26
O aroma de milho tostado misturado ao cheiro de madeira queimada é suficiente para quase me fazer desmaiar de fome. Mal consigo registrar o quão quentes os grãos estão ou sequer o fato de que são os milhos mais estranhos que já vi na vida, conforme eu os abocanho diretamente no sabugo.
Kravz deve ser um campeão do auto-controle. Porque sou testemunha ocular de que ele está o mesmo período de tempo que eu sem comer e teve a mesma quantidade de exerção física, mas em vez de devorar imediatamente o pouco que conseguimos coletar, ele apenas segura a espiga que tem entre as mãos e me observa com um sorriso intrigado, como se eu fosse um animal interessante, digno de estudo.
— O quê? — pergunto, erguendo o queixo, antes de terminar de mastigar.
— Nada. — Ele abre um sorriso enorme, o que acaba por contradizer a afirmação.
Seu rosto está manchado com uma lama da mistura de terra e suor, o cabelo desgrenhado apontando em todas as direções. Não devo estar muito diferente. Mas nele, a aparência maltrapilha é destacada pela massa preta que cobre o nariz que quebrei antes de sermos transportados para o mundo dos Imperdoáveis.
Sander está sentado num tronco caído, coberto de musgo, enquanto eu escolhi me acomodar sobre uma rocha plana, um pouco mais baixa que o tronco, embora tivesse espaço ao seu lado. Os assentos naturais parecem ter sido dispostos propositalmente, pela forma que estão localizados em posições estratégicas em semi-círculo ao redor de uma grande fogueira. Mais adiante, há uma tábua de madeira erguida em uma elevação no solo, o que se assemelha a um pódio e um palco.
Jogo o sabugo vazio ao chão de terra entre nós dois. Só aí que Sander eleva o milho multicolorido das mãos até o rosto, fecha os olhos, aspira o aroma e começa a saboreá-lo lentamente.
Meu estômago protesta diante da visão com um redemoinho raivoso e barulhento.
O rapaz parece perceber algo, a julgar pela forma que o movimento de suas mastigadas se torna ainda mais lento ao ponto de quase parar, conforme ele me encara, com sobrancelhas erguidas.
— Quer mais um? — pergunta, apontando para dois milhos intactos, afundados num balde de água, ao seu lado.
Tibbutz deve ter me deixado muito mal acostumada, porque eu já soube coletar comida muito mais rápido do que o fiasco de hoje. Talvez porque eu estivesse exausta e tonta de fome. Ou simplesmente não estivesse preparada. Pois eu não sabia que o ronco da máquina de transporte levando embora quase todo o estoque de milho fosse o tiro de largada para que todos os imperdoáveis saltassem como animais selvagens atrás das espigas caídas esquecidas no chão. Sander conseguiu fazer uma coleção própria admirável.
Eu fui relegada a uma única desculpa de espiga murcha que sobrara.
Faço uma careta e dou de ombros. Naturalmente meu orgulho é maior do que minha fome.
— Como queira. — Ele dá de ombros também.
Tento pensar em outra coisa, ignorar o aroma irresistível e as pontadas no meu estômago.
— Hmm. — Sander geme de prazer. — Está muito bom mesmo. Uau. Incrível — diz e exagera o movimento de sua mandíbula fechada, triturando os grãos com entusiasmo.
Apoio meu rosto sobre uma mão, o antebraço descansando no meu joelho e luto para ignorar a provocação.
— Esse só pode ser o melhor milho assado que já comi na vida. — Ele se inclina na minha direção, praticamente esfregando a iguaria fumegante debaixo do meu nariz. Um canto de seu lábio se ergue. — Quem diria que uma coisinha tão sem graça por fora pudesse esconder dentro de si algo tão saboroso, não?
Tento revirar os olhos, mas o aroma me cativa e engulo a saliva produzida em excesso. Um leve gemido escapa dos meus lábios, como o ganido de um cachorro ferido, quando Sander morde os últimos grãos de uma só vez, sem hesitação nem dó. Ele joga o sabugo nu ao chão e eu encaro o resto como a uma tragédia, um acidente, um animalzinho morto. Sander limpa a boca com as costas da mão e consigo perceber o esforço fingido que faz para não rir.
