III - A Parábola dos Senhores Comensais
Há silêncio: um breve silêncio eletrônico produzido pela vitrola que cospe poeira no quarto de mamãe, então as irmãs Andrews voltaram a cantar: "he's the boogie-woogie bugle boy of Campany B". Penso que está tocando por minha causa, para me impedir de ouvir outra vez atrás da porta, mas gjyshja fala alto; tão alto que não preciso sair da banheira desta vez, a porta entreaberta já é o suficiente, e mesmo as águas de sais atormentadas não podem me impedir de escutar.
Assim que mamãe irrompera a lareira, minutos mais cedo, gjyshja arremeteu-a em interpelações e contraposições, e mamãe mandou-me gentilmente — um sorriso arrependido e tristonho nos lábios — para que fosse me lavar antes do jantar, pediu um minuto a gjyshja para que pudesse ir ao quarto e desceu novamente, a música que acabara de colocar omitindo seus saltos às escadas ao voltar para a sala, e só percebi por que gjyshja falou bem alto: "ah, até que enfim!".
— ...a senhora me prometeu que não daria o jornal a Anne.
— E non dei. Heloisa Chrroch é uma mulherr de palavrra, mas você deverria terr me contade o que aconteceu com a sanguerruim em Ogwarrts, eu tinha de saberr...
— Mami, não fale desse jeito!
— ...imagine se acontecesse alguma coisa com An-nellyz? Minha neta, mon Dieu! Porr sorrte forram apenes aquele gentin.
— Mami, por favor! — mamãe conteve sua voz. — Murta, a menininha que morreu no banheiro, ela era amiga de Anne.
— Clarro que erra! — bradou gjyshja aos protestos, — olhe parra estas amizades! Tudo isso é culpa sua, non está pensando no melhorr parra su fille. Sabe o que pensarron dela se non arrumarmes isso? Pensarron que você non a crriou dirreito, e sabe quem serrá a culpada porr você non a crriarr dirreito? Moi!
Gjyshja bateu os pés — imagino que tenha sido ela —, e meu corpo arrepiou-se em meio a água quente, o coração aos solavancos, causando-me um incômodo desconforto. Mordi a língua entre os molares, os olhos lacrimejando de rancor, e abracei os joelhos, como se o ato de me enconchar pudesse livrar-me, de alguma forma, da ruína; as águas acalmando-se de mansinho.
— Eu te crriei da melhorr maneirra que pude, Leonorr. Non é minha culpa você serr desse jeito; non é minha culpa a família que você escolheu. Você non me ouve.
— Mas... — não sei dizer se mamãe simplesmente nada mais disse, ou se foi a infortuna vitrola que me abnegou de ouvir.
— É o que acontece quando nos torrnamos mami ton cedo: non sabemes como crriarr os filhos. Deverria terr me ouvide.
— Eu não trocaria a minha família por nada, mami — disse mamãe muito baixinho, a voz embargada. — Não tem nada de errado conosco.
— Clarro que non! — o tom era satírico, eu aperto a testa aos joelhos, minha mandíbula rígida. — Porr minha cause!
— Eu nunca quis que a senhora interferisse em nada.
— Orra, Leonorr, Marrëzi! Eu quem cuide de vocês, e tentei de tudo parra fazerr de Ar-r-riel um homem de rrecspeite.
— Meu marido é um homem de respeito!
— Mesme? — Apregoou, a voz atalhando. — Que tipe de homem de rrecspeite é esse que tirra a garrotin de uma moen, hum? Você erra uma crriance, tinha muito ainda o que aprrenderr.
— A senhora iria me vender a Pollux Black.
— E nossa família manterria a honrra e o status de purrossangue.
