IV - Na Loja de Artefatos Mágicos
Gjyshja resmungou franzindo o cenho pela quadringentésima vez e sacolejou os ombros, a cabeça levemente tombada para a diagonal, os olhos esquadrinhando o Profeta Diário. Bebericou o chá de hortelã e resmungou outra vez, tampouco parecera incomodar papai, que lambuzava de geleia de maçã uma torrada, salpicando-a em canela em seguida. Mordeu-a com robustez, os olhos muito castanhos no diário de crimes aberto sobre a mesa, e mamãe suspirou deste lado, o rosto enrijecido, odiava quando alguém — qualquer um — não demonstrasse pleno interesse na família ou outro emprazado presente à mesa. Buscou pela espátula — o marfim espelhando as flores no cântaro recém colhidas do jardim — assim que papai a deixou sobre a talha translucida, e me sorriu amarelado, remetendo a atenção ao seu prato.
Henry encheu-me meia xícara de leite morno e completou-a com mel, suco de ervas e folhas de melissa banhada a caldo de gengibre, salpicou-a em canela e bebi em silêncio, ninguém — exceto mamãe talvez — parecia exatamente disposto a puxar assunto, algum tipo catártico de malquistar atenção. Fora assim desde a discussão na sala de estar, e nem gjyshja ou mamãe pareciam atreitas a ideia de relembrar este dia que me resguarda como um cúmulo: a carta velada à gaveta, a ferida incurável ainda aberta no peito. Era demais para remoer; para exercer acepção, e por mais convencida que pudesse estar da responsabilidade de perdoar, o gosto amargo na boca — esse que não me deixava apreciar meu chá favorito por exemplo —, ele não me deixava render ao ato de perdoar tão facilmente, e isso é algo muito difícil de explicar; de por em palavras. Pois veja, insistir em algo que sabemos que é errado pode ser uma opção, e eu escolhi fazer o certo: é minha avó, minha gjyshja, que ama a minha mãe, e a mim, e ao meu pai — eu creio — apesar dos ressentimentos tortuosos. Perdoá-la é o que quero, e não consigo nesse momento porque dói-me o peito. Fá-lo-ei quando estiver pronta para isso.
— Com licença, senhorita Antares — disse Henry vindo da sala, uma corujinha castanha repousa em seu antebraço. — Sua carta de Hogwarts acaba de chegar.
— Ah, — exclamou mamãe usando o guardanapo. — Deixe-me ver.
— Pensei que houvessem se esquecido, mon Dieu, já ecstamos em cima da horra.
— Não é culpa do corpo docente, o conselho diretor da escola fez treze reuniões. Treze longuíssimas reuniões no Ministério; primeiro queriam fechar Hogwarts, substituir Dippet depois. Uma série de incidentes, santo Deus, e nunca pensei que veria Spencer-Moon tão perto de perder a cabeça. Tentaram, até mesmo, uma Ordem de Suspenção para o Ministro, faltou uma só assinatura da parte deles. Claro que isso envolve cargos maiores, problemas maiores, mas ainda assim...
Gjyshja pareceu-me cativa pela primeira vez na manhã, o que não passou despercebido por mamãe, que parecia remediar seus próprios princípios de conversar em família durante as refeições. Gjyshja fechou o jornal e debruçou-se à mesa em direção a papai, que fechou o diário em respeito para dá-la sua atenção.
— E... porr que non o fizeram? Longe de mim querrerr crriticarr, non obstante, minhas crrianças eston em prrimeirro lugarr semprre. Cómo Ogwarrts prretende gozarr da confiança dos pais quando já prrovado que mal conseguem manterr sus alunos em segurrança?
— Eu garanto, Heloísa, qualquer dos ensejos, seja aquele que semeou o problema ou aquele que não interviu, estão bem longe da escola, e conheço os responsáveis por Hogwarts bem o bastante para concernir que isso não mais ocorrerá.
— Fala porr si mesmo, oui? Je en doute que todos os pais pensam como você. Quem querr arriscarr, prrincipalmente quando son os seus filhos nascidos trrouxas, que realmente estarron segurros longe de casa? Eu non confiarria se fosse o caso de minha família, seus pais sim?
Papai engoliu em seco, eu percebi, e o corpo de mamãe deu um solavanco na cadeira antes de atravancar-se como uma estatueta de expressão embasbacada. Henry abaixou os orelhões e encolheu os ombros do outro lado da cozinha, imagino como já não deveria estar exaurido desta situação de curral onde gjyshja vivia nos metendo. Era, de fato, de se cair o queixo; era incrível como as perversas perguntas e respostas pareciam guiar-se pelo caminho de sua traqueia até alcançar-lhe a boca, e nunca remediava em vomitá-las aos ouvidos que quisessem e não quisessem ouvir, e ai daquele que ousar a censurar. Heloísa Crouch não conhece a censura; a sensatez e a sapiência também não, eu dispunha. Aguardou por qualquer resposta com olhos flamejantes de excitação, um brilho muito nefário que não era reflexo da janela bay, muito menos do castiçal que luzia ameno ao lado do suspensório com temperos importados de mamãe.
