20
Apresentando Dr. Salz por zoesmithereen
— Você está me dizendo que mataram o doutor Kravz? — Meus olhos involuntariamente procuram por Sander, esquecendo-me de que não está aqui. — Achei que não cancelavam pessoas.
— Pelas definições arbitrárias de humanidade estabelecidas pela sociedade, ele não era considerado mais uma pessoa — Dr. Salz explica. — Se tornou dependente, seu desenvolvimento estava em retrocesso e, bem, uma vez administrada a fórmula, estava também inconsciente.
— Mas a decisão não é dos pais? Quem poderia decidir que ele deveria ser cancelado?
— A decisão é dos parentes mais próximos, sim.
— E no caso os parentes mais próximos dele eram...
Uma sombra cobre seu rosto.
— Seus filhos.
* * *
— Então, eles o cancelaram. Os irmãos Kravz mandaram matar o próprio pai!
Pelo amor do Destino. Eu sei que eu deveria saber de que não há nada do que esses irmãos não são capazes, mas até o próprio pai?!
Doutor Salz deposita o prato no chão e se ergue lentamente, com as costas curvas.
— Pelo contrário — ele diz, quando dá um passo torto à frente. — Imploraram para cuidarem dele, para se tornarem seus guardiões legalmente reconhecidos.
— Mas...?
— Nem mesmo o mais velho entre eles já tinha alcançado o Pleno Desenvolvimento e, portanto, não tinha autonomia para cuidar de alguém.
— Então a Cúpula determinou o cancelamento — concluo.
Dr. Salz balança a cabeça, confirmando, enquanto caminha mais um pouco, a passos lentos deliberados.
— Eu mesmo tentei me opor, mas minha esposa... Ela era uma das pioneiras da legitimação do cancelamento. Defendia que era um princípio importantíssimo de uma sociedade livre. Cria que seria uma vergonha para nós se eu me pronunciasse contra isso agora.
— E foi aí que o senhor se revoltou!
— Eu...
Espero, quase saltando do meu lugar de ansiedade por uma resolução satisfatória para essa história.
— Eu aceitei calar-me. Era... minha esposa. Minha família.
— O senhor deixou o seu amigo ser morto — chego à conclusão inevitável, depositando em minha voz toda o choque e a decepção que sinto.
Aparentemente, essa é uma história sem heróis. Um mundo sem corações valentes.
— Eu nunca me perdoarei por isso — ele sussurra rispidamente, quase de forma agressiva.
— Não é o bastante — replico friamente.
Sem que eu queira, meu coração se enche de compaixão por Sander. Por um lado, sei que não posso esquecer que tudo que houve de ruim com a Tinker é responsabilidade desse rapaz. Não é justificável. Jamais. Nesse aspecto, Raah tinha razão. Compaixão pode ser uma doença.
Por outro, consigo imaginar, mesmo que levemente, como deve ser horrível lutar para salvar alguém que você ama e ser impedido de fazê-lo. Isso deve ser capaz de ferir a alma de uma pessoa profundamente.
— Infelizmente, a história não terminou aí — prossegue, inspirando fundo.
Sua cadência narrativa é hipnotizante. Não consigo deixar de acompanhá-lo com o olhar enquanto dá voltas pela caverna, embora eu não saiba se quero realmente saber como essa história termina. Quão pior pode ficar?
— A Cúpula recebeu denúncias. Os meninos expressavam pensamentos não-conformistas. Rebeldes. Eu até mesmo tentei arrazoar com eles pessoalmente; dei argumentos legítimos para sua aquiescência, mas o luto dos garotos se manifestava na forma de ódio pelo sistema que levara seu pai. Confesso que, secretamente, muito intimamente, eu os compreendia. Mas o que deveria eu fazer?
— Alguma coisa — retruco.
— Ah, menina... — Doutor Salz limpa a testa e suspira. — Sim. — Assente com a cabeça. — Eu deveria ter feito alguma coisa. Agora que nada tenho, já me é fácil acreditar que eu seria capaz de sacrificar tudo, se pudesse. Mas quando se tem o tesouro e o conforto nas mãos, tem ideia do quão difícil é abri-las? Especialmente, quando se convence a si mesmo de que mudança não é possível. Que é inútil tentar. Então, para quê se arriscar?
— O que houve? — questiono, ignorando o discurso de justificação do injustificável.
— Foi aí que o menino Kravz... — Ele balança o rosto na direção que Sander saiu.
— Sander — completo.
— Até que o menino Sander explodiu o Centro Hospitalar.
— Como é que é???
Há quase um brilho de divertimento na forma que conta isso.
— Explodiu? Tentou, ao menos — explica. — Da forma mais ridícula e inútil. Um garoto de seus treze anos, criado de uma maneira que sempre fora cercado de cuidados do papai, com uma bombinha que desenvolvera incapaz de qualquer estrago significativo. Basicamente acabou por torrar uma cadeira da sala de espera.
— Oh.
— Se um adulto fizesse isso, como um protesto ou algo do tipo, seu destino seria claro. Ele se tornaria um Imperdoável. Mas um adolescente?
— Cancelado — concluo imediatamente.
— Exato. E assim foi gerada a minha chance para tentar me redimir. Porque antes eu pudera ainda justificar em minha mente que o Kravz já não estava mais em plena consciência e, portanto, não valeria a pena arriscar todo o meu futuro. Mas um jovem? Um jovem em que eu sempre vira o mesmo entusiasmo por conhecimento, o mesmo senso de justiça, que vira em seu pai? Não poderia permitir.
