I - Cabines Lotadas
Estação de King's Cross
01 de setembro de 1942
Três minutos. Faltavam exatos três minutos para as onze da manhã. A estação estava lotada, alguns bruxos tão atrasados quanto eu pareciam litigar o curso até a coluna nove e dez, e quando finalmente chegamos, deparamo-nos com uma pequena fila para atravessar. Suspirei passando as mãos no rosto e virei o pescoço, os olhos perambulando a estação, as pernas torcendo de ansiedade. Eu não costumava me atrasar, na verdade, se há uma coisa que abomino, com certeza, são atrasos. Debruçada sobre o carrinho com meus pertences, meus olhos vagueiam discretamente pelo local, mas a pessoa a quem procuro não estava ali — claro! Ele era pontual demais. Os olhos fogem para o relógio no alto da torre, e sinto quando a impaciência faz brotar algumas gotículas de suor em minha testa.
Seria possível que eu não conseguiria atravessar?
A fila tende a diminuir, assim como o tempo, e firmo as amarras que seguram aos meus pertences, a tiara nos cabelos longuíssimos e volumosos, e tomo a liberdade de atravessar, passando à frente do garoto primeiranista que parecia com mais medo do esteio do que dos olhos perdidos dos trouxas.
Haviam menos familiares se despedindo de seus filhos esse ano, o que me apertou o coração de preocupação por meus pais, e uma ou outra entrada razoavelmente livre para o interior do expresso. Como já esperado, as cabines estavam atestadas, mas eu continuava ali, vagando o corredor à procura de minhas amigas, que deveriam já estar desalentas de freima, e encontrei-as na antepenúltima cabine. Conversavam com uma possível primeiranista que eu não conhecia, embora sua aparência me fosse muito familiar. Mal corri a porta de vidro — que arrastou-se num solavanco ruidoso e estridente —, elas me encararam como se houvessem visto um fantasma.
— Poxa, se eu não as conhecesse, diria que estavam se escondendo de mim. Fala sério! Quase a última cabine? Por que tão longe de onde costumávamos ficar? — Tagarelo e, somente quando paro, percebo que não há lugar para mim ali.
— Hum — arriscou sua voz, Michell, os olhos cinzas quase esbugalhados — ...n-na verdade, Anne, as outras cabines estavam cheias e... bom! N-nós pensamos que você houvesse pego o expresso m-mais cedo. Você não é de se atrasar, não é mesmo? — deu de ombros.
Meus olhos revezaram por cada uma delas e, evitando corresponder-me, as meninas apenas acenaram com a cabeça.
— Legal... — digo finalmente, um sorriso amarelado e sem forma, constrangida e intimidada com a ideia de ter de deixá-las.
— Espere, Anne — intervém Murta, — eu acho que se nós nos apertássemos só um pouquinho...
— Não! Não se incomodem — Murta encolhe os ombros contra o corpo, as meninas parecem atacá-la com os olhos. — Nos vemos no Grande Salão — despeço-me e saio com toda a dignidade utópica que consigo transparecer.
Tudo o que o meu orgulho me mandava naquele momento era sair dali o mais rápido possível, porém, assim que me encontrei de frente com as paredes metálicas entre uma cabine e outra, meus olhos se apertaram e meus lábios se franziram. Elas haviam mesmo dado o meu lugar para outra aluna? Eram minhas amigas, estávamos juntas desde o primeiro ano; nos conhecemos dentro de uma dessas cabines idiotas, e foi assim desde então.
— Certo, Annellyze, respira — digo a mim mesma, a voz trêmula, tentando transmitir-me uma calma que sei que não possuo. — Você vai encontrar outra cabine; você vai encarar quem-quer-que-seja; vai se sentar, abrir um livro e fingir que está lendo, ou simplesmente ficar olhando para a porcaria da janela até chegar em Hogwarts, e vai ficar tudo bem! Não é o fim do mundo...
Adiante há, apenas, mais duas cabines, e era em uma delas que eu teria de me espremer. Voltar pelo caminho que eu fizera estava fora de cogitação, pois não podia deixar que vissem Annellyze Antares perdida pelos corredores do expresso sem nenhum amigo, penso eu. Seria bem mais constrangedor do que ter de lidar com esse labéu sozinha.