As unhas me afundaram na carne das pernas, o corpo tiritando à tormenta da água, e cerrei os olhos com fúria, o estômago contraiu-se numa câimbra que me forçou a relaxar o corpo. Um inspiro acovardado me encetou os pulmões em sobejo, e aperto as mãos na boca, prendendo-o lá dentro e as trovoadas na garganta, o ar me sufocando, fazendo o corpo remexer-se inteirinho de angústia. Respirei às grandes lufadas e golfejos, o peito revolto, as águas aflitas sob o lume da lua através das janelas — as velas haviam se apagado no banquinho e também nas prateleiras, lá longe, sem restar uma acesa se quer.
— ...tive de fazer isso, mami — ouço muito baixinho, seguido de um fariscar. — A senhora não nos deixaria ficar juntos se fosse de outro jeito.
— Non, non deixarria! Minha garrotin e um sanguerruim? — gjyshja tinha a voz embargada, embora não o suficiente para diminuir a aflição que sinto ou mesmo minha amargura. — Você desperrdiçou todos os anos que gastei parra lhe crriarr, sua ingrrata! A quem eu passarrei o legá'de nossa família, se você jogou séculos de hicstórria no lixo? Non faça o mesmo com An-nellyz, eu só tenho a ela. Se mentí porr todes esses anos, espalhando porraí que Ar-r-riel erra de outrra nacionalidade, e fazendo todes acrreditarrem que o sangue dele erra ton purro quanto o nosso, é porrqué tive esperança nela desde o dia em que nasceu, porr cause de seus olhes, eles me convencerron. Agorra, prreciso que faça isso dirreito, se non porr mim, porr Marrle. Ele te defendeu, non? Seu pai te defendeu quando eu ameacei tirrarr-lhe a crriança nos tapes, oui? Agorra faça dessa menine o que você non foi, deixe que ela venha parra a Frrance comigue. Vai ecstudar em Beauxbatons e vou aprresentá-la aos melhorres brruxos que conheço, e mais importante, ela estarrá segurra. Ogwarrts non é mais o que erra antes, e o lugarr dela é com a família. Deixe que eu a eduque, farrei An-ne serr motive de orrgulho parra vocês dois..., porr favor, Leonorr!
Há silêncio: a vitrola engasgou-se num rangido estridente e se calou em seguida, recluso em um silêncio elétrico. Meu corpo está inerte na água, esmorecido, e tão decepcionada que não consigo produzir lágrimas ou expressar qualquer coisa, ainda que consiga sentir que sim, estou chorando, não pelos meus repulsivos olhos no entanto. Não entendo como poderia, mas é como estou. Mamãe, nada disse, imagino que esteja da mesma forma que eu: parada no lugar, os olhos aguados talvez, mas a boca trancada como a minha para impedir o desespero, a ira — a clemência quiçá — de se fazer presente. Tive uma arrepiante sensação de que, desde junho, cada dia estaria contando uma medida mais difícil que o dia anterior. Quantos dias restavam-me até aterrissar no inferno?
Estremeci de susto e aferroei as mãos às bordas da banheira, o corpo oscilante, quando ouvi um repentino crepitar alto de chamas: papai deveria ter voltado, e meu palpite fora confirmado quando o ouvi cumprimentar gjyshja e mamãe, a voz exultante perdendo entonação conforme alcançando as últimas sílabas. Gjyshja o respondeu seco, bateu os pés — eu imagino que tenha sido ela — e tomou as escadarias com passadas altas e pesadas, aproximando-se do quarto de banho, e meus joelhos esticaram-se na cerâmica, as mãos sobre eles, os olhos nas mãos; a água esfriando nos ombros, amornada no tronco, razoavelmente quente no quadril. As dobradiças da porta rangeram, desgostosas, e sei que gjyshja está ali, na soleira da porta, embora hesite dizer qualquer coisa, e eu hesite olhá-la.
— Como você é imperrtinente, non é educado ficarr ouvindo a converrsa dos outrros — ela engoliu seco, a voz fria, que irroga, um tanto irresoluta. — Non tirre conclusões prreccipitadas porr terr ouvido o que ouviu, An-ne, ecsta está longe de serr toda a verrdade.
