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Diz a lenda que, certa vez, um homem saiu de casa e se deparou com um leão feroz. Logo após por pouco escapar com vida, na próxima esquina, deu de cara com um urso.
Foi aí que deve ter pensado "que diabos, hoje não é o meu dia" e voltou para casa, onde se imaginou seguro.
Quando finalmente pôde relaxar, uma serpente o mordeu.
Estava escondida na parede. Dentro de casa.
Às vezes me pergunto o que imaginam quando me vêem. Se, por acaso, às vezes olham para mim e pensam "pobre, pobre menina, de que inferno terá saído?". Se meneiam a cabeça em particular e sussurram "sorte dela que tem a nós". "Nós a libertamos de sua miséria".
Será que os surpreenderia saber que eu era parte da elite do meu país? Que meu pai era um professor e minha mãe uma atleta de sucesso? Que, antes da Guerra, tínhamos uma vida pacata e confortável?
Mesmo depois da Peste.
Epidemias já tinham varrido a nação. Os mortos se espalhavam pelas ruas. E não havia mais suprimento suficiente de remédios ou alimentos, com tantos inválidos. Ao mesmo tempo, vieram os terremotos. As tempestades, com suas companheiras enchentes. O mar que vez após vez se esforçou por nos engolir.
De tudo isso, eu ainda estava relativamente guardada. Ou assim eu pensava. Mesmo assim, desde meus primeiros passos, refugiados em nossos abrigos, nós treinávamos. Tudo para um dia virmos todos para Tibbutz.
Aí vieram as bombas.
O quê? Será que os espantaria saber que a fome e a morte não nos tornaram mais humanos? Que quanto maior o sofrimento, tanto maior o sofrimento? O que talvez soe para quem não o viveu elíptico e redundante, mas uma coisa é o tormento suportado e o outro é o causado por nós mesmos. Um sendo alimentado pelo outro num ciclo vicioso sem fim.
A tranquilidade que vivemos nos meus primeiros anos de vida era ilusão, mas eu não sabia. Jamais estivemos protegidos da guerra.
E nós não podíamos nos esconder, apenas fugir.
Mas, agora?
São tempos maravilhosos de paz.
Separados de tudo que nos ameaça.
Eu estava desarmada.
Não há nada pior do que quando você para de esperar o pior —
e ele
inevitavelmente
acontece.
* * *
O piso infinito de estrelas desagua numa cavidade circular profunda, como um buraco negro, próximo à floresta. Quando o campo não está decorado dessa forma para uma festa, é apenas um antigo poço.
E é ali que uma multidão começa a se reunir.
— Juro que não fizemos nada! Ela caiu sozinha! — uma garotinha ruiva grita, histérica.
Está cercada de outras crianças que têm o mesmo olhar que já presenciei tantas milhares de vezes. O olhar dos campos de guerra. A tentativa vã de apreender o inapreensível. Vivenciar o impronunciável.
Eu me sinto entorpecida enquanto sigo Raah e os outros até o local exato. Amartia segue logo atrás de nós, com o rosto pálido de choque e apreensão.
Passo a passo, meu estômago já se embrulha, sofrendo por antecedência a imagem que me espera. Era assim, toda a minha vida, a cada esquina dobrada, a cada porta fechada — o que encontraremos? Meu Deus, o que encontraremos?
Mas não a Tink!
Há um certo tipo de pessoas que são como pintadas com uma paleta diferente de cores das que estamos acostumados. Aí imediatamente já sabemos: não, essa pessoa nessa situação não. Nesse quadro não combina. É como uma colagem mal-feita; não dá para acreditar que seja verdade.
Mas ali está ela. Deitada no profundo do poço, emoldurada por galáxias num quadro surreal belíssimo, os cabelos dourados espalhados em todas as direções, as penas de pavão completamente retorcidas e uma perninha enviesada num ângulo humanamente impossível, numa articulação que não existe.
Pessoas protegidas demais, desacostumadas demais com a morte, não podem suportar uma cena assim. Algumas já começam a vomitar. Outras adolescentes, no entanto, num canto, comentam algo e riem.
É uma atitude de auto-preservação? É crueldade? Por quê?
Olho novamente para baixo e, ali naquela posição horripilante, Tink pisca algumas vezes. Quando ela me vê, logo acima dela, lentamente, estende uma mão para o alto, como se me chamasse.