Pela vidraça seguinte avisto um grupo da Grifinória jogando bexigas. A cabine fechada abafava o som, mas já podia imaginar a barulheira que estrondava lá dentro, sem dizer aquele fedor terrível. Se me visse aqui fora, Jonnatha tentaria uma forma de enfiar-me ali. Eu arquejo com a ideia e, sem antes olhar, sem pensar uma segunda vez, ou mesmo considerar a ideia de minhas amigas se encolherem para que eu consiga me enfiar na mesma cabine que elas, dirijo-me à última e adentro-a. Estava curiosamente vazia, exceto pelo rapaz esparramado no estofado da frente, o rosto escondido atrás do livro Hieróglifos e Logogramas Mágicos. Ao seu lado descansava um pequeno omaso fechado, a capa de couro preto, seu nome cravado ali em letras douradas e desgastadas.
Minhas sobrancelhas se franziram involuntariamente, e levei cerca de um minuto inteiro para acordar desse transe repentino que o manteve na mira de meus olhos. Pisquei desnorteada e ajeitei-me no estofado, virei-me desconfortavelmente e grudei os olhos nas campeiras vistas da janela, as mãos inquietas amarrotando o suéter que lhes servia de alento, e pedi, mentalmente, que seu livro estivesse interessante o suficiente para reter seus olhos nas páginas até que aportássemos em Hogwarts.
— Suas amigas a abandonaram de novo, foi? — Perguntou-me sua voz suave, e meus olhos se fecharam, tensos.
Eu, com certa certeza, não escolhi a melhor companhia de todo aquele trem, fosse, agora, porém, um pouco tarde demais para chegar a essa conclusão. Eu já estava ali e não podia mais sair, não quando não tinha outro lugar para fugir. Cogitei a ideia de ficar em silêncio, da mesma forma que fizera comigo as vezes que tentei puxar assunto, está claro, contudo, que ele não me daria paz, uma vez tendo, eu, invadido sua cabine pessoal.
— ...tudo bem se não quiser falar sobre isso. Te chateia, não é mesmo?
Permaneci quieta.
Franzi os lábios, encarando-o de soslaio, então o livro pousou sobre suas pernas, e os olhos muito escuros — que dispunham de uma ligeira facínora — de Tom Riddle corresponderam aos meus. Uma saliva muito espessa me desceu ríspida pela garganta, e virei-me para as janelas novamente. Se ele estava mesmo a perquirir por uma brecha — uma pequena que fosse — para me tirar completamente do sério, ele não a encontraria. O dia, hoje, não há começado muito bem, e a última coisa que eu precisava era de algum tipinho da Sonserina para fazer, de vez, com que eu me arrependesse de sair de casa.
— É, eu entendo! Aposto como devem ter alguém melhor do que você para conversar.
— Quer saber, por que você se incomoda? Não é como se fosse da sua conta, ou é? — E no canto de seus lábios, eu pude ver um pequeno sorriso fechado brotar e se expandir, até se abrir, marcando as maçãs de seu rosto.
Aquele vil sorriso...
Ele havia conseguido e com o mínimo de palavras possíveis. O semblante tão tranquilo, digno de olhos verdes e tão escuros que pareciam a própria casca da jabuticaba. Ele não se movera um milímetro — bem! Eu não me movera um milímetro. Seu sorriso perfeito batia de frente com a minha expressão severa, acelerava meu peito, e aposto como meu rosto já havia suavizado quando a porta da cabine correu, chamando pela nossa atenção.
— ...não foi isso que aconteceu. Eu só o confundi, está bem?
— Você sabia muito bem quem era, só estava querendo arranjar problemas.
Entrou um casal discutindo, e a garota loira — os cabelos violentamente amarelados como uma gema de ovo — cruzou os braços e bufou, largando-se no estofado ao meu lado. O rapaz, por sua vez, fechou a porta ainda a encarando, então seus olhos desconfiados descobriram-me aqui, encolhida como um ratinho. Eu abaixo a cabeça involuntariamente e aperto os braços contra o corpo, os dedos entrelaçando nervosamente os cabelos. Havia cavado a minha cova, penso eu, estava na toca — ou melhor —, num buraco de cobras, e não tinha a certeza se sobreviveria até Hogwarts.
— Querem me dizer o que aconteceu?
— Malwina lançou a azaração do tranco no monitor-chefe da Lufa-lufa. — Tom Riddle cerrou os olhos sobre ela, e Malwina arquejou, jogando o tronco para trás, e revirou os olhos.
— Eu o confundi, tá legal?
— É claro, você nunca faz nada de errado porque quer — ele elevou a voz e Tom Riddle levantou, colocando-se entre os dois.
— Ei, — interviu, — não precisa falar com ela assim. Não estamos em Hogwarts, nenhum ponto será debitado da casa, mas tomem cuidado quando forem pregar uma peça em alguém, principalmente você — advertiu rigidamente e soltou um suspiro,— ele não se machucou, machucou? — indagou suave, e Malwina tratou de negar desesperadamente.