— E ainda tem mais? — Indaguei com desalento, gjyshja deu um suspiro receoso.
— Se você puderr ecscolherr, An-nellyze, porr favorr, venha comigue. Prrometo que vou lhe explicarr tude, e vou lhe torrnarr a brruxa que semprre sonhou em serr... pode parrecerr errade, mas você vai verr que...
— A senhora não sabe nada sobre os meus sonhos, gjyshja... nem sobre os meus amigos, e, pelo jeito, nem sobre a minha família também.
Ela largou a porta, percebo, pelo resmungo ligeiro que deu as dobradiças. Mexeu as pernas nervosamente, os saltos estatelando o soalho baixinho, e aprumou-se.
— É — disse arrastado — ...parrece que non.
Abracei meus joelhos novamente e deitei o rosto entre eles, com frio, tomando fôlego e pensando que deveria logo sair da banheira, sem coragem, porém, para sair. Àquela altura, tudo o que eu queria era encolher-me na água, minúscula, até ser capaz de simplesmente desaparecer, mas sabia que não ia acontecer, nem mesmo com magia. Apoiei às bordas e retirei-me dali, afugentando-me debaixo do roupão pesado e felpudo, o corpo eriçado dos ombros até os calcanhares.
A vitrola velha parou de súbito e, neste fio de passos, uma balbúrdia baixinha alcançou-me no corredor. Ao chegar em meu quarto, percebi que eram Badb, Skanderbeg e Scáthach brincando de destruir a mobília; fui até o guarda-roupa buscar meu pijama, e as corujas pousaram na escrivaninha para bicar os porta-retratos. Virei o pescoço para repreendê-las, contudo, foi o enigmático envelope sem endereço que me tomou a atenção. Eu poderia escrever para alguém, se tivesse realmente com quem falar sobre tudo isso — e que pudesse me contar sobre suas crises e incertezas, ainda que não tivéssemos soluções para trocar —, mas não tenho, e responder por responder o monte de cartas envelhecendo naquele canto era perca de tempo.
Fosse que fosse, o melhor era não pensar em nada disso e tentar ficar bem comigo mesma. Era ridículo, afinal, querer remoer histórias do passado, se ele não muda, certo? Será que isso era válido apenas para gjyshja, ou para Murta também? Eu balanço a cabeça, abro as janelas e me debruço ali para inspirar o perfume das flores, banhar-me à luz da lua, e Badb, Skanderbeg e Scáthach cortam o céu cor-de-petróleo, fruindo das deíficas asas — portais para a liberdade de tudo aquilo que está enraizado —, e peguei-me admirando-as, apetecendo essa aptidão singular.
— Se eu tivesse asas como vocês, eu voaria sobre as montanhas sempre que quisesse não pensar em nada e...
— ...não, querido! — é a voz de mamãe, está vindo de seu quarto.
— Então, que aconteceu? ...você pode me contar, Leonor. Na tristeza e na pobreza, hum? — Mamãe riu fraquinho.
— Não, é que... — ela hesitou. — Não, não é nada demais, só... mami, ela... estava me dizendo que Hogwarts... bom, talvez não fosse o melhor para a Anne. Sabe, não agora, por causa do...
— Sim, entendo... — papai respondeu aos assovios baixos.
— Ela pediu nossa opinião quanto... é que... e-ela sugeriu levar a Anne para Beauxbatons para... cuidar dela — acrescentou com a voz embargada e fungou.
Eu ouço passos muito discretos afastando-se da janela, então disse papai, a voz um tanto mais longe como a de mamãe:
— E qual é a sua opinião?
— Ah — foi um resmungo de choro —, eu... ela estaria longe, não é? Que-quer dizer, muito mais longe. E também... — houve uma pausa, uma longa pausa.
— Vem aqui... diga-me a verdade, por favor, o que está te perturbando?