Num impulso e para a surpresa de todos, salto sobre a borda do poço, me seguro numa extremidade e deslizo, apoiando-me nas laterais, sem nem sequer refletir sobre o que poderia acontecer comigo. Ouço a arfada coletiva e o alívio que se segue, quando caio num impacto duro e dolorido, mas intacta. Não me permito concentrar na dor. Eu me coloco de joelhos ao seu lado e acaricio seus cabelos sobre a testa, enquanto o socorro vem.
— Como você está, minha linda? — pergunto, tentando mais me reassegurar do que a ela.
— Já estive melhor — ela tenta brincar com uma voz trêmula que denuncia o quanto deve estar agonizando. — Mas a vista daqui é bonita — completa, acenando levemente com o nariz para o céu estrelado acima de nós.
Suspiro de alívio e, pela primeira vez, me permito sentir toda a emoção do momento. Ondas de amor e dor e alegria e medo e arrependimento. Eu rio e dos meus olhos mareados escapam lágrimas. Alguns homens vestidos de uniforme de trabalho chegam com uma escada, uma maca, algumas cordas e com muita eficiência montam um esquema de resgate.
Quero tanto abraçá-la, apertá-la, brigar com ela, pedir perdão mil vezes, jurar nunca, nunca mais sair do seu lado e, se possível, quebrar minha própria perna por castigo, empatia, remorso ou o que seja.
— Oras, se não temos aqui uma heroína de vestido — Amartia declara, sem expressão, assim que ambas somos retiradas do poço.
Raah não parece notar a ironia ou a acidez em seu comentário, quando completa:
— Verdade. Se isso não provar seu valor para a Cúpula, eu não sei o que o fará.
Sinto meu rosto queimar.
— Eu não fiz nada. Só quis estar ao lado dela.
Dou de ombros para indicar minha indiferença com o ocorrido, mas por dentro estou reluzindo de orgulho. Eu fiz o que achava que qualquer um faria, mas a verdade é que fui a única que o fez. Essa, com certeza, é a minha singularidade.
Embora... sejamos justos, ninguém mais ali falhou tanto quanto eu. Ainda preciso implorar por perdão por ter quebrado minha promessa, tê-la abandonado e beijado o pescoço de seu irmão.
Isso não soa nada bom.
— Alguém já sabe o que aconteceu? — pergunto ao Raah, logo que carregam a maca para o Centro Hospitalar, mais para distrair-me dos meus pensamentos do que para realmente descobrir o motivo da tragédia.
A multidão de curiosos não se dispersa. Ela se divide em grupinhos que se ajuntam para troca de ideias e teorias e informações. Tibbutz realmente não está acostumada com desgraças.
— Eu não sei — ele diz, parecendo um pouco tenso novamente. — Algumas pessoas disseram que ela se desequilibrou sozinha. Mas eu sinceramente não sei o que minha irmã estaria fazendo tão perto da beirada. Não parece o tipo de coisa que faria.
— O que você acha que aconteceu? — pergunto retoricamente para que ele perceba o absurdo das suposições restantes, no caso de a única possibilidade mencionada ser eliminada. — Que alguém a empurrou?
É só quando pronuncio essas palavras e o olhar gélido de Raah me provoca um arrepio que percebo que não é tão absurdo assim.
Ele realmente acredita que alguém possa tê-la empurrado.
E essa revelação é para mim como o golpe final que estilhaça todas as minhas ilusões. Mais uma vez. Porque, mesmo em Tibbutz, um lugar onde todos têm tudo e não haveria jamais qualquer motivo para qualquer tipo de maldade, não estamos protegidos.
Esse é o nosso predicamento irrevogável, criaturas do universo:
Onde há seres humanos, há crueldade.
Jamais estamos efetivamente seguros.
Porque o verdadeiro perigo rasteja entre as paredes da nossa tranquilidade.
Do nosso coração.
Começa no meu estômago e se espalha para o meu peito: o pânico. A paranoia. A histeria. Esse choque infantil de perceber que não estamos entre amigos.
Sinto a pulsação no meu pescoço, o fôlego superficial e sem forças, e olho para cima, provavelmente num instinto primitivo de buscar ajuda.
É aí que eu o vejo.
Nota da Noemi:
"Eu o vejo"?! 👀 quem???
A história talvez esteja um tanto tensa agora, mas preciso dizer... Fiquei tão feliz com os comentários no capítulo anterior 😍🤗 é esse tipo de coisa que motiva um escritor. Muito obrigada! 😍 não desapareçam pfv
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