Deu de ombros, satisfeito, e sentou-se novamente, guardando o livreto preto no interior da túnica da escola. Foleou dispersamente o livro didático até a metade, e voltou a estudar, livrando, outra vez, seus alunos de qualquer punição ou mesmo advertência verbal, nunca se responsabilizavam por nada afinal de contas.
Como se por tortura, os trilhos prometem se alongar e, Hogwarts, parecia cada vez mais distante. O silêncio da cabine é asfixiante, e sinto minhas bochechas queimarem quando percebo a silhueta de Malwina Petiwysk se remexendo, bem ao lado, enquanto se diverte me caçoando com Fredderyc Snyde. Uma gargalhada presa ameaça os engasgar, e eles a deixam escapar aos resmungos. Talvez eu tivesse reclamado cedo demais. De fato, ter de arcar com esses dois era menos agradável do que ter de aturar as provocações de Tom Riddle.
— Quase me esqueço — diz Malwina remexendo a mão no bolso, — olha o que recebi junto com a lista de materiais desse ano.
Driblando em seus dedos, reluzia sob o sol das janelas um pequeno distintivo verde, cujo um grande "M" sobrepunha a cobra de Sonserina. Minhas sobrancelhas se arquearam de surpresa, professor Slughorn não poderia ter escolhido alguém pior, penso eu.
— Logo você? — Indagou Riddle, o rosto aparentemente tão espantado quanto o meu.
— Presumo que você também o tenha, certo?
Tom alojou a mão para o bolso e tirou. Era idêntico ao dela.
— Tinha certeza! — disse e deu de ombros, um sorriso triunfante acometendo-lhe os lábios. Inesperadamente, então, debruçou-se em mim, os cabelos ressecados mesclando aos meus, o sorriso funesto acanhando-me. — E você, Antares? Aposto a sua tiara que também recebeu um.
Meu rosto ainda estava baixo, embora muito nitidamente eu consiga enxergar seus olhos flamejantes de excitação. Um tanto canhestra, mostro-os o meu distintivo, que era azul, no entanto, e, imposto ao "M", uma águia imponente.
Malwina vaiou bem baixinho.
— Não esperava menos, senhorita Antares! — disse com deboche. — Se expulsássemos o Fred, podíamos fazer desta, a cabine com os melhores exemplos de bruxos de Hogwarts, não acham? Dar conselhos aos novatos, e ensinar-lhes alguma coisa que não se aprende com os professores.
— Você quer dizer, ensinar-lhes a perder pontos e tirar as pessoas do sério, certo? — Indagou Tom Riddle; Fredderyc cruzou os braços e Malwina gargalhou fraquinho.
— Agora — continuou, — explique-me, por favor, pois quero muito saber... que a líder das metidas corvinas faz na nossa cabine, Tom? — Perguntou Malwina, que parecera engasgada com a frase, até finalmente dizer.
— Deixe de perturbá-la, Mal — defendeu-me ele. — Não vê que ela não quer falar sobre as amigas que a trocaram por uma novata? Acho que está chateada.
Maldito Tom Riddle, eu praguejo, e mal consigo descrever minhas bochechas inflando de raiva. Permaneceu, contudo, displicente, e os olhos atados ao maldito livro.
— Ah, claro! Não as culpo, na verdade — ela se virou para mim e sorriu. — Você é muito chata, sabia? E vai ficar ainda pior agora.
— E-eu? — Meus olhos saltaram as pálpebras, e senti-me constrangedoramente embasbacada. Aquiesci subitamente, e fitei a cada um deles, que me encararam aos risinhos, inclusive Tom Riddle.
Sobre ele meus olhos se cerraram, não entendia esse seu jeito. De fato, como todo sonserino, ele fazia jus à casa. Ao contrário dos demais, contudo, este tinha um jeito sutil de tirar as pessoas do sério — bem! Funcionava comigo, ao menos.
— Escutem, onde estão Paul e Baltazar? Eu não me lembro de tê-los visto.
— Baltazar eu vi na plataforma com Lavigna, quanto ao Paul... — Malwina deu de ombros.
— Vocês poderiam ser um pouco mais úteis e irem procurá-los. Não quero mais ninguém causando problemas antes mesmo de chegarmos à Hogwarts.
— É o que faremos — respondeu Fredderyc, passando seus olhos de Tom para mim, e Malwina por último. — Vamos, Mal!
Seu cruel sorriso ainda estava estampado no rosto, mesmo quando Malwina retardou em levantar-se para ir com Fredderyc.
Eu estava mais do que disposta a voltar ao meu silêncio, quando Tom inclinou-se na minha direção e fissurou os olhos verdíssimos. Cruzei os braços, virando-me para a janela, mas podia enxergá-lo pelas arestas ainda que sem foco. Eu suspiro pesarosamente.
