Cavaleiro 2
UM CUTUCÃO DOLOROSO NA FONTE O FEZ ABRIR LENTAMENTE AS PÁLPEBRAS.
O grasnar estridente, que soou rente ao ouvido direito, vibrou seu tímpano no fundo da cabeça.
Mas que merda é essa?
Wybert voltou o pescoço para o lado, despertando um torcicolo insuportável, cuja dor serpenteou até algum ponto de sua coluna. Deu com um bico negro, ameaçando furá-lo de tão contíguo. Um pequeno par de olhos vívidos fixava o semblante ainda alterado do cavaleiro, vazios, tais quais dois abismos sem fim.
O corvo crocitou outra vez, terminando de avivar suas capacidades mentais.
— Sai, peste! Sai! — rugiu Wybert, a concentrar as forças que restavam na voz falhada.
A ave gritou, espantada, e se afastou aos tropeços.
Levantou voo, deixando apenas o farfalhar das asas sombrias e um praguejo de desagrado. O cavaleiro carregou o sobrolho.
Ave detestável, praguejou ao seguir, com a vista, o borrão preto, pousar não muito distante dali. Servem apenas para espalhar agouros lúgubres por estas terras.
Eagerhall tentou se levantar, porém, não se moveu.
Maldição.
Algo pressionava sua pelve pesadamente contra o terreno sulcado.
Toda a metade inferior do seu corpo jazia dormente sob três cadáveres empilhados, de peles estufadas e cinzentas. Wybert se desesperou. A possibilidade de ter sido aleijado pela queda o apavorou, pois a maioria dos conhecidos que perderam o movimento das pernas não aguentou a meia-vida a qual foram submetidos, e imploraram pela morte.
— Não, não, não, porra! — clamou, debatendo-se.
Assim que tentou se arrastar dali, o braço de um dos mortos se desprendeu e caiu no rosto de Wybert, impregnando suas narinas com o nauseante cheiro de carne podre. Larvas fervilharam do membro deteriorado, cobrindo sua testa e descendo pelas orelhas e bochechas. O cavaleiro berrou, aterrorizado, e atirou o membro para longe.
Não conseguiu conter o impulso e vomitou em si mesmo.
Angustiado, forçou o tronco e conseguiu, por pouco, arrastar-se para fora.
As pernas formigavam.
O sangue as preencheu gradualmente e Wybert se ergueu, cambaleando até se estabilizar. As solas dos pés ardiam, espremidas nas botas de metal. Um espasmo percorreu a sua espinha, refletindo a dor para as pernas bambas.
Consegui, pensou, profundamente aliviado.
Desanuviou a mente, sacudindo a cabeça. Elevou as sobrancelhas ao contemplar a devastação que se tornara aquele campo de batalha. Centenas de corpos mutilados se alastravam pelo descampado, até o limite da visão. Wybert mal podia enxergar o solo. Corvos sobrevoavam a desolação e bicavam os cadáveres, feito uma nuvem incômoda de espectros carniceiros, enchendo o ar com os seus clamores agudos, atraindo ainda mais deles para o grande banquete.
— Que massacre — rumorejou o cavaleiro, assombrado. — Não houve sobrevivente algum além de mim.
A mesma neblina de antes ainda margeava a terra, servindo como um véu tênue ao acobertar os finados combatentes.
Esse talvez seja o único velório que receberão, admitiu Wybert. Eu duvido que os responsáveis por todas essas mortes paguem para enterrar cada um deles. Eu não me disponho.
Nuvens melancólicas ocultavam o sol, cuja luz descia, tímida, sobre o campo.
Não demorará muito para os deuses lamentarem pelo sofrimento de seus filhos, pressentiu o mercenário.
Um trovão reverberou longínquo nos céus acinzentados.
Wybert estacou.
Parcos pingos gelados tocaram a terra maculada pela crueldade humana. A garoa que se formou lavou o sangue e a morte daquela planície. O cavaleiro, trêmulo, fez um gesto silencioso de súplica.
Aí está o pranto dos Iluminados, como previsto.
Wybert percorreu a região com cautela.
Onde parava a visão, havia um cadáver pálido. Perdera o seu elmo e a espada bastarda, porém sabia que jamais os veria novamente. Sendo assim, nem se deu ao trabalho de procurá-los naquele prado arruinado. Não havia nem sinal de Galã, seu cavalo favorito, que montava desde os quinze anos.
Foi com ele que sobrevivi à minha primeira peleja, no dia em que os abelhões cercaram o nosso castelo, o Solar de Marenoite, a Leste de Marenata, lembrou-se o cavaleiro, cerrando os olhos. Lágrimas solitárias escorreram em sua feição ao apertar as pálpebras, perdendo-se nas gotas torrenciais.
Cheguei atrasado de uma caçada de javalis. Por sermos influentes na Falange do Mar, eles queimaram meus pais vivos e levaram a minha irmãzinha. Nunca mais vi seu rosto alegre, os cachos louros, os olhos azuis tão puros como nunca vi iguais. Os rebeldes destruíram a minha vida. Malditos sejam os Newcastle e toda essa Guerra Civil dos infernos! Minha única escolha foi escapar e integrar as forças dos DuGuerr para obter a minha vingança.
Wybert estudou o cenário que rodeava os restos do combate.
A cerca de três metros do descampado, um lago refletia a imagem tristonha do céu, desenhando círculos perfeitos ao toque da chuva pela superfície serena.
E pensar que há pouco tempo o caos imperava neste lugar.
O cavaleiro caminhou até a margem, desceu a várzea baixa e lavou o rosto e os cabelos.
Sangue e sujeira fluíram junto da água.
Wybert reparou que algo brilhava próximo da beira do lago.
Aproximou-se para averiguar e descobriu um corpo boiando de barriga para baixo, vestido numa túnica rasgada gris e carmesim, espetado nas costas por três flechas de penas amarelas.
É um dos homens do Duque Theobald DuGuerr, que provavelmente morreu antes de tocar na água.
Pôde ver o cabo de uma lâmina na lateral direita, saindo de dentro de uma bainha de couro fervido que pendia do cinto de espada.
O cavaleiro retirou o armamento com cuidado e observou o fluido transparente escoar pelo fio lustroso.
Você não precisará disso de qualquer maneira, disse ao defunto.
Wybert cravou a espada na terra e sentou-se na borda do lago, perdendo-se em seus pensamentos e no reflexo turvo das nuvens.
O que farei agora?, perguntou-se, transtornado com tudo que lhe acontecera. É provável que eu tenha sido o único sobrevivente dessa desgraça toda, logo, a vitória é dos DuGuerr, raciocinou o cavaleiro, incerto. Devo retornar ao Burgo de Gatesby, para reportar a vitória ao balofo do Duque. Bem, ao menos terei minha recompensa, afinal, não fiquei vivo à toa.
Um ganido inumano interrompeu o seu momento de reflexão.
O cavaleiro apurou a visão.
Veio da planície, arriscou, atento.
A água oscilava no perímetro onde flutuava o dono da espada. Um bando turbulento de corvos irrompeu atrás de si, do coração da campina, alarmados pela intensidade dos gralhares.
Wybert apertou o cabo da arma prostrada no solo.
Alguma coisa espantou as aves. O que diabos está acontecendo aqui?
Subitamente, o chão tremeu sob seus pés.
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