+10 - Natanael García - 2017
Temer ao escuro é normal, mas se você sabe o que se esconde nas sombras, temer ao escuro é sensato.
Passei a viagem olhando através da janela da viatura, concentrado nos meus pensamentos. O mundo segue a regra esférica. Embora eu não estivesse de volta ao mesmo lugar, aquela nostalgia me dizia que estive andando em linha reta a vida inteira. Nenhuma boa evolução, uma repetição fodida.
Encarei a primeira face do Miraculum e me senti em casa. Cenário novo, vivência antiga com um arrepio em diferencial. Assim que pus os pés naquele solo, soube que se tratava de um ninho de serpentes gigantes.
Minha sensibilidade mediúnica gritava sobre os riscos, sobre o peso do local. Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito, e estar cem por cento dependente da minha sorte era como assistir a confecção da minha lápide. A cada segundo, os vestígios de esperança, perdidos dentro de mim, serviam de alimento para os meus demônios. Aquele deveria ser o oficial fundo do poço.
Os policiais me entregaram para os guardas do sanatório, que só me tiraram as algemas dentro de uma sala fechada, onde não havia nada além de uma mesa, duas cadeiras e um traje dobrado.
Eu teria que lidar com o fato de ser vigiado ao me trocar, já que um dos guardas ficou me encarando, sem indícios de que me concederia o privilégio da privacidade. E, depois de vestir o uniforme dos insanos, tive que entregar todas as minhas peças de roupa. Mesmo assim, o guarda continuou de braços cruzados.
— O cordão também.
Internamente praguejei. Minha nova camiseta o escondia, mas, logo que mencionado, o dourado velho da corrente no meu pescoço reluziu para confirmar presença. Apesar de hesitar na entrega do objeto, consegui me manter neutro.
Em seguida, as algemas foram devolvidas aos meus punhos. O guarda me mandou sentar na cadeira mais distante, ficou de pé ao lado da porta e não fez questão de contar por quem nós aguardávamos. Foram minutos suficientes para ficar entediado, até que um homem de jaleco chegou, com alguns documentos em mãos, e preencheu o lugar vazio.
— Natanael García, sou o Dr. Gregory Durward, diretor do Sanatório Penitenciário Miraculum e o médico responsável por seu tratamento.
— Tenho que dizer muito prazer?
— Só tem que responder às minhas perguntas. Pode fazer isso?
— Não.
— Você não tem escolha.
— Então, por que perguntou se posso?
Ainda que nem um pouco surpreendido pela reação hostil à sua apresentação, o Dr. Durward precisou de um segundo para reorganizar os pensamentos. Eu não desviaria o olhar, tampouco ele.
A melhor maneira de atingir o alvo é ser indiretamente rude em tom pacífico. Intimei meu respeitoso psicólogo a abrir o leque. Aquele não costumava ser um jogo de dois para ele, até aquele momento. Uma sombra de sorriso denunciava que ele havia aceitado o desafio.
— Imagine um pirata, cujo navio naufragou no meio do oceano e o restante da tripulação pereceu, mas ele sabe que tem um navio da marinha nas redondezas. Quais são as opções dele?
— Se entregar ao oceano ou nadar até a praia.
Respondi mais rápido do que ele esperava. No entanto, nada que considerasse impressionante. Portanto, ele simplesmente continuou a hipótese metafórica.
— Se o pirata optasse por nadar até a praia, por mais forte que fosse, se esgotaria antes de se salvar. Ainda que fosse muito sonhador, se acreditasse ser possível vencer o oceano, então talvez ficasse mais seguro detido pela marinha.
— E se o oceano é todo o universo de um náufrago, esse pirata não seria um. O que está além dos conhecimentos dos tubarões faz deles peixes pequenos, e a marinha inteira, criancinhas num botezinho. Se não fossem ignorantes, em vez de ficarem se achando os reis do mar, fugiriam como um cardume de sardinhas foge de uma baleia.
Aquele rosto inexpressivo não me passava informações sobre o efeito das minhas palavras. Por outro lado, os braços cruzados me impulsionaram a derrubar a metáfora e explicar meu ponto de vista.
— As paredes deste sanatório estão muito longe de ser tudo o que me cerca. Sei com o que devo ou não devo me preocupar. E, caso queira saber, seu dogmatismo não significa nada pra mim.
Por um segundo, Dr. Durward baixou os olhos para os documentos em suas mãos. Não persistiu na discussão ou me questionou. Não havia nem sequer um sinal externo de irritação. Então, eu soube que mudaria de assunto.
— Usa ou já usou drogas?
— Usei e estou prestes a usar de novo. Disseram que as farmacêuticas me ajudariam a retornar pra sociedade. Quem dera. Como previsto, em vez de melhorar, piorei um pouquinho.