— Ah, Ariel — mamãe fungou —, meu pai não estaria lá para se impor por Anne, como fez comigo — fungou outra vez —. Ela estará por conta própria, só mami e ela, e... tenho medo que...
— Que ela mexa com a cabeça da sua filha?
Mamãe fungou, fungou e fungou, daí começou a chorar, um choro que, imagino eu, há se abafado de repente porque papai deve tê-la abraçado. Eu tombo a cabeça para o ombro, o olhar vazio perdido pelos janeleiros cortinados luzindo em retalhos as silhuetas escuras de casas com a exata mesma estrutura quadrada, e parece claro para mim que deva ser uma maneira de o universo, a deusa Lua dos wiccas talvez, dizer-me que não há como esquecer o que ficou no passado, e permaneço ali por minutos intermináveis, até mamãe voltar a dizer entre os soluços:
— V-você se lembra como eu era? Deus, tenho tanta vergonha...
— E então você mudou — interdisse.
— Mas...
— É o que importa, Leonor! E isso não vai acontecer com Anne, não a nossa filha.
— E quem vai remediar por ela, uma vez tão longe, Ariel?
— Nós quando possível; ela mesma quando necessário, como sempre fez.
Houve uma pausa, a brisa assoviando em meus ouvidos, cortada vez ou outra pela respiração um tanto aguda de mamãe.
— Estamos esquecendo quem somos, não é? — disse ela baixinho. — As mentiras se espalharam, nós deixamos que Heloísa fizesse as coisas do jeito dela, e agora não sabemos mais como caminhar...
— Eu não me esqueci quem sou — disse papai muito firme —, você esqueceu-se?
— Não, ainda me lembro... gosto, na verdade, mais da realidade do que da mentira, todas as nossas atitudes imprudentes de adolescentes, e também as consequências delas...
— Viu só — disse papai, a voz vistosa que somente ele tem. — Não somos nós quem precisamos dessas invenções e distorções, estamos bem com quem somos, e eu garanto que Annellyze sabe perfeitamente bem quem é. A propósito, pergunte a ela se quer ir ou não, acho que essa é uma das escolhas que nós dois não deveríamos intervir.
Não houve resposta, acredito eu que, de fato, porque mamãe não deveria querer dividir a escolha com ninguém, principalmente considerando que esse alguém — diferente dela — pudesse vir a concordar com essa transferência absurda. Não tinha o mínimo interesse de passar um ano letivo inteiro na presença de gjyshja, muito menos depois dessa nova dor que semeou em meu peito, fazendo-me olhar no espelho e repudiar, execrar e até abdicar os olhos que tanto me deram orgulho uma vez. Prefiro encarar Hogwarts, Tom Riddle, e o que mais esse ano oco pudesse desenrolar.
Rompi para dentro do pijama ainda desconfiando o envelope riscado de tinta, e Henry veio chamar-me para o jantar. Gjyshja estava à direita de papai, observando de soslaio o elfo que se debruçara à lareira apagada para raspar-lhe a fuligem da chaminé e varrer as cinzas; mamãe veio da cozinha, e a louça que a seguia pousou à mesa. Ela sentou-se a esquerda de papai e convidou-me a ficar ao seu lado, ao que tudo indica, este seria um jantar bastante silencioso.
— Sabe, Leonorr, talvez seja melhorr que eu tirre as medides de An-ne, e Skanderbeg pode levar parra Madame Toile tecer um trraje de Beauxbatons — mamãe agarrou seu copo d'água desconfortavelmente —. Quanto aos materriais...
— Mas... eu não quero ir — gjyshja calou-se abruptamente, os olhos espantados, os lábios crispados. Ela soltou uma gargalhada descrente e estrondosa.
— Sa pa kuptim, mon amour, bobagem! Você non sabe o que diz...
Virei o rosto discretamente e pude ver mamãe cingindo os dedos no copo, brancos os nós das juntas, e olhando para papai que pareceu engolir em seco.
