• BONECO DE PANO • [capítulo 1]
De todas as lembranças que tenho daquela época, em quase todas ele está. Ainda hoje, posso senti-las correndo soltas em minha cabeça. E a cada som, a cada toque ou tom, minha mente pesca uma e me perco, tentando montá-las como um quebra cabeça, tentando entender como chegamos até aqui.
A cor que me faz lembrar dele nesse dia era o preto. Estava em todo lugar, nos ternos, nas nuvens carregadas, no caixão semiaberto, inundando a Igreja de Santa Rosa e nublando os rostos. Na minha cabeça de menina, tudo se misturava e eu mal conseguia entender o que estava acontecendo. A voz do padre reverberava entre a madeira e o concreto, enquanto o silêncio se estendia. Até Papa estava calado e ele nunca fica em silêncio. Nesse dia, tudo me distraía: o pé de Giulia batendo no apoio do banco, o choro fraco de alguém ao fundo, a casula dourada e vermelha de Padre Alfredo, a foto de tio Dante e tia Serena estendida no meio. Mama também teve uma dessa, me lembro de pensar, mas Mama parecia triste, tia Serena não. Foi quando voltei a olhar para o meu lado, que o vi sentar entre mim e Papa. O que Enzo está fazendo aqui? Ele parecia diferente, menor, encolhido, até com medo. Papa deve ter brigado com ele, pensei. E assim como Giulia fazia comigo, baixei minha mão e peguei a sua. Segurei-a por um tempo, esperando que Giulia me repreendesse ou ele me olhasse. Nenhum dos dois aconteceu, mas ele também não as tentou tirar, nenhuma vez. Em resposta, eu apertei seus dedos até que ele me olhou.
Seus olhos foram a única coisa que me prenderam, então. Vermelhos, molhados e verdes, verdes tão claros como eu nunca tinha visto. Antes que pudesse falar com ele, a missa acabou e Papa o levou. Em uma sucessão sem fim, um atrás do outro, mãos o embalavam, apertavam e empurravam. E Enzo só ia, sem direção, perdido no mar de gente, sendo guiado pelo meu pai. Acho que nem eu e nem ele entendíamos o que estava acontecendo ali. Como brutalmente tudo havia mudado para nós. Papa agora era o chefe da Famíglia. Eu e Vincenzo, os únicos herdeiros De Santis.
Para uns, uma benção. Para nós, uma maldição.
Uma vez, Giulia me encontrou no quarto de hóspedes, atrás de uma das cortinas, chorando baixinho. Em uma das mãos, eu segurava minha boneca de pano preferida. Era com ela que Mama me deixava dormir todas as noites. E era com ela que eu matava as saudades quando me lembrava de minha mãe. Mas na Famiglia era inaceitável que uma menina de 6 anos continuasse a chorar pela mãe depois de quase dois anos de sua morte. Então, quando Giulia me encontrou mais uma vez chorando em algum canto escuro da casa, ela teve que me contar uma história. Ela me disse que se eu fosse tomar café da manhã aquele dia, sem chorar, nem correr, ela iria me contar um segredo que só ela sabia.
Horas depois, quando Papa já tinha me visto e eu me comportado, Giulia me levou a parte mais afastada da casa, a estufa. Antes daquele dia, eu só tinha ido àquela parte com a minha mãe. Com uma mistura de apreensão e entusiasmo, Giulia me levou até lá para me mostrar o pequeno segredo que a estufa guardava. Agachada à minha frente, ela me mostrou a flor mais linda que eu tinha visto, uma rosa vermelha. Ela me disse que aquela era a flor que a minha mãe mais gostava e que se algum dia eu sentisse saudades dela, era só ir ali. Quando tentei pegá-la, Giulia me parou. Disse que eu tinha que ter atenção, que cada rosa tinha pequenos espinhos e que se eu não tivesse cuidado, eu poderia machucar o dedo. Com os olhos grandes e uma expressão dura, ela me disse: "e nós não queremos que o Papa saiba, não é?". Mesmo tão pequena, eu sabia o que essa frase significava e o que poderia acontecer. Eu balancei a cabeça, negativamente, várias vezes, até que ela mesma me deu a rosa. Depois daquele dia, eu ia para a estufa todas as tardes. Com o tempo, Giulia e o jardineiro, Marcelo, me ensinaram a cuidar das flores.
Foi um pouco antes disso, quando eu só podia olhar as rosas, que algumas coisas mudaram para mim. Em mais uma sexta, quando Papa passava ainda mais tempo fora de casa, eu decidi ir para lá. Nesse dia, Giulia estava muito ocupada na cozinha para notar e Marcelo já deveria ter ido para casa. Mesmo pequena, eu sabia bem que era melhor não ir sozinha. Mas numa tarde tão chuvosa como aquela, a única coisa que eu queria era ficar perto das rosas de Mama. Com as minhas galochas de glitter e meu sobretudo rosa, eu entrei escondida na estufa. Talvez por isso, eu não tenha notado a presença dele. Eu me sentei por um tempo, olhando a rede branca prendendo as pétalas. Por um momento, eu pensei que não ia fazer mal que entre tantas flores eu tirasse só uma. Eu já tinha visto Marcelo cortá-las, tirando-as, quebrando o caule, e se eu tivesse tanto cuidado quanto ele, talvez...
— O que você está fazendo?
— Ai!
