O velho papa-figo ficou rondando a casa mais vezes durante o dia. O proprietário ficou um tempo de frente para a janela de sua cozinha. Tinha a visão clara de uma das ruas principais do município. Várias pessoas transitavam por ali, indo para o trabalho ou voltando para casa, estudantes se dirigindo à escola, todos sem ter a menor noção que transitavam entre criaturas tidas como lendas. "Sortudos", ele pensou.

Poucos minutos depois da ida da Matinta, Vicente saiu para providenciar as coisas necessárias para sua empreitada, despachando sua porta antes de sair1. Não se preocupou em proteger a casa. Já havia feito isso há muito tempo.

Começou indo para o bar sete portas, o lugar mais próximo de sua casa. Encomendou, para o mesmo fornecedor de sempre, a cachaça de mel e gengibre mais envelhecida que houvesse no lugar e uma tira grande de fumo de corda. O bar havia acabado de abrir. Geraldo, o dono do estabelecimento, limpava o balcão, com um pano que mais sujava do que limpava. Se aquele lugar dependesse dos mesmos clientes habituais de outros bares, com certeza teria falido há muito tempo. O estabelecimento estava caindo aos pedaços. As garrafas nas prateleiras juntavam uma camada espeça de poeira. Baratas caminhavam ali sem se incomodar com a presença de humanos. Porém aquele lugar servia a outro tipo de cliente. O tipo de cliente como Vicente. O tipo que conseguia colocar uma panela no fogo sem precisar acender o fogão.

Depois tratou de comprar uma toalha na cor azul clara do tamanho do recém-nascido, juntamente com uma cestinha. Numa casa de arquitetura antiga e aparência descuidada no centro da cidade, que na verdade era uma loja de...itens, comprou uma canoa pequena com estrelas pintadas no casco, duas carrancas, pouco maiores que uma miniatura e um cachimbo. Notou o papa-figo passando próximo a si algumas vezes. Teria que distraí-lo antes de saírem mais tarde.

Antes de voltar para casa, retornou ao bar e pegou suas duas encomendas e entregou o cachimbo ao dono do lugar.

Mais uma vez cruzou com o papa-figo. Quando virou a esquina, percebeu que o velho tentava observar a janela da frente da sua casa, praticamente tentava pular o portão. Ao perceber que estava sendo visto por Vicente, colocou o saco de estopa nas costas e saiu do lugar aonde estava, seguindo na direção ainda com aquele sorriso maléfico no rosto.

— A gente tem que tirar um dia para cuidar daquele velho. Ele passou o dia rondando a casa. Eu ia levar o menino para tomar um pouco de sol, mas eu achei arriscado.

Roberto abriu a porta, mas não fez a menor menção de ajudar o companheiro a carregar a quantidade de compras em seus braços. Pelo contrário. Se jogou na poltrona da sala deixando-se ficar largado ali, como se fosse sua própria casa. Para evitar estresse, Vicente preferiu ignorar.

— Já percebeu que você só me da péssimas notícias? — Vicente praticamente jogou suas compras em cima do sofá.

Roberto tirou do bolso um pacote de papel seda, fumo e um isqueiro.

— Apenas estou avisando. Aliás, você ainda não me falou seus planos. — Roberto enrolou o cigarro e ligou o isqueiro.

Assim que a ponta do cigarro queimou, Vicente deu um tapa na mão em que Roberto segurava o isqueiro.

— Ei!

— Antes de executar o plano temos que distrair o velho.

—Ok! E...quais são seus planos?

— Você vai saber logo. Mas antes, aproveita que o velho saiu daqui de perto. Ele está dando a volta no quarteirão. Deve levar uns quatro, cinco minutos até ele voltar aqui. A vizinha aqui do lado tem uma filha e a menina deixou a boneca do lado de fora. Enquanto ele não volta aqui, você vai lá e pega a boneca. O resto, você descobre.

1Jogar três punhados de água, antes de entrar ou sair de casa.