— Você vai adorrarr o Palace de Beauxbatons, as esculturres de gelo prrincipalmente, eles parrecem enorrmes estátues de diamante, e...
— Gjyshja eu realmente não... — balancei a cabeça, e ela parou de falar, esticando-se até a taça de vinho branco.
— Você terrá tempe parra pensarr melhorr — disse e bebericou o vinho, que pareceu com dificuldade de lhe descer a garganta.
Gjyshja exculpou e retirou-se antes da sobremesa, o limão do merengue da torta um tanto mais azedo que o normal, ou talvez fosse o nosso paladar. Henry finalmente terminou de limpar a lareira e a acendeu, embora mamãe e eu denotássemos carência de disposição para embebedar horas desalentas de um colóquio catártico até o ensejo para dormir. Não houve conversa, contudo, e papai esmoreceu na poltrona, os pés esticados no pufe, e mamãe e eu encolhemo-nos no mesmo estofado para vertermos em seu peito, a percussão de seu coração cadenciando uma cantiga reconfortante de chamas.
Não me lembro de qualquer outra noite onde oito horas de reclusão fora sinônimo de azáfama, não neste mesmo quarto. Antes estivesse referindo-me ao plenário das corujas, que fossem, adormeceram assim que percebi que estava inquieta demais para conseguir descansar. Matei um pouco de tempo na cama, estalando as juntas dos dedos, e peguei-me pensando em coisas fúteis que há muito não pensara, como personagens de livros de histórias desvendadas, suas peripécias excelsas, até que o extenuo me fez levantar, o corpo estafante, o pescoço folgado.
No escuro do cômodo, alcançam meus olhos um lampejo verde e fosforescente que vem da escrivaninha, e desaparece completamente quando aceso o abajur. Apaguei-o novamente e pisei o chão descalça, a maciez do carpete afagando-me os pés, o gelado do revestimento de madeira fustigando-me as pontas dos dedos. As centelhas vêm do lacre de cera no envelope sujo e sem registros, um tracejado mágico que se desvela num crânio luminoso. Se abro as janelas, ele desvanece também, e, de cenho franzido, compreendo o porquê de não o perceber mais cedo. Virei-me para a gaiola, gostaria de perguntar a Scáthach quem entregou-a isso, embora eu duvide que ela fosse capaz de me responder. Mordi o lábio inferior, cerrei os dedos e puxei a cadeira para me sentar já rompendo o lacre, uma purpurina chispou para cima como um ínfimo fogo de artifício virente, o lumaréu fez as corujas chocalharem na gaiola e Skanderbeg soltou um grunhido sonolento, mas não acordaram. Acomodei-me e debrucei sobre o pergaminho envelhecido e manchado de tinta, percebo que é uma textura diferente das que estou acostumada, e não havia nada escrito ali. Chequei o verso e virei novamente, então fui tomada por uma sensação mórbida, um embrulho no estômago, uma falta de ar, um rodamoinho de cores e sombras, o corpo acartando para todos os lados — um pouco semelhante a aparatar —, e estatelei com a cadeira em um chão firme de uma saleta escura, o pergaminho brilhou durante um segundo na minha mão e rastros de tinta surgiram formulando frases que demoraram um pouco para meus olhos confusos conseguirem enxergar:
Cara Srta. Antares,
Saúdam-te os senhores Comensais!
Temos o prazer de informar que V. Sa. foi considerada digna de ingredir o mantra devido a sua conduta decorrente dos últimos meses. Para tal fim, no entanto, ainda é necessário um pequeno teste de aptidão irrevogável, prescrito por nosso dirigente, especialmente para você. Pois veja:
Sete são o número de garrafas de poções em sua mesa de trabalho,
Duas delas são de suas buscas o resultado:
Apenas uma das sete desvendará da carta o verdadeiro conteúdo,
Cuidado com sua escolha, pois, em três delas, com a morte lhe pontuo.
Uma permitirá que retorne de onde viera.