— Acho que tem razão, meus pais ficariam preocupados comigo. Mas sei que me deixariam voltar à escola, confiariam em mim o suficiente para isso — respondeu papai depois do abalo momentâneo, o rosto tranquilo como somente ele conseguia mesmo depois das tiranias de gjyshja, e que mamãe e eu invejávamos.
Gjyshja deu um sorriso meia-boca e ajeitou-se na cadeira já desinteressada, terminou o chá em uma única golada e recuperou o jornal, esticando-o com certo rigor enquanto encolhia-se atrás deste, escondendo-se por entre as páginas de notícias maçantes. Mamãe expirou com cautela, como se desenlaçada finalmente de um cachecol bem apertado, e aprumou-se oferecendo a carta à papai. Ele pigarreou:
— Não há como você deixar o departamento mais cedo, não é, querida?
— Talvez seja possível na sexta-feira. Tenho de falar com Irma, ela deve concordar se estiver de bom humor...
— Não podemos ir na terça? — Digo, antes que pudesse me conter.
Fora um impulso repentino que me ocorreu ao recordar a última das advinhas dos suspicazes senhores Comensais: "na extrema lua buscar", quando se encerra o mês — imagino eu —, o que quer dizer que sexta-feira não haverá insígnia alguma para eu encontrar. Suspeitava, desde o primeiro momento em que o vi com meus olhos, que a tal ruela oblíqua havia de ser o Beco Diagonal remotamente localizado atrás do tabique de tijolos torrados atrás do Caldeirão Furado, e ainda que me restem muito poucas horas para colocar tudo em ordem depois, questiono-me demais sobre o desconhecido arranjo para somente ignorá-lo e deixar a oportunidade me escapar.
— Mas, meu bem, terça? Quarta já será primeiro de setembro.
— Sim, mamãe, é que... — mordi o lábio em busca de uma motivação plausível e interessante o suficiente, quase praguejei em respeito à única solução que me ocorreu. — E-eu andei pensando melhor, e não tenho certeza se irei voltar para Hogwarts. Pode ser que Beauxbatons seja uma boa ideia, gostaria de um pouco mais de tempo para pensar.
Gjyshja alvoreceu detrás do Profeta Diário, os olhos faiscantes como o sol de nuvens que se avista no céu. Mamãe, contudo, verde como o mousse de limão que recheia o bolo de frutas no centro da mesa redonda, ladeado pelo cântaro de flores, a talha de geleia, o latão de leite e o bule de água quente. Papai pigarreou:
— Acontece, meu amor, que pode ser bastante complicado sua mãe ou eu conseguirmos deixar o Ministério na próxima semana. Entendo que é uma decisão importante, mas...
— Ne soyez pas ridicule, eu posso acompanhá-la na sexta, isso é, se rrealmente prrecisarrmos de algum desses materriais. Tenho fé que An-ne vai comprreenderr que Beauxbatons é o melhorr porrenquanto, mas serrei paciente e impassível quanto a sua escolha, promesse!
Mamãe pareceu-me que ia perder os sentidos. Extenuada. Crua. Cega. Surda. Muda. Imutável irresoluta, o nariz apontado para qualquer parte do cômodo, o qual eu duvide que seus bonitos olhos pudessem divisar. Oco é o meu peito agora, embora ciente de que irá passar. Nenhuma são as chances de eu abrir mão de Hogwarts, contudo, preciso de gjyshja secundando, e ela não o faria sem logro. Ao menos, pensar que há algum.
Os seis dias restantes alcançaram terça-feira como uma marcha célere de uma locomotiva lavrada em papel adelgaçado, dias, estes, recheados de atonia, exceto por gjyshja, que os tirara para apresentar-me compridas e remansosas palestras sobre Beauxbatons, desde a planta do paço aos numerosos volumes de livros presentes na biblioteca, matérias extras que nem sonhava Hogwarts em ter, e, claro, a oportunidade de me envolver com nobres famílias bruxas de outras nacionalidades e experimentar novas culturas. Alegações que seriam capazes de convencer-me, admito, isso, se não estivesse tão decidida a encontrar os senhores Comensais, e tão ultrajada às suas ofensas aos meus pais, meus amigos, eu.
