseguia ouvir o sangue latejar-me nos ouvidos. Ficou tudo mais intenso quando ele me enfiou as mãos no cabelo e tomou as rédeas do beijo. A boca dele abriu-se sobre a minha, a língua exigente e possessiva e tudo o que eu podia fazer era correr atrás dele.
-Miúdos. - Ouvi o polícia dizer, antes de se afastar com o carro.
Quando deixámos de ouvir o motor do carro, ele mordeu-me o lábio inferior com força.
-Au.- Queixei-me, afastando-o.
Ele tinha os olhos fechados, mas vi-lhe um sorriso nos lábios.
-Desculpa. - Sussurrou. – Foi de propósito.
Bati-lhe no peito, com descaso, e depois arregalei os olhos. Acabara de bater num tipo que ganhava a vida a desfigurar os outros e a aterrorizar meio campus da faculdade.
-Desculpa. - Fiz-lhe uma festa no peito por instinto e percebi que era só patética, ele não tinha sentido nada.
Harry passou os dedos pelo cabelo, como que para aclarar as ideias e virou-se de costas.
-Se era isto que queria, podias ter pedido. - Ele encostou o antebraço a uma árvore e sorrio, presunçoso. - A minha casa é um quarteirão ali em baixo e não precisamos de falar.
-O quê?! Não! - Exclamei, horrorizada. - Eu não te queria beijar, mas o homem estava a olhar para ti, achei que te estava a tentar identificar ou assim... só fiz isto para te salvar a pele.
-Ele estava a identificar-me. Dou aulas de boxe às filhas dele num ginásio aqui perto.
Harry riu-se. Uma gargalhada rouca e poderosa que encheu o espaço à nossa volta.
-O quê? - Eu não podia ser assim tão estupida... podia?
-Vocês, meninos ricos, tem esse complexo, não é? De salvar os pobres e oprimidos... eu não preciso de ti, miúda, quando muito, és tu que precisas de mim.
A humilhação da situação toda, desde o ter seguido, à parte em que lhe ofereci dinheiro e a seguir o beijei tornou-se demais.
-Ótimo, já percebi. Achas que sou ridícula. Obrigada pelo teu tempo.
Ele encolheu os ombros e virei costas. A onda da vergonha varreu-me e sentia as bochechas aquecerem. Eu sabia que nunca devia ter saído de casa, que nunca devia ter aceitado fazer esta reportagem e que ninguém, jamais, salva o grande e poderoso Harry Styles de nada.
-Vou ter um combate na sexta. Industrial District. Envio-te mensagem com a morada.
Quando me virei para trás, já ele seguia na direção oposta à minha, o capuz da camisola a esconder-lhe os caracóis e o corpo dele a desaparecer na escuridão.
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