Duas delas conterão uma canseira instantânea e severa.
Desejamos-lhe fortuna, cada essência foi muito bem trabalhada para lhe suprir;
Faça uma escolha, ou ficará presa no tempo aqui para sempre.
Fiquei imóvel, por um momento, encarando as instruções sem certa certeza do que fazer. "Alguém com muito tempo vago resolveu passar as horas engenhando um enigma para mim", eu pensei com um pouco de entusiasmo sobressaindo o estado perplexo. Quando abaixei o pergaminho para dar uma segunda olhada na sala, contudo, deparei-me com uma mesa longa e gordurenta, crostas fazendo relevos em sua superfície de pedra, as tais sete garrafas ali, todas escuras demais para conseguir distinguir o que continham pela cor.
— Uau... — é tudo o que consigo dizer.
Não nego o quão intrigante parecera em íntegra. Não era, exatamente, o tipo de enigmas com os quais estou acostumada: correntes de perguntas que desencadeiam — em geral — uma única possível resposta. Deixei o pergaminho sobre a mesa imunda e caminhei até os confins da câmara, de certo não era uma ilusão, sequer estava em meu quarto, percebi pelo irrefutável cheiro de alho podre e cebola velha, uma camada grossa de poeira sobre o chão untuoso, o teto coalhado em rachaduras e teias de aranhas que prontamente fariam mamãe e Henry darem entrada no St. Mungus. Este deveria ser um feitiço realmente avançado, cheguei a imaginar que pudesse ser algum método de aplicação do N.O.M. de Poção, se não fosse a apresentação: Comensais, eu nunca auscultara essa designação.
— Certo — digo voltando até a mesa.
Examinei as instruções mais duas vezes, apesar de já ter entendido desde o princípio, e encarei as garrafas escuras. Isso não é magia, não precisamente, mas sim uma arguição de conhecimento, e usaria do olfato como ferramenta principal. Foi bastante repentino o açoite consciente que me assumiu, disparando o coração: três destas poções teria de ser veneno ou qualquer coisa tão forte quanto, e eu teria de tomar uma atitude para sair daqui.
— Eu devia estar dormindo... — pensei alto, mas balancei a cabeça no balbucio de aplicar-me. — Certo, vamos lá, é só mais um dia normal e uma charada normal, eu já resolvi muitas.
Os olhos insistiram em esquadrinhar as instruções, e foi o que fiz. O coração cavalgou novamente com a ameaça de não conseguir sair desse lugar — pior, apodrecer em morte aqui —, e essa ímpar possibilidade fez-se minha derrocada. O corpo eriçou-se, desconcertando-me, e cruzei os braços tentando esboçar alguma solvência.
— Tá, pense! — Mandei de olhos fechados. — Feito especialmente para mim, então só o próprio engenheiro e eu podemos resolver da melhor e mais correta maneira, embora eu duvide que esse lugar malcheiroso tenha sido apenas um descuido. Vejamos...
Afastei os cabelos com uma das mãos — a outra amarfanhando o pergaminho — e debrucei-me sobre os frascos de poções, um cheiro tão desagradável que me fez pigarrear e me afastar na primeira; sem cheiro a segunda; terra e madeira azeda na terceira e na quarta. Na quinta, também não consegui distinguir cheiro algum, mas afastei-me num ímpeto que meu corpo quase despencou naquele chão nojento, o rosto ardido do nariz até os olhos lacrimejantes, a garganta engasgada com um gosto muito amargo e cítrico. Tive de afastar-me da mesa e usar do pergaminho de instruções para me abanar.
A garganta ameaçava tossir a todo momento, engasgando em resmungos secos, e passei um tempo tentando umedecê-la com a saliva, funcionou à grosso modo. As narinas, no entanto, avariadas, e praguejei por quem quer que tenha achado engraçado prender-me aqui neste báratro, boquejando sobre o predicado de meu olfato.