— O que você considera piorar?
— Antes dos tarja preta, eu poderia reconhecer, honestamente, que não tenho lá um temperamento muito bom. Depois dos tarja preta, eu poderia dizer, honestamente, que os meus comprimidos que têm temperamento ruim e que me obrigam a entrar em universos de pouca gente viva. Isso parece um bom sinal?
— Não, não parece.
— E não advinha por que isso acontece.
— Por que seria?
— Porque não sou esquizofrênico.
— Pode ser que não seja. Nesse caso, é provável que você seja transferido para um presídio menos amigável do que este lugar.
— Ambicione isso o quanto quiser, Dr. Durward. Não vai conseguir se livrar de mim.
Meu psicólogo mostrou um mísero sorriso, não amistoso, mas padrão da profissão.
— Ouvi dizer que o Brasil é um país mal administrado, e também que muitos brasileiros têm costumes criminosos. Todas as classes sociais roubam com frequência, certo? Só algumas pessoas matam.
A questão implícita não tinha a ver com os problemas políticos socioeconômicos que poderiam ser solucionados no meu país natal, a questão era absolutamente pessoal. Por mais que me esforçasse, não dava para não demonstrar ter sido atingido por aquela indireta ofendendo minha inteligência. De qualquer forma, assenti.
— É.
— Me impressiona que concorde comigo.
Apesar de Dr. Durward ser bom nisso, eu não acreditava que fosse capaz de me tirar do sério, até que ele colocou um saco zip em cima da mesa. Era o meu cordão ali dentro.
Me senti exposto. Um ar sombrio tomara meu rosto em cada mínimo aspecto. Meu psicólogo ajeitou o jaleco e esperou por mais algum retorno. Eu não disse nada.
— Imita um relógio de bolso. É uma peça artesanal, não é? Incomum e antiquada.
— Sim.
— O relógio não funciona. Por que você usa?
— Porque sim.
— Isso não é resposta.
— Que pena.
— Não vou insistir. — Ele continuou analisando o cordão. — Não parece uma réplica. É feito de ouro?
— Provavelmente.
— De onde saiu?
— Herança de família.
— García, é interessante que, com seu histórico de vida, você permaneça com uma herança de família provavelmente valiosa.
— Eu não o roubei.
— Eu não disse que você o roubou.
Tentando ofuscar minha frustração, respirei fundo.
— É de parte materna.
Ele hesitou, parecendo ter sido agradado.
Que filho da puta...
— Sua decisão de se mudar para os Estados Unidos teve alguma coisa a ver com sua reputação no Brasil?
— Essa pergunta é meio idiota.
— Por quê?
— Dr. Durward, sabe alguma coisa sobre o processo de conseguir um visto pra viver aqui do zero?
— Não é fácil, mas você conseguiu.
— E sabe como.
— O que está documentado é que você foi contratado pela Rede Alhena há quatro anos. Após dois anos no Brasil, foi transferido para cá, porque o fato de você falar três línguas combinava com o que o hotel daqui necessitava. Mas sinto que há algo nas entrelinhas da sua vinda.
— A filial da Flórida recebeu mais investimento do que os outros hotéis da rede. Consequentemente, a seleção de funcionários foi exigente também. Embora meu rosto possa desvalorizar meu currículo, sempre fui um excelente funcionário. Talvez eles quisessem mesmo se livrar de mim de um jeito vantajoso. Satisfeito?
— Você não pediu transferência?
— Meu país conhece minhas cicatrizes, enquanto meus olhos azuis concordam com o sonho americano.
— Isso é um sim?
— Interprete como quiser.
— Prefere falar sobre Oliver Trevor?
— Seria inútil. Acha que sei alguma coisa sobre ele?
— Não pressuponho. Espero que me diga.
Dei de ombros.
— Fomos colegas de trabalho por um terço do expediente de um dia.
— Justamente o dia em que seu patrão foi assassinado.
— Onde quer chegar? A maldita fase do tribunal não tinha acabado?
— Relaxa. Não estou aqui como seu inimigo. Pelo contrário, sou a pessoa que pode te escutar e compreender sua versão de todas as histórias, considerando suas fantasias de mediunidade e...
— Quanta generosidade a sua, doutor, mas dispenso. Afinal, sou um desequilibrado pouco preocupado com isso, principalmente agora.
— Está bem. Você terá tempo para se adaptar ao seu tratamento. Por enquanto, procure obedecer aos enfermeiros e tente não ser muito criativo, porque a camisa de força serve para mais do que restrição física. Vamos encerrar por aqui.