— Você é desprezível — murmuro.
— Desprezível, mas bem alimentado — responde, alongando o corpo para trás e batendo com ambas as mãos na barriga esticada.
— Nada disso faz o menor sentido — esbravejo, de repente. — Fome em Tibbutz não faz sentido! Eles me mostraram o sistema penitenciário. Direitos e dignidade para todos, até para os infratores. Eu vi com os meus próprios olhos.
— Você está esquecendo de algo, docinho.
Eu o encaro, meu queixo tremendo incontrolavelmente. O que fazer quando você descobre que o seu Paraíso sonhado é uma tortura para outros?
— Do quê?
Minha expressão facial deve transmitir o quão perdida e angustiada realmente me sinto diante disso tudo, porque seu olhar imediatamente se suaviza e Sander puxa uma espécie de garrafa que se localizava semi-enterrada ao seu lado e a estende para mim.
— Tome isso.
Aceito o frasco, sem fazer perguntas, e o elevo até meu nariz. Faço uma careta. O cheiro do que quer que há dentro é enjoativamente doce. Não consigo distinguir a cor do líquido. Mas meu estômago se atiça, pedindo por qualquer coisa por conforto. Viro a garrafa sobre os lábios e ingiro o líquido viscoso de uma vez só. Nada mal. Não é tão doce quanto cheira. Queima um pouco na garganta, mas imediatamente me sinto mais calma.
Limpo a boca e analiso mais uma vez a garrafa.
— Não é ruim. O que é?
— Ah, uma especialidade imperdoável — Sander sorri. — O nome é Mashkeoth. Uma bebida fermentada de milho muito especial.
Balanço a cabeça e relaxo os ombros, apreciando o sabor amadeirado e agradável que a bebida deixa na língua.
— Certo — digo, sem conseguir deixar de insistir no tema anterior. — Tibbutz alega oferecer dignidade e direitos para os infratores.
— Nós não somos infratores, somos imperdoáveis — ele esclarece.
— O que isso significa?
— Que somos agora parte de uma categoria especial de seres humanos. — Ele revela abertamente um sorriso amargo e irônico. — Entende? A categoria que mais se aproxima de um cocô.
— Só por serem contra o assassinato de crianças? — questiono, ainda incrédula. — A pena parece extremamente desproporcional ao castigo.
— "Intolerância com os intolerantes" costuma ser o discurso. Tibbutz, em tese, ama e apoia a diversidade, a singularidade de cada um. Aliás, Tibbutz ama e apoia todas as opiniões e ideologias, contanto, é claro, que elas se alinhem com a opinião e a ideologia vigente. Porque... quem ousaria pensar diferente?
— Imperdoáveis? — sugiro.
— Em seus lábios, este é o pior insulto. Pior do que verme, do que qualquer outra coisa. Os próprios Imperdoáveis só começaram a se chamar assim quando um homem os uniu e os motivou a se orgulharem do que são.
Neste exato instante, percebo uma movimentação. Os outros Imperdoáveis se afastam da fogueira e começam a se posicionar nos assentos no semi-círculo. E alguém sobe ao pódio de madeira.
Doutor Salz.
Os olhos de Sander se desviam para ele e brilham de uma forma diferente.
— Ele? — pergunto, surpresa.
Sander balança a cabeça lentamente. E percebo que o tipo de sentimento expresso em seu rosto é muito mais do que admiração ou respeito. É quase... orgulho. Como de um filho para um pai.
— Você nunca fará ideia do que ele representa para esse povo. — Seus olhos se desviam para o chão diante de si e focalizam no nada. — Bem, para todos nós.
— Nós?
— Para nós, sonhadores. Escravos do Destino. Imperdoáveis no coração.
Para nós, sonhadores. Escravos do Destino. Imperdoáveis no coração.
