#04- A Castração de Urano
Gaia contemplava, inebriada, as constantes transformações que seu corpo celeste experimentava. A matéria primordial explodira em incontáveis glóbulos de luz e fogo, dispersos pelo universo em expansão. Esses glóbulos encontravam-se em órbitas, aglomerando-se em torno de centros ardentes onde Hélio, o Sol, reinava imponente. Alguns eram tão abrasadores que nem mesmo Oceano, o deus dos mares primordiais, conseguia umedecê-los. Outros, mais amenos, permitiam que a água fluísse e fertilizasse a terra. Era o nascimento de um cosmo em ordem, mas também repleto de potencial para o caos.
Gaia, a Mãe-Terra, sentia-se nova e antiga ao mesmo tempo, um ser paradoxal e grandioso. Era criadora e criatura, mulher e virgem, uma deusa cujos segredos se escondiam nas profundezas da terra e nas vastidões do espaço. Mas sua contemplação foi interrompida pela presença de Urano, o Céu Estrelado. Ele chegava sempre com uma imponência sufocante, estendendo-se sobre ela como um manto pesado que limitava sua liberdade e criava uma tensão incessante entre os dois.
Urano exigia que Gaia permanecesse em adoração a ele, declarando-se senhor absoluto do universo. Mas Gaia ansiava por mais. Sua essência materna clamava por criação, por dar à luz novas formas de vida que povoassem os mundos em expansão. Urano, no entanto, rejeitava seus apelos. Ele temia que os filhos de Gaia, especialmente os mais poderosos, desafiassem sua autoridade. Assim, em sua arrogância, aprisionou os Hecatônquiros e os Ciclopes nas profundezas do Tártaro, um abismo sombrio e impenetrável onde a luz nunca alcançava.
Haviam muitos deuses, mas Urano continuava sendo o senhor do Universo, que mantinha a ordem em tudo. Seu poder era imenso, cada desejo seu era lei, e todos o obedeciam. O reinado de Urano foi um tempo muito feliz, pois até ali não existia a Morte nem a Inveja nem a Violência. Entretanto... as coisas não poderiam ficar assim para sempre.
Assim, após um começo enérgico, a formação do mundo havia chegado a um impasse: o potente Urano, embora tivesse gerado novas e poderosas divindades, não permitia que deixassem o interior de Gaia, prendendo-os para sempre nas profundezas da terra, do mundo físico.
O sofrimento de Gaia crescia com o passar das eras. Ela carregava em suas entranhas aquelas criaturas turbulentas, enquanto suportava o assédio constante de Urano. Decidida a libertar seus filhos, Gaia buscou ajuda entre os Titãs, a primeira geração de deuses nascidos de sua união com Urano. No entanto, a maioria deles temia o poder avassalador de seu pai e recusava-se a enfrentá-lo. Somente Cronos, o mais jovem e ambicioso, demonstrou coragem e um profundo ódio por Urano. Ele via na opressão de sua mãe a oportunidade de tomar o poder para si.
Cronos, o mais novo, durante muito tempo vinha sonhando, em segredo, tornar-se o rei do mundo. Ele sabia que seu pai havia cometido um erro grave, aprisionando os filhos no mundo subterrâneo de Tártaros. E agora, chegava a hora de agir. Cronos apenas sorriu, nem precisou dizer nada, pois através daquele sorriso deixou filtrar todo o ódio que sentia por seu pai. Ódio que nascera e crescera ao perceber, pela primeira vez, o desespero de sua mãe.
Gaia, com a ajuda de Nix, a deusa primordial da Noite, forjou uma arma para Cronos: uma foice feita do mineral mais resistente conhecido, o diamante. Essa foice brilhava com uma luz própria, carregada da intenção de cortar o vínculo entre o Céu e a Terra. Gaia instruiu Cronos e conspirou com seus outros filhos para capturar Urano. Na noite fatídica, quando Urano desceu sobre Gaia, os Titãs Hipérion, Crio, Céos e Jápeto seguraram os punhos e tornozelos do deus, imobilizando-o. Então, Cronos, escondido nas sombras, brandiu a foice e, com um golpe feroz, castrou seu pai, apanhando seus testículos com a mão esquerda (que tem sido desde então considerada mão de mau agouro) e os atirando depois, junto com a foice ao mar, perto do cabo Drépano.
