Quarta-feira de cinzas...

Esperou que o sinal de pedestres virasse para o verde e, a passos largos, atravessou a rua da Consolação. Andou mais alguns passos, subindo os degraus de uma escada com piso em granito levigado, parando diante de moderno edifício. Com a visão ofuscada pela luz do sol, reluzindo na fachada envidraçada, avançou ainda um passo, para que a porta automática permitisse sua entrada no hall nobre.

— Olá, boa tarde.

— Boa tarde, senhor. Que andar deseja?

— Nono andar. Editora Ravacini.

Após os protocolos de praxe, dirigiu-se ao elevador. Durante a subida, repassou mentalmente os principais pontos da pauta. O nono andar, pelo que supôs, era utilizado em sua totalidade pela editora. Tendo desembocado diretamente na recepção, foi atendido por um recepcionista, mas não tardou, de um corredor surgiu um homem. Meia idade, postura ereta:

— Boa tarde — saudou, estendendo-lhe a mão. — Sou Olavo Ravacini, editor-chefe. Suponho que seja Bruno Pereira de Souza Lobo. É um prazer conhecê-lo.

Conduzindo-o à sala de reuniões, ofereceu-lhe água e café, cujos recipientes repousavam sobre uma bandeja numa pequena mesa. Iniciou:

— Sr. Bruno, está inteirado sobre meu caso?

O advogado sorveu o café, seguido de um gole d'água:

— Sim. — E tirou da bolsa a tiracolo uma agenda. — Naturalmente que só fui informado acerca do básico.

Ravacini, desconfiado, perguntou:

— E o básico, o que seria?

Bruno ajeitou-se na cadeira:

— O senhor está sendo processado por difamação, calúnia e danos morais. Tudo porque seu livro "O Mistério dos Doze Profetas", afirma que um homem cometeu crimes de forma surpreendente e, digamos, humanamente impossível.

Ravacini serviu-se de um gole d'água:

— O senhor já leu o livro?

— Ainda não. Fui designado para o caso logo após o almoço.

— Mesmo assim, já tem uma ideia preconcebida: os crimes relatados são humanamente impossíveis...

Bruno riu:

— Pelo pouquíssimo que fui informado, é o que parece... Em primeira análise, algo bem difícil de deglutir.

— Sr. Bruno, segundo o delegado Basílio... O conhece?

— E como não? De antigos carnavais...

— Pois bem, conforme esse nosso amigo em comum, o verdadeiro investigador, diante de um fato, não pode nem rejeitar, nem aceitar. Primeiro ele analisa. E pergunta-se: existe a possibilidade? Portanto, antes de dizer o que é — ou não é, humanamente impossível, que tal saber os detalhes?

— Certo, estarei bem atento a eles. Alerto, contudo, para o seguinte: como seu advogado, o melhor para a sua defesa é que você diga toda a verdade, seja ela qual for.

Olavo retesou a tez:

— A verdade? Ora, o que é a verdade? Uma história sempre possui dois lados, o lado de quem conta e o lado de quem é objeto daquilo que se conta. E um provérbio chinês ainda acrescenta: "Existem três verdades, a minha, a sua — e a verdadeira".

— Sim, eu sei disso... Daí que surge a necessidade de um júri, para decidir entre duas versões: a da defesa e a da promotoria.

Olavo mostrava-se circunspecto:

— Pois bem! A qual dos lados da verdade, então, o amigo se refere?

Bruno colocou a mão direita sobre os lábios:

— Ao único que existe: o verdadeiro! Possuir dois lados é tão somente uma contingência relativa a pontos de vista diferentes, mas a verdade é uma só.

Ravacini mostrou-se intransigente:

— Ora, se um mesmo fato pode ser interpretado de duas ou mais formas diferentes, ainda que eu diga a verdade, ela sempre será apenas a minha versão dos fatos, a minha verdade, não?

Bruno riu:

— Meu caro, não tergiverse, basta apenas que você não minta, ok?

— E o lobo mau? Ele sempre será mau, se apenas ouvirmos a versão do chapeuzinho vermelho.

— Deixe a versão do lobo mau a cargo do outro lado — salientou Bruno. — Agora, sem mais delongas, 'chapeuzinho vermelho', conte-me sua história desde o início.

Olavo respirou fundo, contudo, ainda não com a tensão dirimida:

— Está bem! Vamos do começo...

----------
(644)