Repito a frase internamente. Gosto disso. Embora não goste e nunca vá gostar da fonte. Não posso depois do que ele fez com a Tinker. Mas soa como algo que meus pais recitariam. Acho que sempre fomos isso também. Pessoas implacáveis na busca pelo algo mais. Incapazes de aceitar de braços cruzados o inaceitável.
— Aqui — Sander retira um milho do balde e joga para mim. Num movimento reflexo, eu o apanho no ar. — Só alguns minutinhos na fogueira e ficará perfeito.
Encaro a espiga na minha mão com a consideração de quem recebeu algo muito valioso, um tesouro. E me sinto estranhamente comovida pelo gesto. Quero agradecer, dizer algo, mas sou interrompida pela voz rouca e profunda do Doutor Salz, que começa a falar algo lá na frente.
Todos imediatamente silenciam numa reverência palpável.
Mas não consigo prestar atenção em uma única palavra. Não com os sentimentos contraditórios se remexendo dentro de mim.
Olho para o rapaz ao meu lado. Seus olhos cor-de-mel concentrados. As sobrancelhas angulares, a mandíbula quadrada, os lábios espessos.
Parece tão de repente apenas um ser humano.
Como? Como pode essa mesma pessoa ter a capacidade de ser tão cruel? Por que usaria uma garotinha para alcançar seus objetivos? Ainda mais uma garotinha tão doce quanto a Tinker.
Quero perguntar para ele. Sinto uma necessidade incrível de tentar entender o porquê, a motivação dentro dessa cabecinha louca.
— O que foi? — Sander pergunta ao me apanhar observando-o com tanta atenção e firmeza. Mas, ao menos dessa vez, não desvio o olhar nem me constranjo.
Por. Quê.
As duas sílabas estão prontas na minha língua, clamando para serem pronunciadas, pedindo o escape.
Os olhos cor-de-mel dessa vez me encaram com uma curiosidade diferente. Um relampejo de algo mais. Afeição? Esperança?
As sílabas me relembram que preciso saber. E que qualquer resposta que me dê jamais será satisfatória. Tinker é inocente. E não merecia isso. E sinto que no momento que eu ouvir qualquer argumentação que utilize para justificá-lo, o ímpeto para odiá-lo só será cada vez maior.
E, por isso, meu coração se retrai e silencia as sílabas.
Talvez eu não precise saber essa noite.
Só por essa noite solitária e difícil, talvez eu possa esquecer que estou acompanhada por um imperdoável, no pior sentido da palavra, e desfrutar.
Pisco as duas lágrimas que se formam no canto dos meus olhos, ergo a garrafa no ar e, me inclinando na direção dele, proponho um brinde sussurrado:
— Para os sonhadores, os escravos do Destino e Imperdoáveis no coração.
Sander me retribui um olhar surpreso e sinto uma satisfação enorme comigo mesma. Quando elevo novamente a garrafa aos lábios, ele deposita uma mão sobre o meu punho erguido, me impedindo de ingerir o resto do líquido.
— Acho... — Seu lábio inferior se estica e contrai e ele parece repentinamente constrangido. — Acho que você não vai querer mais beber disso.
— Por que não? Só porque é um pouco inebriante? — Rio baixinho e reviro os olhos. — É gostoso e me acalma. Ainda não estou bêbada, prometo.
O líquido já está na metade do caminho no meu esôfago quando diz:
— É só que isso é feito de milho... pré-mastigado e cuspido.
E a bebida faz o retorno pelo mesmo caminho que entrou.
Nota da Noemi:
tô muitooo ansiosa pra ler os comentários de vocês! <3 Quanto mais eu perceber que povo tá lendo, comentando e votando, mais rápido posto o próximo capítulo.
Em outras notícias, tenho sentido leves contrações e o bebê não para de chutar de uma forma que parece que ele realmente quer sair :D VOCÊS VÃO SER TIOS/TIAS!!! (LOGO... talvez... espero!)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro