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A última criatura morreu por volta das seis horas e alguns quebrados da manhã. Não pelas suas balas. Estas já tinham acabado a muito tempo. O que matou o animal foram os primeiros raios de sol que começaram a surgir através da serra. O outro monstro fugiu assim que viu os primeiros vislumbres do nascer do sol.
Assim que o cheiro de queimado se dissipou, e a última criatura se embrenhou na floresta, Vicente caiu desfalecido, cansado demais, nervoso demais. A luz amarelada do sol invadia a cabana pelas frestas feitas pelos animais.
Acordou com o choro alto atrás de si. Soltou um resmungo baixo, se movendo com dificuldade. Todas as articulações de seu corpo doíam. A cabeça latejava. A luz do sol incomodava atingia diretamente as suas pálpebras então manteve os olhos fechados. Deduziu que não estava mais na cabana de taipa, isso devido a maciez abaixo de si. Teria tido forças para voltar para casa?
O choro atrás de si foi, gradativamente, diminuindo até que parou. "O menino está vivo afinal". Passos atrás de se seguiam de um lado para o outro. Estando com um aliado ou um inimigo, ele não estava com forças, nem vontade, de fazer qualquer coisa minimamente sensata no momento. Cobriu os olhos com as costas das mãos e focou em voltar a dormir. Conseguiu. Teve sonhos turbulentos.
Anahi levantava da sua cova. O corpo já em estado de decomposição se erguia, se contorcia. As unhas davam lugar a garras longas e afiadas. Os cabelos se transformavam em uma pelagem grossa e arrepiada. O rosto, antes delicado, se transformava numa caveira animalesca de focinho alongado. O corpo se transformava numa figura alta e esguia. Um rosnado alto, quase um rugido, sai da criatura. Ela se curva, e corre em direção em sua direção, com a bocarra cheia de dentes aberta.
Acordou num sobressalto. O coração quase saindo da sua caixa torácica. A respiração descompassada. O suor escorria em bicas. O estomago dava voltas e mais voltas. A bile escapou, deixando um ardor na sua garganta, e caiu em algo que fez um som metálico.
— Um bom dia para você também. — Uma voz conhecida falou atrás de si.
Se deixou cair com as costas no encosto do que havia percebido que era um sofá. Deixou a cabeça pender para trás, para acalmar a respiração e evitar, de alguma forma, o cheiro desagradável.
— Se fosse no meu chão eu era capaz de limpar esfregando a sua cara.
O som de algo metálico sendo arrastado pelo chão foi se distanciando. Vicente permanecia de olhos fechados. Os batimentos e a respiração se acalmavam aos poucos. Diferente de seus pensamentos, que continuavam uma bagunça.
— Faz o favor de não encher meu saco. Meu dia ontem já foi terrível o suficiente.
Passos ecoam pelo piso de madeira. Seu aliado abre uma porta, mexe em pratarias. O cheiro de café inunda suas narinas e vai aumentando a medida em que os passos retornam para perto do sofá.
— Eu imagino.
Após um toque no seu ombro, Vicente abre os olhos. À sua frente, está uma mesa baixa de madeira clara, uma estante com uma televisão de tubo cinza e um aparelho de DVD. Pela visão periférica, vê que no canto da sala há uma samambaia e um vulto agachado próximo a janela, por onde a luz do sol entrava no cômodo. Ao seu lado, uma mão de dedos finos segura uma xicara de café.
— Sinto muito. Sei que fez de tudo para salvá-la.
Vicente pega a xícara e, imediatamente, leva a boca. O gosto amargo do café desce por sua garganta lhe dando uma sensação de alivio.
— Essas palavras não funcionam comigo e você sabe disso.
A outra figura se afasta. Por alguns segundos some, e retorna. Segurando um emaranhado de panos no colo. Tem tanto cuidado que nem parece a mesma pessoa com quem convive normalmente.
— Eu imaginava que você ia dizer isso, não sei por que eu inventei. — A figura alta e esguia rodeou o sofá e se aproximou de Vicente — Ao menos, o menino está bem.
O companheiro fez menção de entregar a criança ao outro. Vicente virou a cara.
Sim, o menino estava bem. Não, ele não queria olhá-lo.
O ato travou a figura que segurava o recém-nascido.
— Isso é sério? — Ele perguntou com indignação.
Vicente virou a xicara de café, deixou um gole do líquido na xícara e a empurrou para a borda da mesa.
— Crianças que chegam com uma morte envolvida tendem a ser um mau agouro.
O vulto levantou-se com dificuldade e andou lentamente até a mesinha. Encontrou dificuldade para se curvar, mesmo se apoiando na bengala, então Vicente pegou a xícara de café e lhe ofereceu. O senhor sorriu. Aceitou a xícara, bebeu o café. Pôs a mão no chapéu de palha saudando o mais novo a sua frente. Vicente meneou a cabeça saudando-o de volta. De repente, ele já não estava mais lá.
O outro homem presente na sala, apenas viu a xícara esvaziar, como se o resto do café presente nela tivesse evaporado. A sensação de que havia mais alguém presente além dos dois, e a criança, se esvaiu.
— Eu vou fazer de conta que não escutei isso. — A criança no seu colo, a morte de uma Icamiaba, e o massacre na tribo eram mais urgentes, é claro. Mas, sua curiosidade falava muito alto, praticamente gritava. Além do mais, ele não tinha ideia do que falar no momento — Como fez isso?
Vicente soltou um riso, sem graça, e sacudiu a cabeça em negação.
— Você deveria entender dessas coisas melhor do que eu. — Ele pegou a xícara vazia, se levantou, se desequilibrando no processo, e seguiu para a cozinha da casa, separada da sala por um balcão poucos metros atrás do sofá. A cabeça ainda rodava. Foi para o outro cômodo se apoiando nas coisas que via pela frente — E não deveria sentir medo também. Já sofreram muito. Só estão aqui para ajudar.
Encontrou um pacote de flocão no armário. É, cuscuz era a única coisa que precisava agora. Preparou em silêncio, presente desde que seu amigo(?) havia se enfiado novamente mais adentro da casa. Quando este retornou, Vicente estava sentado em um dos bancos próximos ao balcão virado para o fogão. Com o canto dos olhos, percebeu que o habitual chapéu panamá e os trajes brancos não estavam presentes.
"A noite deve ter sido terrível para todos no fim das contas. " Pensou enquanto encarava fixamente a cuscuzeira e a chama abaixo desta. Os olhos refletiam a mesma chama azul que saia da boca do fogão. Uma das mãos estava levantada poucos centímetros a frente de seu rosto, com o mesmo azul do fogo rodeando seus dedos.
— É, você parece precisar de ajuda mesmo. — Roberto falou com ironia. Foi até o armário e pegou pratos, colheres e um copo americano, que encheu com as últimas gostas de sua cachaça favorita. Teria ficado completamente consternado, porém mais três garrafas daquela o aguardava. — Ele é seu filho caro amigo.
Vicente bufou alto. Tanto a chama do fogão quanto a que serpenteava entre seus dedos se apagaram e os olhos voltaram a cor castanho escuro. Foi até o fogão e ligou-o, no fogo mais alto.
— Olho só...
— "Olha só" nada. — Roberto falou alto — Eu vi o lugar da cova. Uma pessoa morreu Vicente. Pessoas morreram. Uma tribo milenar caiu porque você resolveu quebrar a barreira. Agora o último herdeiro daquela tribo está dormindo na minha casa, e você é o pai dele.
— E o próximo a ser carregado nessa tragédia.
— E desde quando você tem esse medo?
— Desde que eu vejo as pessoas a minha volta indo embora, e eu tenho que ficar aqui enterrando um a um.
— Então, se é você que tem tanta gente enterrada, e tanta gente para enterrar, talvez não seja o garoto que seja um mau agouro. Talvez seja você. Então seja homem, e sustente suas gracinhas, fazendo o favor. Acredite, eu entendo muito bem você não querer ficar com o garoto. Mas isso é algo que eu faria. E você é muito diferente de mim.
Vicente bufou mais uma vez. Foi ele quem havia dito aquilo, há um bom tempo quando se conheceram. Agora sentia o famoso "o feitiço virou contra o feiticeiro".
— O boto está me dando um sermão sobre paternidade. — Massageou as têmporas e deu um riso sem graça baixo — Eu devo estar completamente no fundo do poço.
— Ao menos proteja o menino. — Roberto ignorou o comentário do companheiro — Ele é um alvo fácil.
Aquilo era verdade. Era um recém-nascido, então atraia todos os tipos de monstros carnívoros (lobisomens, capelobos, bichos-papões e até papa-figos). Era filho de uma lenda, descendente de uma tribo milenar, então outras lendas, em sua maioria hóstis, tentariam aproximação. Era seu filho, e sendo considerado um dos culpados pela causa da extinção das Icamiabas, a culpa também recairia sobre o garoto. Se o abandonasse ao léu agora, não estaria sendo tão diferente de algumas pessoas, e criaturas, que ele tanto sentia repulsa.
— Sim, você está certo.
Vicente desligou o fogo. Da onde estava, tinha a visão da janela. Pela paisagem, estava na "casa da roça" do companheiro. O local mais próximo da outra casa aonde virou a noite. Então ainda estavam no rastro dos outros bichos-papões. Por um lado, nenhum papa-figo chegaria aqui. De qualquer forma, se viessem em montes, certamente seria mais difícil se defenderem. "Péssimo local".
— Seu carro funciona?
— Daquele jeito, mas funciona.
Era melhor que nada. Ele tinha uma casa pequena no centro da cidade. Ficaria mais difícil de serem encontrados por animais que utilizam do faro. Com tantas coisas em volta, eles certamente se confundiriam. Mas precisava pensar em algo a longo prazo. Batizado? Era uma opção, mas não garantia tudo. A não ser que...
— Estamos em Belém certo? — Roberto assentiu — Quanto tempo de viagem acha que leva até Petrolina?
Roberto olhou para nenhum lugar em especifico. O cenho estava franzido.
— Acho que dois dias de viagem. Direto pela BR, talvez seja um. — Afirmou sem muita confiança — Porque?
Vicente ficou em silencio. Uma viagem longa oferecia riscos. Mas, era a aposta mais certeira que tinha. Pegou uma chave de carro presa no chaveiro da própria concessionaria e jogou para o companheiro, que por pouco não a pegou.
— Vá fazer uma revisão na sua lata velha. Abasteça, e, já que vai para o centro, pegue o meu arsenal na minha casa, e coisas necessárias para o menino. Vamos para Petrolina. Um sábio me soprou uma ideia.
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