Os testículos de Urano foram jogados ao mar, perto do cabo Drépano. O grito de dor do deus ecoou por todo o universo, abalando a criação. O sangue que escorreu de sua ferida caiu sobre Gaia, fertilizando-a. Do mar onde os restos de Urano foram arremessados, nasceu Afrodite, a deusa do amor e da beleza, emergindo das espumas brancas. Já na terra, o sangue gerou os Gigantes, as Erínias e as Melíades, cada um com um papel fundamental na ordem e no caos que se seguiram.
Os Gigantes eram seres imensos e terríveis, com corpos parcialmente humanos e parcialmente serpentinos. Eles erguiam suas mãos colossais ao céu, urros misturados aos trovões, desafiando os deuses que viriam depois. Gaia, ao perceber sua mortalidade, semeou uma erva mágica capaz de curá-los quando feridos. Mas os Gigantes eram violentos e destrutivos, arrancando árvores e lançando-as aos céus em gestos de rebeldia.
As Erínias, ou Fúrias, nasceram do mesmo sangue, representando a vingança e a justiça implacável. Eram Tisífone, a vingadora de assassinatos dentro da família; Megera, que castigava a inveja e o ciúme; e Alecto, a implacável que punia a ira e a soberba. Guardiãs das leis da natureza e da moralidade, as Erínias perseguiam os culpados até que sucumbissem à loucura e ao desespero, incapazes de escapar de sua fúria.
As Erínias eram convocadas pela maldição lançada por alguém que clamava vingança. Eram deusas justas, porém implacáveis e não se deixavam abrandar por sacrifícios nem suplícios de nenhum tipo. Não levavam em conta atenuantes e castigavam toda ofensa contra a sociedade e a natureza, como o perjúrio, a violação dos rituais de hospitalidade e, sobretudo, os assassinatos e crimes contra a família.
As Melíades, ninfas dos freixos, surgiram para proteger as florestas e as árvores sagradas. Ide, Adrasteia, Amalteia, Adamanteia, Kinosoure, Helike e Melisse tinham personalidades que refletiam a visão, a proteção, a doçura e a indomabilidade. Elas tornaram-se adversárias dos Gigantes, defendendo a natureza contra a destruição.
Enquanto Cronos observava o nascimento dessas novas entidades, um misto de surpresa e ambição tomava conta de seu ser. Ele havia libertado os Titãs e os demais filhos de Gaia do Tártaro, assumindo o controle do universo. Mas a violência de seu ato e as criações que dele brotaram seriam um presságio do que estava por vir. Cronos abraçou Gaia em um gesto que misturava gratidão e promessas de um novo reinado, mas mal sabia ele que seu destino seria igualmente marcado pela traição e pelo confronto com sua própria prole.
Com isso, o deus ferido ficou sem forças tanto para governar como para ter mais filhos. Urano caiu, exangue, sobre seu leito acolchoado, calando sua voz com uma dor inigualável. E as nuvens que lhe serviam de leito tingiram-se de um vermelho tal que durante o dia inteiro houve como que um infinito e escarlate crepúsculo. Assim que teve a separação do céu e da terra.
Gaia, ainda atordoada, olhou em volta à procura de Urano, mas não mais o encontrou. Seu corpo etéreo já havia se misturado ao azul do firmamento e a intuição lhe disse que, de longe, ele estaria para sempre acompanhado seus passos, os passos de seus filhos e de todos aqueles que ainda estavam por vir. Entre o céu e a terra formaram-se camadas de ar, que circulavam livremente, dançando no éter.
Entretanto, pouco tempo depois de assumir o comando supremo, Cronos confinou de novo os ciclopes no Tártaro junto com os Hecatônquiros e, tomando sua irmã Réia como esposa, governou a Élida. Urano profetizou que, assim como Cronos destronou seu pai, seria destronado por um de seus filhos.
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