Qualquer cuidado que eu tive se foi quando ouvi sua voz. Em troca, eu tinha um pequeno furo no dedo. E como qualquer garota de 6 anos, mais pela surpresa que pela dor, comecei a choramingar.
— Deixe-me ver...
Eu mal tive tempo de registrar que ele tinha chegado perto, muito menos que ele segurava minha mão. Quando vi, lá estava Vincenzo, o primo que eu mal tinha visto a minha vida toda, agachado ao meu lado, chupando o meu dedo para estancar o sangue. E como tudo na minha vida é quando ele está, eu nunca poderia esquecer esse momento. Como ele me olhou com o dedo na boca, como era a cor dos seus olhos. O mais estranho verde, com os olhos tão grandes e enervantes. Assim que ele tirou o dedo da boca e inspecionou, o sangue tinha ido embora.
— Aí, pronto! – ele olhou para mim, ainda com as mãos nas minhas – Viu? O dodói se foi.
De abrupto, eu tirei minha mão e o olhei, brava.
— Não fale assim comigo.
— Assim, como?
— Eu não sou um bebê mais.
Pode parecer estranho que eu tenha me revoltado tanto, mas para mim, que queria impressionar o meu pai e que já tinha sofrido as consequências de ser uma "menina" no meu mundo, ser tratada como uma garotinha me deixava muito brava. O que evidentemente era a coisa mais divertida para Vincenzo ouvir. Com toda a cara feia que eu estava fazendo, ele deve ter visto que não gostei e apenas sorriu.
Ele continuou: — Mas parou de doer?
Parei minha birra por um momento e olhei para o dedo. O pequeno corte tinha parado de sangrar.
— Eu estou bem! – eu meio que gritei para ele, me levantando.
— O que você está fazendo aqui? — ele se levantou também.
Mesmo para um menino de 11 anos, ele parecia muito maior do que eu. Então, todo o medo de ser pega voltou.
— Nada.
Dei de ombros, segurando o meu dedo machucado no peito, como se aquilo pudesse me proteger de qualquer encrenca.
— Luna... Meninas grandes não mentem, mentem?
Eu neguei, balançando a cabeça de um lado para o outro, mais de uma vez.
— Então?
— Eu queria ver as rosas... de Mama – acrescentei, como se ele entendesse o motivo.
Por um minuto, seus olhos tão verdes, ficaram opacos. Ele olhou para as flores e novamente para mim, em silêncio. Sem me avisar, ele veio até a mim e puxou minha mão, suavemente.
— E você vem aqui todos os dias?
— Mais ou menos... — como ele não disse nada, eu confessei – Quando eu me lembro de Mama, eu venho aqui.
— Você lembra muito dela?
— Todos os dias... Mas como Papa não gosta, eu só venho aqui com Giulia.
— Leonel não sabe que você vem aqui?
Como se descobrisse o meu segredo, eu o olhei assustada e tentei negar, sabendo que já tinha entrando em uma encrenca maior ainda. Quando ele parou na minha frente e se agachou mais uma vez, pensei que fosse brigar comigo, mas ao invés disso, ele olhou a estante ao seu lado e apontou para as flores que estavam lá.
— Você conhece essa flor?
Eu neguei com a cabeça, com medo que se eu falasse ele pudesse contar tudo e estragar meu esconderijo.
— São jasmins. — ele continuou calado por um tempo — Assim como as rosas, essas são... essas eram as flores preferidas da minha mãe.
— É?
Com uma frase, ele passou de inimigo para o meu maior cumplice. Afirmando com a cabeça, ele me perguntou:
— Você gosta delas? Acha bonita?
Eu as olhei, ainda de longe, tão pequenas dentro do vaso, tão brancas e sem graças. Tentei entender o porquê. Quando voltei a olhar pra ele, podia ver que carregava o olhar mais triste que um menino podia ter. Então, eu menti.
— Gostei muito, elas são lindas.
Com um pequeno gesto, ele arrancou uma do caule e a segurou na mão.
— Toda vez que você se lembrar da sua mãe, pegue essa. Ela não vai te machucar.
— Não?
Olhei as flores novamente um pouco apreensiva.
— O caule dessa não tem espinhos como as rosas. Aqui...
E quando vi, ele já estava colocando o pequeno jasmim branco atrás da minha orelha.
— Agora você também está linda.
Eu tentei me conter um pouco, tentei não rir e sorrir para esse menino, tentei parecer normal e falhei. Ele deve ter visto como aquilo me fez feliz. Talvez se eu não parecesse tão feliz, ele não tivesse feito a promessa.
— Toda vez que se sentir triste e estiver chovendo, você pode vir pra cá. Eu vou esperar por você. Tudo bem?
Talvez se eu não tivesse tão feliz por ter um novo confidente, ele não cumpriria suas palavras.
E talvez, assim, eu não teria me apaixonado um pouco por ele aquele dia.
Finalmente,primeiro capítulo de Hereditário postado!
Espero muito que vocês gostem dessecasalzão da porra, assim como eu! Como devem ter percebido, alguns capítulosserão narrados no passado para contar melhor como Luna e Vincenzo seconheceram. E aí, gostaram? Please,comentem e me digam se gostam desse formato! E não se esqueçam: deixe sua estrelinha,adicione esse livrinho na sua biblioteca e me segue no wattpad!
Até o próximocapítulo!
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