Amarga Liberdade
Eu me perdi de mim e nunca mais me encontrei. Isso foi um ano atrás, mas só descobri há pouco tempo.
Não é como se alguém tivesse me sequestrado e feito de mim uma pessoas sem escolhas, é o oposto.
Há um ano eu comecei a ser livre para fazer minhas escolhas e descobri que sou péssima nessa função.
Quando eu morava com meu pai, no Paraná, ele sempre nos dizia o que deveríamos fazer. Não come isso. Veste aquilo. Tu precisa de notas melhores. Para de jogar tanto videogame. Mas, desde que chegamos aqui, eu e Victor decidimos por qual caminho vamos andar. Ele, por incrível que pareça, é ainda pior do que eu nisso.
Quando estava lá, quase em uma ditadura domiciliar, tudo que eu gritava era por liberdade. Mal sabia eu que, às vezes, liberdade é a pior coisa que tu podes ter.
- Essas ficam na estufa 12 - falo para o guri com face de martelo e dentes de rato. - Vai, vai! - Ele ainda estava parado na minha frente.
Usando da minha liberdade, eu ganhei um prêmio que não queria para provar a quem nem sei mais quem, o quanto sou boa quando quero. Isso está me enlouquecendo. A quantidade de responsabilidade.
O maldito amigo da Marcela sem o qual eu não teria ganhado o financiamento também não ajuda.
No carro, enquanto ele me ajudava, eu prometi que daria um favor em troca daquele, qualquer coisa, se ganhasse. Acontece que eu não estava confiante de que iria ganhar. Eu nem fui ver o resultado, foi meu irmão quem veio cheio de palavras que mais pareciam pedras em minha direção, cuspindo rancor, porque roubei o prêmio dele e da Mônica.
Confesso, apesar de tudo, que ganhar foi a melhor vingança que poderia ter contra ele. Nossa relação ficou aos trapos desde que fiquei sabendo que ele me excluiu de propósito do seu grupo de amigos e que, por uma inveja que irmãos não deveriam sentir uns com os outros, ele fez de mim o lado podre da nossa moeda. Um lado que não precisaria existir.
- Não, se encostar na luz ela vai se queimar inteira quando crescer - sussurro, me abaixando e puxando as mudas para longe da lâmpada que simula a luz do sol. - Aqui tá quente, tu checastes a temperatura? - pergunto para Marcela.
- Três vezes, igual você mandou.
Às vezes tenho certeza de que ela me odeia, mas se odiasse mesmo não estaria às 23h de uma sexta-feira me ajudando em uma extensão que nem é a dela. Tenho dó da Marcela às vezes. Ela é boazinha demais, não sei como ninguém pisou na cabeça dela ainda. Aqui, sei que eu não deixo, mas como essa guri sobreviveu até agora? Talvez seja isso o que mais nos une. Eu sou igual, por dentro, quebro mais fácil que taça de champanhe.
- Tudo bem, acho que por hoje é isso - sussurro, colocando as mãos na cintura. - Tu vens ou o quê? - Marcela ainda está parada, encarando os 20 vaso com pequenas plantas que preciso que cresçam.
- Vamos - ela sussurra.
O cara de martelo saiu primeiro e logo depois nós duas. Apago a luz, tranco a porta, e começo a roer as unhas antes de chegarmos nas escadas. Não tem ninguém aqui além de nós duas, quase dois fantasmas em um prédio abandonado.
- Vou encontrar o Lucas amanhã
Decido contar, afinal, eles são melhores amigos e tenho quase certeza de que ele já contou. Não quero parecer alguém que omite as coisas, já me basta a dor de cabeça do meu irmão me fazendo passar como mentirosa.
- Ah, é? - A voz sai aguda. Ele não tinha contado. - Por quê?
- Porque ele é legal.
- Vocês não NADA em comum, Lis. Não tem como você achar ele legal.
- Tá, ele é bonito.
Nós duas rimos.
- Isso faz mais sentido.
Não é por isso. Por que eu disse que é por isso? Até para ela, minha única amiga em anos, eu não consigo assumir que fui ajudada. Não consigo assumir que devo um favor pro irritante do amigo dela, que está jogando comigo. Não consigo admitir que perdi o controle. Não o jogo, esse eu nunca perco, mas está na rodada dele e eu só quero que Lucas lance logo os dados.
Marcela está em silêncio, pensativa demais, queria conseguir ler a mente dela. Será que ela tem ciúmes? Acho que eu teria.
Paramos um pouco para descansar no primeiro andar. Exercício físico é algo que nos duas estamos desacostumadas.
- O Victor me perguntou de você hoje. Eu fingi que não escutei. - Ela me olha, sentada na escada. - Não consigo olhar pra ele.
- Tu fizestes o melhor. - Olho para o teto, não vejo nada. Está escuro demais. - Ele me pediu perdão, antes de saber que ganhei o prêmio, mas agora estamos em uma competição de quem se ignora mais.
- Acho que ele tá triste. A Mônica chutou a bunda dele. O clima tá uma merda na robótica. - Ela começa a se levantar e me estende a mão direita. - O seu pai te respondeu?
- Não - sussurro. - Mas a Elis sim. Ela ficou do meu lado.
Não era tão difícil tomar essa decisão. Elis é nossa irmã mais velha e ela, mais do que ninguém, sabe que eu não invento nada. Nem tenho criatividade para isso. Victor era quem sempre vinha com uma história mirabolante de que encontrou um duende na varanda ou uma fada no Jardim, um mentiroso nato.
- Tá sendo bom ficar com ela essas semanas. Sair de perto do Victor, já não basta ficar 5 dias da semana na mesma sala e esbarrar no corredor.
- Eu queria conhecer ela. - Marcela confessa, voltamos a subir as escadas. - Você sabe, acho que vou prestar Medicina. Queria umas dicas.
- Tu não vais prestar Medicina - contesto. - Vai pra Inglaterra, igual seu irmão. O que? - Marcela está negando. - Eu tenho certeza!
- Meus pais nunca vão aceitar perder outro filho - desabafa.
Essa tal liberdade, que me transborda, não cai nem em gotas na vida da Marcela. Não sei fico feliz ou triste por ela.
Meu celular vibra no bolso.
Lucas [23:05]: comprei os ingressos
Lucas [23:05]: vc me deve 6 reais
Guri insuportável.
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