Assim que Dr. Durward saiu, os guardas me levaram para a cela, onde havia um sanitário, uma cama e uma resistente porta com visor, para que os enfermeiros pudessem espiar antes de entrar. O ponto mais negativo era a câmera de segurança, o mais positivo era a limpeza.
Apesar da ansiedade, não senti que a noite demorou a chegar. Escutei um zelador esfregando o chão do corredor por uns minutos, e os guardas conversando sobre atrizes pornô sem cerimônia. Logo, as luzes das celas desligaram-se e as do corredor tornaram-se mais suaves.
Embora eu não tenha chegado a dormir, senti um nível superficial de sono depois que virei para a parede. Contudo, meu estado de alerta retornou em potência máxima, quando uma presença me permitiu ouvir seus passos cambaleantes. Sons guturais vieram em conjunto. Tive a impressão de que aquilo se esticou para me alcançar e relutei em abrir os olhos, até que minhas costas foram tocadas. No mesmo segundo, me ergui da cama.
Meu coração disparava de acordo com minha respiração ofegante. Certa ardência me levou a me conferir. Não havia nada de errado, a não ser talvez o cheiro nauseante de queimado a se originar nos meus próprios pulmões.
Respirei fundo, olhei em volta. Não vi diferença na cela. Gemidos e passos pararam, porém um forte calafrio me indicou o canto mais escuro e mais distante do quarto.
Sem pretensão de me aproximar dali, me movi devagar para a porta e, através do visor, consegui ver o relógio da parede do corredor. O ponteiro dos segundos fazia seu trabalho, enquanto os outros dois marcavam duas e quinze da manhã. Eu poderia jurar que só haviam se passado alguns minutos desde o anoitecer.
Olhei de novo para o canto do quarto. O que me tocara permanecia ali, mas pelo que esperava?
Voltei para cama e me sentei o mais longe possível. Vi o dia amanhecer com a tensão inalterável. Entendi como um modesto cartão de boas-vindas. Se habitantes mais antigos daquele local desejavam minha estadia, ninguém me expulsaria. Nada mal para a primeira noite.
Os raios de sol nem esquentavam ainda quando enfermeiro entrou na minha cela com dois copos descartáveis Os guardas do corredor o acompanhavam.
— Tome o medicamento — disse o enfermeiro.
— O que poderia dar errado, não é Pequeno Theo?
Ironicamente, a expressão dele compreendia o meu sarcasmo, acima do desconforto em ouvir seu nome na minha voz. Em vez de pensar sobre isso, continuei observando o broche metálico de identificação com a inicial do sobrenome, preso ao uniforme do enfermeiro jovem demais para trabalhar num sanatório penitenciário.
— Não me chame assim — ele resmungou o pedido.
Encarei o comprimido. Já ter sobrevivido a antipsicóticos antes não me estimulava a me testar outra vez, na verdade. Aquilo costumava piorar muito as coisas. Sendo assim, preparei um aviso, sob um meio sorriso, ao deslizar o medicamento do pequeno copo para minha boca.
— Pode dizer ao Dr. Durward que tomei minha decisão junto com isso aqui? Este pirata nadará contra a maré, mesmo que morra na praia. Mas se acontecer de não morrer... alguma coisa muito séria vai acontecer nestas terras.
Me dando apenas um franzir de cenho em resposta, o enfermeiro saiu e os guardas trancaram a porta novamente. Então, eu poderia devolver atenção ao canto que me assombrou durante a noite. Naquele momento, estava iluminado e vazio.
E o que foi a primeira noite? Havia muito mais escuridão reservada para quando o comprimido fizesse efeito. Eu já não me considerava saudável o bastante para temer antecipadamente.
Eu me sentia acumulando cargas ruins e, se não conseguisse me livrar delas, o acúmulo logo seria comparável a um incêndio devastador. O prudente seria impedir o iniciar do fogo, mas...
Quer saber? Se for para morrer sozinho, deixemos que essa merda toda queime e vamos nos fritar todos juntos, predadores e presas.
~~🐍💀 🐍~~
Olá, leitor(a)!
Até que enfim chegamos ao último conto desta coletânea (de novo hehe)!
Dedico a última chave de HIPNALE+ a AmandaOliveira67, a única leitora que escolheu Natan como personagem favorito publicamente (nos comentários).
Comenta aí: qual dos 10 é seu favorito? 👉
Devo ressaltar que acho indigno Natan não ser popular, mas se for para considerarmos um ranking onde tem Oliver e Gregory, entendo que seja uma tarefa complicada escolher. Oliver tem a torcida do Flamengo ao lado dele, o que acho muito legal e um pouco preocupante. 😅
Chegou até aqui? Segue para Sem Tarja.
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