— Por que você faz isso? — Perguntei em um sussurro.
— Faço, o que? — Rebateu pausadamente.
— Me ignora ou zomba de mim quando está com os seus amigos, — ele riu soprado. — Nós dois sabemos que não é assim quando estamos só nós. Por que faz isso?
— Para descontrair.
— Não há nada de divertido nisso, Tom!
— Você é a distração, Antares — corrigiu ele, arrancando o arco de meus cabelos, e abriu um sorriso ao vê-los se bagunçar.
Engulo seco, tentando não parecer tão ridícula, e ajeito os cabelos para trás das orelhas. A quem eu queria enganar? Tom Riddle me deixava nervosa, às vezes de uma forma ruim; quase nunca de uma forma boa.
Nos conhecemos no primeiro ano e, hoje, exatamente como aquele dia, estávamos aqui, ele e eu, dividindo uma cabine. Lembro-me de como ele era quieto, de seu jeito desconfiado, e de como seus olhos percorriam o chão e a janela; qualquer lugar, desde que mantivesse o seu foco bem longe de mim.
"Desculpe-me!" disse a menina de grandes olhos cinzas e cabelos e sobrancelhas acaju, no corredor. "A minha ratinha passou por aqui? O nome dela é Mallu e ela é branca e usa um laço cor-de-rosa. Um garoto louco deixou o gato dele solto e ela se assustou e fugiu."
Neste momento, eu me virei para ele e, pela primeira vez, seus olhos — verdes como uma esmeralda quando sob a luz do sol — estavam apontados para mim, não por muito tempo, no entanto. Ele voltara a fitar a janela e sequer a respondeu.
"Bom, não a vimos" tomei a frente e levantei-me, "mas posso ajudá-la a procurar."
Sorridente, ela me abraçou enquanto repetia inúmeros "obrigada".
"Eu sou Michell. Michell Diggory" esticou a mão para me cumprimentar.
Por cima dos ombros, fitei o garoto — que continuava com os olhos perdidos na janela — por uma última vez, daí, aceitei o cumprimento.
"Annellyze Antares."
E depois disto, Michell e eu fomos em busca da ratinha e a encontramos na primeira cabine, que estava repleta de meninas — primeiranistas como nós —, que se encantaram com o lacinho da pequena bola de pelos de olhos vermelhos.
"Ela é muito fofa."
"...dá vontade de apertar."
Em Hogwarts, Michell foi selecionada para a Lufa-lufa — junto com metade das meninas do vagão. Eu e algumas outras, no entanto, fomos para a Corvinal. Mesmo em casas diferentes, continuamos todas amigas e nunca mais nos separamos, nem mesmo no expresso... isso é, até hoje ao menos.
— Tom? — a porta da cabine é aberta bruscamente e tanto ele quanto eu, sobressaltamo-nos, desprevenidos. — Oh, Antares! Não esperava encontrá-la aqui. — Esta era Alexandra Foundric, sarcástica como sempre. — Desculpem-me, mas... estou interrompendo alguma coisa?
— Que é que você quer, Alexa? — Perguntou e abaixou a mão que segurava o arco dos meus cabelos, camuflando-o em suas pernas.
— É que... Fred me pediu para te avisar, estamos lá na primeira cabine, mas Paul ainda não apareceu...
— Está bem, já vou indo para lá.
Ambos ficaram em silêncio por um estante e, acho certo ressaltar que, talvez, Alexandra esperasse que Riddle se levantasse e fosse com ela neste momento, coisa que não fez.
— Ah, então tá legal... — exclamou com uma voz pastosa e saiu deixando a porta aberta.
Meus olhos fitaram o corredor vazio e, em seguida, o chão. Riddle se levantou com um disfarçado suspiro, e pousou o arco sobre minhas pernas.
— Nos vemos por aí, Antares — diz ele e, antes que eu pudesse digerir ou mesmo responder, desapareceu no corredor.
— É... — digo arrastado, um gosto amargo na boca. — Nos vemos por aí!
Minha voz ameaçou falhar. Eu tomo fôlego e coloco o arco de volta na cabeça. Séria e inabalável, fito o estofado vazio à minha frente e absorvo escarcéu do silêncio reivindicando a cabine.
Sobre o que as minhas amigas estariam falando neste momento?
Um sorriso amarelado brota em meus lábios, enquanto minhas sobrancelhas se franzem. A visão tende a ficar turva e eu me encolho, abraçando minhas pernas. Dividir uma cabine com Riddle, Fredderyc ou mesmo Malwina, com certeza, era melhor do que dividir com o meu bicho-papão.
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