Gjyshja aparatou comigo até uma viela escura, e soltei-me de sua mão de unhas exageradamente vultosas e aguçadas aos tropeços para apoiar-me à alvenaria. Estava irada, havia me acusado de dissimulada três vezes esta manhã, quando dei Hogwarts como minha escolha definitiva, e discursou arduamente sobre eu não saber o que estava fazendo, coisa que ignorei sem pesar algum. Devia trazer-me para comprar o material escolar como prometido, e este era o Beco Diagonal, ou melhor, tinha de ser, embora não reconhecesse nem de perto a decadente senda adiante, atulhada de bruxos desinibidos em fardas fulgentes e mantos negros; páginas rasgadas, sujas e velhas às paredes de pedra grafadas em rachaduras e trajadas em manchetes sobre Grindelwald, Mykew Gregorovitch e até mesmo os mais recentes feitos de Morfino Gaunt. Morte deve ser o assunto principal, pois todas as manchetes o carregam desde o título; guerras arrastadas, economia quebrada, tragédias, sofrimento e dor, e um pequeno espaço no rodapé que algum bruxo encontrou para expressar seus discursos de ódio aos trouxas.
Franzi o cenho enojada e afastei-me da parede, as palmas amundiçada de uma terra escura e um gelatinoso marrom-avermelhado que fez meus olhos saltarem as cutículas e a garganta ensecar num súbito. Parecia... sangue. Um sangue envelhecido e coagulado.
— An-nellyze, non toque nisto, que nojeirra! — disse gjyshja checando o relógio no bolso do casacão de pele, e uma contração forte em meu estômago fez-me curvar, a faringe ardida da boca até a barriga, com juras e promissas de que eu iria vomitar. — Venha deprressa, Burrke deve estarr me ecsperrando.
Gjyshja tomou a rua lateral estreita e escura à passos bonançosos e distensos, e bruxos e bruxas que se viam pelo caminho entortavam o pescoço afim de contemplar o diadema entrelaçados em seus cabelos, fizera questão de deixar o felpudo chapéu em casa, pobre do urso polar que morrera para sua confecção. Deveríamos ter passado por, pelo menos, meia dúzia de lojas com letreiros obscuros e mostruários horripilantes, com direito a partes de animais exóticos para núcleos de varinha, chifres ensanguentados para decorações, chapeis de penas de aves mágicas, amuletos diversos e uma coleção de dentes soltos e gengivas para crianças testarem sua lógica montando a arcada dentária.
Gjyshja parou diante de uma vitrine emporcalhada do que deveria ser a maior das lojas que vi até agora e apertou o punho ao nariz contendo uma gaifona, Borgin & Burke exibia-se no letreiro descascado da fachada, e duas megeras enroladas em um grande balandrau de retalhos e encolhidas sob a alcatifa retangular na entrada me sorriram com quatro dentes apodrecidos e cobertos de limo cada uma, causando-me um arrepio dos pés até a espinha. Gjyshja deu um passo largo sobre elas, e a sineta interligada à porta deu um tilinto ensurdecido às arengas dos vendedores ambulantes, que traziam em bandejas dedos sangrentos de jovens moças, uma pequena coleção dos menores ossos do corpo humano, costuras de seda e ovos de criaturas que eu podia jurar que eram ilegais.
— An-nellyze!
— Sim, já vou — respondi e meu corpo deu um bote nesta direção, quase atirando-me às megeras. Eu engulo seco e estico-me sobre elas com cautela, os olhos miúdos e avermelhados seguindo-me em descômodo.
Definitivamente esta não era uma das lojas do Beco Diagonal, e nenhum daqueles itens tão sinistros possuíam a menor das probabilidades de aparecer numa das listas de materiais escolares de Hogwarts, em qual que fosse a matéria. Gjyshja debruçou-se para analisar uma pilha de parafernália jogada atrás do balcão, e às vitrines, eu me aproximo, intrigada com um pote transparente com pelo menos uma dezena de olhos azuis em conserva, outro com olhos castanhos ao lado, todos retribuindo meu olhar, ainda que eu tente sair de foco. Pareceu-me cômico de repente, até ocorrer-me a ideia de que não deveriam ser olhos de brinquedo ou de vidro. Como se já não bastasse o corpo tornando a arrepiar, o rosto esverdeado e verruguento das megeras brotou na base da prateleira e floresceu à vidraça, os lábios finíssimos e enrugados curvados para mim. Eu resmungo nervosamente, o coração cavalgando no peito, e viro-as as costas, voltando ao balcão à passos desenfreados.
— O-onde estamos?
— Na Trravessa do Trranco, mon amour, tenho algo parra rresolverr. Serrei shpejtë.
Gjyshja resmungou voltando a postura, afundou a mão repetidas vezes na campainha em cima do balcão e aguardou impaciente, tamborilando os dedos. Um rapazinho esguio esticou o pescoço fino sobre a portinhola no fundo e, logo depois, um homem largo e alto, de cabelos dourados de mel — e tão grudentos quanto —, saiu de lá em direção ao balcão, um sorriso muito branco, reto e forçado no rosto de cacto pontilhado pela barba malfeita.