Aproximei-me da mesa e debrucei-me na garrafa seguinte, as narinas arderam até o cenho, e afastei-me tossindo outra vez.
— Que... droga!
Senti o rosto ensopar de suor, o corpo todo na verdade, que logo foi envolvido por uma incômoda sensação gélida. Eu tremia em completo descontrole, não sabia exatamente se de frio ou de nervoso, e encolhi-me numa daquelas paredes sujas, agachando-me no chão e abraçando os joelhos. Como se já não bastasse o próprio cômodo hircoso que dissimulava a fragrância do conteúdo de cada frasco, essa substância corrosiva que, em absoluta certeza, não fora posta aqui por engano.
Penso que horas desdobraram-se retesando relógios redondos, fernecendo-os desde os números até os ponteiros, enquanto eu permanecia encolhida. Deve ter sido esse o ápice, o momento que mais me aproximei do delírio total, certa da ideia terrível que jamais sairia daqui para encontrar os malditos senhores Comensais, para dizer-lhes com satisfação que fossem fazer uma coisa que jamais atrevi-me a praguejar a alguém, mamãe me faria engolir um pacote inteiro de sabão se ouvisse, e era o mínimo pelo látego que me sentenciaram; digna um caramba, isso é uma sanção.
Não soube descrever o sentimento que me fez enxugar o rosto do suor e os olhos lacrimejantes, digamos que o antojo de definhar aqui para sempre. Levantei-me encarando a mesa, os palmos e as costas ascendendo num deslize à parede encarquilhada, pungente os ossos nasais. Limpei o pó das mãos na calça e aproximei-me com lentidão, a garganta ressequindo pelas sequelas, e inspirei com calma, na tentativa fraudulenta de convencer a mim mesma de que o largo tempo fora o suficiente para acrisolar-me as vias. Segurei os cabelos longe do rosto e abaixei-me com esmero, a jeriza de me aproximar da garrafa errada, e pude exalar dolorosamente um irresoluto e descrente cheiro de frutas que fez-me duvidar de meu nariz. A última poção era desagradável e abrasante, e fui-me debruçar outra vez sobre a primeira, para compará-las, para entender a dimensão da distorção que a malícia havia me causado, surpresa em notar que era o mesmo cheiro as duas, camuflado à lesão.
— Muito bem, senhores Comensais — falei e peguei o pergaminho para reler. — Hum... acho que... beladona nestas, raiz de valeriana e pó de asfódelo nesta aqui. Você não é uma poção, só um tipo de veneno bem forte, e aqui temos... hum... frutas? — Eu mordo o lábio inferior, o cenho franzido.
Aproximava-se o momento inevitável de testar as poções, e minha agonia tornou-se uma causa crescente. Tentei manter a calma, finalmente havia matado a inclemente charada após quase perder a cabeça. Poderia ter sido pior acaso tivesse dado na telha de iniciar por esta outra ponta da fileira, não conseguiria distinguir cheiro algum adiante o achaque do veneno.
— Muito bem, senhores... conseguiram me confundir, mas eu já entendi tudo. Temos aqui a poção da Morte-Certa, Veritaserum, Morto-Vivo, Morto-Vivo, esse veneno corrosivo, essa seiva de frutas e, por último, outra poção da Morte-Certa. A parábola é que não há uma poção que vá me tirar daqui. Duas delas são de minha busca o resultado, eu pensei que essa frase estivesse se referindo às poções, mas quer dizer as linhas de instruções na verdade. Três delas, com a morte lhe pontuo: as duas Morte-Certa e o veneno corrosivo; uma canseira instantânea e severa: poção do Morto-Vivo, lembro-me que já fui sedada com uma destas no início do ano. Cada essência foi muito bem trabalhada para me suprir, o que significa que Veritaserum não pode ser o que procuro, pois não há cheiro algum, e isso é só um suco que está aqui para completar os sete cálices.