— O que você fez? — Estou ficando cansada de tentar extrair informações. Quero chacoalhá-lo para que ele vá direto ao ponto.
Ele não responde. Doutor Salz ergue uma sobrancelha e me encara, aguardando algo. Que eu adivinhe? Que eu já o saiba?
— Você assumiu a culpa — sugiro.
O sorriso triste que o doutor me dá não contém uma sombra de arrependimento. Parece muito mais com... orgulho.
— Todos sabiam ou imaginavam que eu estava assumindo a culpa do garoto, o que só me fez, naturalmente, ainda mais imperdoável, já que estava me sacrificando por outra pessoa. Um ato de compaixão.
— A grande doença — murmuro.
— E já vi que foi doutrinada em Tibbutz. — Ele franze as sobrancelhas e espalha os lábios num risco reto, o que me faz lembrar muito do Raah quando me repreende.
— Para falar a verdade mais e mais me parece que quem nutre essa tal de compaixão só se ferra. Será que é algo bom mesmo?
Não faço ideia de onde partem essas palavras que saem dos meus lábios, nem sei dizer se meu discurso é sincero ou se estou falando apenas a partir do meu sentimento de revolta de que tudo tem dado tão errado. Talvez eu esteja apenas testando esse Doutor que mal conheço e já teve a capacidade de me decepcionar.
Ele apenas dá de ombros. Bem, se era um teste... não faço ideia se passou.
— E Sander saiu ileso depois do que fez. — Forço o tema de volta ao que interessa.
— Ileso? — Doutor Salz dá uma risada sem humor. — Você conhece o rapaz?
— Ele é... estranho — reconheço.
— Eles sabiam exatamente o que ele fez e sabiam o revolucionário em potencial que geraram. Mas não tinham provas, já que eu era uma testemunha de respeito e estava assumindo a culpa.
— O que aconteceu?
— Se não podiam eliminá-lo, eles podiam quebrá-lo. — O homem cruza os braços sobre a barriga e solta um longo suspiro, com olhos voltados para os próprios pés. — Isolá-lo, forçá-lo a se retrair. Lançado por toda a vida numa vocação que ninguém mais gostaria, uma função solitária e que... costuma atrair a aversão das outras pessoas.
— Sim, eu senti o cheiro. — Confirmo com um sorriso sem graça e meio enojado. — Mas você não se arrepende de sacrificar sua vida inteira por... ele?
— Nunca.
Ele sorri com o que realmente só posso identificar como orgulho. Orgulho de pai. E meu coração se contorce de saudades e nostalgia e luto.
— Como você pode defender os Kravz? Você sabe que eles são contra pessoas... como eu?
— Pessoas como você?
— Você sabe... Gente de fora.
— De onde você tirou isso?
— Todos sabem que os Kravz são contra a imigração.
— Todos?
— Todos em Laguna, ao menos.
Dr. Salz dá mais uma risada sem humor.
— Os Kravz só protestaram uma vez contra o programa de imigrantes, quando decidimos usar isso como argumento retórico para combater os cancelamentos.
— Ah, tá. — Reviro os olhos. — E o que a imigração tem a ver com cancelamentos?
— Nada. Mas a Cúpula usa ajudar os "desfavorecidos" como desculpa para matar crianças. Sugerimos o fim da imigração apenas para demonstrar a hipocrisia do argumento.
— Isso me soa como uma bela desculpa.
— Não posso culpá-la. Mas veja, uma vez que neutralizamos o argumento, esperávamos que o embasamento para esses atos bárbaros se desfizesse. No entanto, o modus operandi é sempre o mesmo: mudar de assunto e desmoralizar o oponente. A argumentação passa a ser outra, sempre que se demonstra a irracionalidade da defesa. E, pelo que vejo, a posição dos Kravz para desfavorecer o cancelamento foi distorcida e divulgada como preconceito contra estrangeiros.
Ainda não plenamente convencida, cruzo os braços e balanço a cabeça. Não consigo evitar a dúvida plantada por essa justificativa: a de que não fazia sentido que eles me recebessem em casa, se fossem realmente contra imigrantes. Por outro lado, Simsom disse que o fizeram porque viram em mim um potencial.
O potencial de me manipular, é claro.
— Em suma... esse menino Kravz... ele não é uma má pessoa. — Doutor Salz prossegue. — É um idealista. E, sim, às vezes um tanto intenso e exagerado e radical nas atitudes que toma. Mas, considerando tudo... Ele temboas intenções.
É por volta dessa frase que meu sangue volta a ferver.
Por quê?
Boas... Intenções.
— Sabe o que diz o velho ditado? — pergunto, irritada, enquanto me coloco de pé e bato no meu uniforme para me livrar do pó. — "De boas intenções, o submundo está cheio". E tem aquele outro, ainda mais antigo, "os fins não justificam os meios".
— Não — ele responde lentamente, cautelosamente. — Mas os fins, às vezes, ajudam a explicar os meios. Mesmo aqueles que por vezes parecem tão incompreensíveis.
Suspiro e luto para não começar a chorar. De ódio, de revolta, de frustração, de pura e intensa tristeza. Oh, céus, se o senhor apenas soubesse os meios que Sander justificou por seus fins.
— Algumas coisas são imperdoáveis — retruco, com a voz trêmula.
— Eu sei. Não é por isso que estamos aqui, querida?
Nota da Noemi:
Quando vocês quiserem mais capítulos, não hesitem em falar nos comentários 😅
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