— Heloísa Crouch, que enorme prazer — disse-lhe Henry Burke, o mesmo Burke que conheci na festa de natal de Slughorn do ano passado, aquele que arrojou elogios aos meus olhos e me engordurou a mão de ponche. — Vejo que recebeu minha coruja, hum?
— Sim, é — disse gjyshja com desdém — ...mas só acrredito se puderr verr com meus prróprrios olhos. A prropósito, já conheceu a minha neta An-nellyze Anctarres?
— Ah, senhorita Antares —, disse ele, quase curvado sobre o balcão. — Encantado! Não pensei que nos veríamos de novo tão cedo, é bom que esteja aqui. Fique à vontade, se houver algo que lhe interesse...
— Oh, poupe meu tempo, já chega disso, oui? Que é que encontrrou que tem tanta cerrteza de que poderria me interressarr? Já vou logo avisando que non é bom que tente me passarr a perrna, Burrke, tenho contatos o suficiente parra colocarr ecsta sua ecspelunca chon à baixo!
— Ah, não, Heloísa, você não faria isso. Muito menos depois de ver o que eu lhe trouxe —, respondeu e abaixou-se, abrindo e fechando gavetas e armários do balcão. — Eu estive em Avalon com meus companheiros, Dorian e Brian tinham esperanças de encontrar um Tomo velho e, talvez, indecifrável; Gregório e eu achamos que pudesse haver algo ainda mais valioso, isso é, em termos financeiros.
— Vá dirreto ao ponto, dreqin!
Henry Burke parou e olhou-a hesitante, um tanto provocativo talvez, e esticou-a um sorriso que fez gjyshja crispar os lábios de raiva. Ele levantou-se e trouxe uma urna riscada, de ferro, com um cadeado no tamanho de um palmo circundado por um plasma mágico azul-elétrico. As sobrancelhas de gjyshja arquearam, embora seu rosto permanecesse pleno, e o senhor Burke deixou a urna sobre o balcão e abriu um cofre em busca das chaves.
— Foram seis dias de escavação — recomeçou ele, e gjyshja rosnou revirando os olhos e cerrando os punhos, uma cena quase burlesca, quase. — Seis dias muito exaustivos e perigosos, Avalon deve ser uma das ilhas mais perigosas de toda costa, se não a mais entre todas elas. Fomos atacados por harpias, nixes, e você nem imagina o que mais. Valeu a pena, claro. Se não fosse o desespero em nos salvar, quiçá que jamais houvéssemos encontrado isto...
Gjyshja já estava roxa de impaciência, quando o senhor Burke finalmente desfez o feitiço e enfiou a chave na fechadura, destrancando a urna: uma coroa em formato de tonsura com um arco cortando o topo da cabeça do manequim de madeira, dourada e luminosa, pequenas pedrinhas de rubi e safira espaçadas adereçando suas laterais. Há uma frase em bretão no arco, diz claramente: os deuses, os sábios, o lago e a terra sabem que somente eu sou a verdadeira regente de Camelot.
— No! — exclamou gjyshja, os olhos espaventos e o queixo lá em baixo. As mãos trêmulas ousaram aproximar-se da coroa, mas não a tocaram, como se um campo de força invisível a impedisse de tal. — C-cómo... é impossívell, é... ecxtraorrdinárrio... non consigo acrreditarr.
— Pois pode acreditar, essa coroa custou o dedo anelar e a aliança de Brian, não me pergunte como a esposa dele reagiu. — O senhor Burke apertou os olhos, refutando, e acabou soltando uma gargalhada nasal à contraponto.
— Desculpem-me, estou um pouco perdida — intervi. — Isso é mesmo a...
— A corroa de Morrgana le Fay, sim, An-ne. — Os olhos de gjyshja estavam cintilantes, por pouco tive a impressão de que poderia estar chorando, creio que jamais a vira assim tão empolgada. — Morgana, que veio antes de Prre-e-sina, que veio antes de Melusine, que veio antes de nós...
Engoli seco, o corpo todo escaldando.
— Isso faz parrte de nossa histórria, parrte de nós! Devia ecstar perrdide porr milharres de anos. Onde encontrraram isse?
— Como eu disse, Heloísa, em Avalon. Uma harpia que deu um rasante que arrancou fora o dedo de Brian, e Dorian e eu fomos jogados no lago. Estávamos fugindo de um par de nixes furiosas, quando vimos essa coisinha lá no fundo, bem no fundo mesmo. Posso lhe assegurar que é legítima.
— Pois é clarro que é legítima, isto foi feito pelas prróprrias mons de Morrgana, eu saberria se fosse apenas uma imitaçon.