"Não consigo enxergar a cor de nenhuma poção, se não o veneno corrosivo: verde como as centelhas do crâneo na cera do lacre, e por mais que não tenha exatamente um odor, é o mais forte dentre os demais cheiros desta mesa. Assim como a poção da Morte-Certa, pode me matar se eu beber, esse, que deve ser um pergaminho mágico, porém, revelará seu verdadeiro conteúdo, e agora é a hora de o pôr à prova", falei, mas não nego a ponta de incerteza que me acoima quando pego a garrafa. Mordi o lábio inferior, irresoluta, mas estufei o peito de fidúcia, eu tinha de estar certa. Se não estivesse, contudo, temo que o veneno possa corroer o pergaminho e acabar com as minhas chances de sair daqui. Não era hora, tampouco, para pensamentos negativos, eu estava pachorrenta; cansada finalmente, depois do que me parecera um ciclo inteiro retida para dentro desse porão escuro dos infernos.
Larguei o pergaminho na mesa e despejei o ácido sobre ele, tornara-se marrom bem forte, torrado, e engoli em seco quando pensei vê-lo se dissolver. Estava queimando, é fato, desfez-se do revestimento de caprino enquanto adquiria um tom negro e profundo de papel aspen, escrito com uma tinta esmeralda e brilhante:
Poção da Morte-Certa;
Bebida Gasosa de Frutas;
Veneno de Basilisco;
Poção do Morto-Vivo;
Poção do Morto-Vivo;
Poção Veritaserum;
Poção da Morte-Certa.
Os senhores Comensais gostariam de apresentar seus cumprimentos à Srta. Antares, que conseguiu solucionar com proeminência o enigma apurado de nosso tão alentado dirigente. E já que gosta tanto de advinhas, fique com mais esta, e será a última por agora:
Na extrema lua, é quando a insígnia deverá buscar;
Uma sessão de contos misteriosos pode vir a calhar?
A cerimônia acontece na ruela oblíqua atrás do portal,
Pedir uma Bebida Gasosa de Frutas no pub é essencial.
O broche deve ser usado com o uniforme, sob a túnica, na parte esquerda.
Se outra pessoa achar, se não você, recupere com a azaração Tarantellegra.
Os senhores Comensais desejam-lhe um bom retorno à Hogwarts, e aspiram que sua arguição tenha sido bastante extasiante. Lembre-se que esta é uma oportunidade única e circunscrita, e se contar sobre isso a alguém, arrancaremos fora a sua língua.
Atenciosamente,
Os Quinze Senhores Comensais
As perguntas explodiam em minha cabeça como pipocas carameladas, e escaparam-me como um pesadelo de lorotas quando fui tomada por aquela sensação mórbida, os rodamoinhos, e estava de volta em meu quarto, na cadeira da escrivaninha, exatamente como era antes de eu o deixar — mesmo a posição da lua no céu —. Fitei o papel negro em minhas mãos, a prova viva de que eu não havia adormecido de repente, e guardei-o no acrílico com os pergaminhos novos. Embalei o rosto com ambas as mãos, queria pensar em que tipo de feitiço foi esse; os senhores Comensais quem são, e o quê, exatamente, fez com que se interessassem em fazer de mim um deles. O tal dirigente desfigurou-se em um bruxo muito detalhista e engenhoso, arguto em um todo, muito antigo provavelmente, afinal, possuir um frasco de veneno de basilisco deveria ser uma proeza tão rara quanto — se não mais rara ainda — que um frasco de veneno de Acromântula. Perguntei-me como poderia ele idealizar qualquer coisa sobre mim, meus medos aparentemente, conhecer-me sem eu o conhecer, e vi-me ansiosa — de uma forma boa — pela primeira vez desde muito tempo.
— Dicionário —
Amour: Amor;
Dashur: Querido(a);
Dieu: Deus;
Fille: Filha;
Gjyshja: Vovó;
Mami: Mamãe;
Marrëzi: Loucura;
Mon: Meu.
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