— Bom, bom... muito bom. Então, podemos começar a negociar, certo?
— Çfarë? — vozeou. — Você querr barrganharr comigue?
— Pois fique você sabendo, Helói, que sua velha amiga colecionadora esteve aqui com a neta semana passada, e eu tomei a liberdade de mostrar-lhes a coroa. Helena Smith ofereceu cinco mil galeões por ela e... eu pensei que — bem! Heloísa Crouch deve ter um interesse a mais nisso, já que é tão apegada com as histórias de sua família. Mais! Sendo a diretora de uma academia tão renomada e, digamos, o seu marido lhe deixou bastante dinheiro antes de morrer, certo? Ele era bastante requisitado, que eu sei, tanto no Ministério britânico, quanto no Ministério francês...
— Dou dez mil galeões.
— Veja bem, eu não quero parecer-lhe ganancioso, mas foram seis dias realmente difíceis em Avalon. Será que eu já lhe contei que fomos atacados por harpias e...
— Quinze...
— Acredito que não se esqueceu de quem foi que lhe trouxe o coração de Melusine, não é? Tudo para poder criar o núcleo de varinha perfeito para sua tão preciosa neta em seu primeiro ano escolar... Não foi nada fácil matá-la.
— Vinte.
— Isso com certeza paga as despesas da viagem, vejamos, mas... quanto a aliança e o dedo de Brian... a esposa dele está realmente uma fera, acredita? Quer que eu mande chamá-la? Vocês duas poderiam tomar um chá e ter uma daquelas conversas de mulheres, falar mal dos maridos, aposto como ela iria reclamar disso sem parar e...
— Quarenta!
Absurdamente, o senhor Burke parecia tranquilamente disposto a divagar lorotas e balelas, e gjyshja continuava a aumentar a oferta. Um pêndulo de histórias triviais e cortantes sobre pessoas irrelevantes que ela odiava ouvir; um poço sem fim que seria a possibilidade de deixar essa loja sem poder trazer a urna e a relíquia consigo.
— ...você sabia que, ainda que Borgin não tenha qualquer participação nas escavações, apenas por eu estar lhe apresentando esse artefato tão valioso em nossa loja — nossa, que quer dizer minha e dele —, ele tem direito à pelo menos vinte por cento dos lucros, que quer dizer que, além de dividir entre Dorian, Brian, Gregório e eu, ainda tenho que dar uma porcentagem a ele e ao meu assistente que está ali atrás?
— Cem mil galeões, e é a minha oferrta finall — trovejou gjyshja. O senhor Burke sorriu com visível satisfação.
— Fechado! — disse com bamburro. — É sempre um prazer enorme, imenso, a honra de poder servi-la, minha velha e boa amiga Heloísa.
Gjyshja resmungou como uma porta velha e cruzou os braços.
— Onde será a transição? A menos que você prefira que eu te envie a coroa mais tarde...
— Rien de cela! — protestou e bateu os pés. — Você pode me acompanhar até Gr-r-ringotes, tenho cerrteza de que deixei as chaves de Merrle porraqui em minha bolsa, em algum lugarr...
— Flint, tome conta da loja e seja educado. Eu volto logo.
Assim que o senhor Burke abriu a porta e ofereceu-nos a passagem, as duas megeras do lado de fora cambalearam para dentro, e meu corpo ficou molenga de repente, certo de que iriamos trombar uma à outra e por cima de mim despencariam. Fui salva no último instante quando Burke pegou as duas pela gola das vestes esfarrapadas e atirou-as para fora novamente, praguejando xingos que eu sequer conhecia o significado.
Fizemos o caminho oposto ao de mais cedo, e foi bastante depressa que fomos encontrados pela luz do sol que cortava um edifício muito branco que era o Banco Gringotes, todo esse tempo e estávamos no Beco Diagonal, ou uma parte obscura dele que eu não desejava tornar a visitar tão cedo.
— Gjyshja, será que posso ir atrás de meu material agora?
— Oh, clarro! — respondeu com espanto. — É verrdade, já ia me esquecendo. Vá indo e eu lhe alcanço em seguida, só não ande porr este caminho parra non se perrderr.
Aguardei que gjyshja e o senhor Burke passassem pelos enormes umbrais e afundei as mãos na pequena bolsa de couro que trago comigo, os dedos caçando o delicado pedaço de papel negro. A tinta verde refletiu o sol num brilho intenso quando o arranquei, mas não havia qualquer instrução sobre o que fazer primeiro. Imaginei — o que se imagina é — que seja mais comum que cheguemos ao beco através da estalagem, então começar com a bebida, quem sabe, fosse uma boa ideia.
Desci toda a rua até a parede de tijolos vermelhos e deparei-me no pub, mal havia lugares para se sentar com aquela quantidade de pessoas. Uma nuvem escura, de fumaça, pairava sobre cachimbos de velhos bruxos vestidos em trapos rasgados e de braços machucados, e uma garotinha preenchia o ambiente com seu choro vindo de uma das mesas dos cantos escuros, comportando uma possível família de mãe, pai e mais oito crianças. Quase sempre me esqueço de que estamos todos em guerra, seja você bruxo, seja você trouxa. Pais e filhos deixam suas famílias todos os dias para integrarem campos de batalhas, e papai é um destes bruxos, quase sempre me esqueço de que é esse o motivo de tamanha preocupação nos olhos de mamãe quando ela volta para casa e ele não. Atrasado. Muito atrasado. Às vezes, simplesmente, não pode voltar neste dia, mas promete voltar no dia seguinte. Pergunto-me quem mandará tudo para o inferno primeiro, os trouxas ou Grindelwald?
Uma bruxa velha e curvada desocupou um banquinho no balcão, por pouco não tropeçando na barra do vestido que prendera no solado solto de seu sapato. É para onde me dirijo com certa pressa no caminho sinuoso, outros dois bruxos que vinham de direções distintas parecem competir o assento comigo. Alcancei-o primeiro, e pensei que iria despencar ao certo agora ao tropeçar na bruaca, ao chão, debaixo dos pés do rapaz sob o capuz ao meu lado, que pigarreou discretamente e virou-se; Tom — o estalajadeiro — viera correndo para encher seu cálice de um líquido muito vermelho e espumante.
— Senhorita Antares, sim? — cumprimentou-me logo em seguida, assim que me reconheceu. — Seja bem-vinda. O que gostaria?
— Uma bebida gasosa de frutas, por favor.
Tom possuía um punhado de cabelos castanhos e um punhado de cabelos grisalhos, e já era dono deste lugar ainda quando mamãe fazia as compras de seus materiais escolares. Devia ser bastante velho, e com certeza conhecia qualquer bruxo residente em solo britânico, gostaria de um pouco de privacidade para questioná-lo a respeito dos senhores Comensais.
— Romã e maçã? — disse ele.
— Pode ser.
Buscou um cálice à beira da pia, encheu-o com este mesmo jarro que carrega nas mãos e retirou-se em seguida, não pude conter a surpresa que me ascendera. Beberiquei com mais cautela do que gostaria — ou o completo oposto disso —, e tentei esquadrinhar a figura encapuzada ao meu lado com o canto dos olhos. Ele agarrou o cálice com uma mão ossuda e muito branca, a outra, do outro lado, garrida com um anel de pedra. Posso jurar que há alguma coisa em suas vestes, do lado esquerdo, reluzindo ao castiçal que sobeja fogo não muito longe de nós. Engoli em seco, comprimindo-me no meu lugar, e mal consegui mover um único músculo depois disso, não até que tivesse esvaziado o conteúdo do cálice. Tom aproximou-se ameaçando tornar a encher, e tratei de arrancar uma moeda do bolso para o pagar, o Sicle raspou o balcão sob meus dedos e o fez parar.
— Ah, só isso?
— Por enquanto. Obrigada, Tom!
— Volte logo, senhorita Antares.
Uma sessão de contos misteriosos deve ser o próximo passo, e penso que apenas na Floreios e Borrões encontrarei uma prateleira com essa designação. A livraria estava relativamente vazia, como a maioria das demais lojas, o que me pareceu banal visto que era trinta e um de agosto. Todos já deveriam estar de malas prontas, descansando para amanhã, mas não eu. Para que gjyshja não aparecesse de surpresa e perdesse a cabeça com o tempo que estou perdendo, tratei de pegar cada um dos livros da lista de materiais do quinto ano no caminho até a sessão de contos. "Mistério" informava a placa na lateral da prateleira que ia do chão até o teto, e meus olhos arregalaram diante a tantos livros. Ia demorar o dia inteirinho para achar a insígnia, se é que alguém não já passou por aqui e pegou antes, a charada dizia que algo assim poderia acontecer.
— Mas que... droga — resmunguei entredentes, sem ter como me conter.
Pense, pense, mandei ao meu cérebro, e passei os olhos por cada um dos títulos que consegui enxergar, visando que pudesse haver alguma palavra-chave, algum sinal, qualquer coisa que me chamasse a atenção. Subi e desci as escadas corrediças uma, duas, três vezes tentando ler e reler os títulos, temendo não ter procurado direito, quando gjyshja retornou.
— Que faz aqui, mon amour? — Indagou de voz azeda e cara amarrada, imagino que tenha discutido com senhor Burke quando percebeu o quanto de dinheiro o estava devendo.
— E-eu... — mordi o lábio. — Estou procurando um livro, ora...
— Em Ogwarrts vocês também usam livrros de conto parra ecstudarr?
— N-não, é que...
— Oh, mas... que é isse?! — disse ela com os olhos em fenda, apoiando o queixo com uma das mãos. — Isse non é conto, mon Dieu, é um grimórrio; um grimórrio muito imporrtante na verrdade... que é que faz aqui?
Gjyshja pegou o livro de capa púrpura, Magia Mui Maligna, que com certeza não deveria estar ali, e praguejei mentalmente por não o ter percebido antes. Espremeu-o entre seus dedos e trouxe consigo, e uma pequena peça metálica despencou do meio de suas páginas, produzindo suaves tinidos contra o chão. Corri para pegá-lo, e gjyshja abaixou-se e o pegou primeiro.
— Currioso... que serrá isse?
Apertei os olhos com tanta força que senti dor nas pálpebras mal encaixadas, e tentei buscar a varinha presa no cós da saia com o máximo de cautela possível. Pudera eu só pedir o broche e gjyshja me devolver, o maldito pedaço de papel me mandava azará-la, porém, e eu não tenho certeza se há ou não alguém aqui para me vigiar, quiçá, mais alguém que viera em busca da própria insígnia, o que eu supunha que sim.
— Non acha ecstranho que — que ecstá fazendo, mon amour? — Apontei-a a varinha. — A-An-nellyze?
— Tarantellegra!
Desencontrei completamente seus olhos cheios de surpresa e o broche escapou de suas mãos. Gjyshja agarrou-se a urna, apertando-a contra os volumosos seios, e saiu sapateando, virando o pescoço de um lado e outro — à procura do senhor Macmillan para ajudá-la, imagino eu, que é o proprietário da livraria.
A insígnia parecia ser feita de prata, a cabeça de uma serpente acinzentada com escamas destacadas em verde, de boca aberta, ameaçando engolir um pequeno crânio branquinho. Intrigante para se dizer o mínimo, mas ninguém viera me contatar depois disso, como eu esperava que fizessem. Ao invés disso, gjyshja voltara soltando fumaça das narinas de tamanha raiva e, encolhendo os ombros, larguei o broche sobre o zíper aberto da bolsa, juntando as mãos no instante seguinte e jurando insistentemente que não queria fazer aquilo. Depois de tanto insistir, gjyshja pareceu-me convencida, "talvez você estivesse enfeitiçada", ela cogitou, e saiu procurando o broche pelo chão.
O sol já ameaçava se pôr atrás das colinas de gramado ressequido de Surrey Hills quando aparatamos na rua de casa, e apertamos o passo até lá. Mamãe havia acabado de chegar do trabalho, e tratou de me ajudar com a organização do material, ainda que gjyshja insistisse em contá-la sobre a coroa, seu mais novo achado, e passou duas horas em frente ao espelho trocando entre ela e o diadema, incerta de qual a deixara mais imponente e bonita.
Mamãe e papai acordaram-me juntos assim que o sol tornou a despertar, e ela e Henry prepararam um café-da-manhã tão reforçado que tivemos de desjejuar na mesa de jantar. Gjyshja tratou de partir logo em seguida, desapontada, amargurada e odienta, eu também não havia me esquecido nenhuma de suas palavras, uma única sequer. Peguei o malão de roupas, o malão de livros, e vesti-me no vestido que mamãe deixara para mim sobre a penteadeira. Sentei-me em frente a esta para arrumar os volumosos cabelos que já alcançavam a cintura, e quando penteados, franzi os lábios num trejeito de desdém encarando a tiara, fazendo grande menção em colocá-la. Pois não usaria, não depois de tudo aquilo que ouvi. Peguei um elástico na gaveta ao invés disso e prendi os cabelos, dando as costas à tiara no momento seguinte. Scáthach teimou, rodopiou e piou protestando à gaiola, e foi papai quem conseguiu colocá-la lá dentro. Como vingança, contudo, deixou-o com um cortezinho num dos dedos, e mamãe pegou-me pelos ombros indagando sobre a tiara, um peso na consciência que fez-me voltar no quarto e enfiá-la dentro do malão. Seguimos silenciosos — Scáthach indiferente — por todo o caminho que fizemos de carro — o veículo dos trouxas — até a estação King's Cross.
Não havia muitas famílias bruxas por ali, o que me fez imaginar que estivéssemos um tanto adiantados, embora o relógio no alto da torre da estação indique que em vinte minutos as portas do expresso estarão se fechando. Papai deu-me um demorado beijo na testa e um abraço reconfortante, mamãe espremeu meu rosto em suas mãos e colou sua testa a minha, depois beijou-me as bochechas — as duas — e me abraçou. Eles não poderiam ficar para me verem partir, tinham de ir para o Ministério, então aguardei que voltassem pela passagem nove e dez e adentrei o trem com o corpo sacolejando, o coração apertado, um gosto amargo apoderando-se de meu paladar. Fiz como nunca pensei que faria, procurei por uma cabine que estivesse vazia, gostaria de pensar um pouco em como seria voltar para Hogwarts depois de tudo o que aconteceu meses atrás, pensar em tudo aquilo que tentei evitar — por menos êxito que tivera — desde que viera para casa. Mal sentei-me no estofado, o corpo debruçado à janela, e a porta correu de repente, Malwina, Fredderyc, Baltazar e Lavigna entraram fazendo pândega, e eu me encolho sobre o estofado pelo susto.
— ...eu soube. Vão se casar em novembro, contou-me papai, uma pena que vamos estar em Hogwarts, eu gostaria de comparecer. Com certeza a mais alta classe dos bruxos estarão lá, e seria uma ótima oportunidade também para que conhecessem o Lorde, aqueles que não o conhecem, aposto como vão se surpreender com sua grandiosidade.
— Ah, Vínia, conversa! — Malwina acertou-a um tapa que estralou em suas pernas. — Você nem gostava de Walburga, e não acho que ele tenha de sair por aí, apresentando-se a todos. Confie nele quem quiser, quem não... bem! O arrependimento seguinte sempre será uma opção. Amarga e dolorosa, de certo, porém, necessária para aqueles que não têm fé.
— Gosto de Orion — acrescentou depressa, e Baltazar fungou feito um touro, caindo com as costas no estofado. — A propósito, e quanto aos dois? Ele mandou chamá-los?
— Não, na verdade — revirou os olhos e deu de ombros. — Estava interessado em alguém... digamos, uma pessoa inconveniente e inesperada, mas... — Lavigna gargalhou discretamente, e Malwina virou-se para mim, seus lábios pincelados em batom preto me sorriam fechado, os olhos afiados como uma lâmina. — Ei, Antares, quase não a reconheci por falta da tiara, está parecendo uma ratinha assustada nesse canto.
— Por alguma razão, ela sempre faz essa cara quando estamos por perto, gostaria de entender o porquê. — Lavigna arqueou uma das sobrancelhas e gargalhou fraquinho.
— Por que não relaxa um pouco, somos todos amigos afinal, não? — disse Baltazar, os lábios sustentando um sorriso malfazejo, e inclinou-se para oferecer-me sua caixinha de feijõezinhos de todos os sabores. Eu a aceito com certa ponderação.
— E quanto às suas férias, aposto que ficou louca quando recebeu aquele envelope e não era de seus amiguinhos, não foi? Eu imagino que sim. Conheço-lhe, senhorita Antares, você não é nada difícil de se ler. Eu diria que um tanto previsível.
Não consegui levar o feijão até a boca, escapou-me por entre os dedos e despencou para algum lugar no chão. Intrigada e ressentida, virei-me para Malwina, e os quatro pareciam esforçarem-se para conter os risos, deviam estar se divertindo com tamanha a minha confusão. Talvez fosse outro envelope, um qualquer perdido entre todas as correspondências que deixei de ler, e acenei involuntariamente com a cabeça, tentando convencer-me de que era isso, apenas uma grande coincidência.
— Você o leu, certo? Imagino que a charada não devia estar difícil, não para você. Eu gostaria de ter visto, mas ele não me deixou, disse-me que não era da minha conta, você sabe como ele é. Ei, que cara é essa?
Não consigo descrever-me, tamanho era o meu estado de perplexidade. Definitivamente não era uma coincidência, ela tinha de estar se referindo ao convite, por assim digamos, e eu não possuía palavras para responder-lhe. Claro que sabia que encontraria algum dos tais senhores Comensais em Hogwarts, mas... Malwina, uma Comensal? E mais! Aparentemente tão íntima do tal cognominado Lorde, que eu também conhecia, ou devia conhecer. Cortei minha respiração num ato de raciocínio, e a possível verdade veio à tona em esmero e aspereza. Não quis engoli-la, não aceitá-la, mas temo que jamais estive tão certa como agora.
— Está me dizendo que você é uma dos quinze senhores Comensais?
Malwina franziu o cenho, virou-se para Lavigna — que deu de ombros, os lábios encrespados —, e todos eles soltaram uma gargalhada que mais parecia o freio de mão do Nôitibus. Não só Malwina, eu pensei o óbvio, todos eles, e sim, já não era uma incógnita para mim quem há de ser o Lorde que todos referem-se com tamanho fascínio.
— Então... o que são vocês?
— Dicionário —
Amour: Amor;
Çfarë: O que?/Como é que é?;
Dieu: Deus;
Dreqin: Inferno;
Gjyshja: Vovó;
Ne soyez pas ridicule: Não seja ridículo;
Mon: Meu;
Promesse: Promessa;
Shpejtë: Rápido(a).
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