01. black screen
─── TELA EM PRETO.
☾.
VERMELHO. O MAIS PROFUNDO e obscuro tom que se espalhava como fogo em uma pequena casa de vilarejo. O líquido manchava o que, inicialmente, parecia carpete. Depois, foi revelado ser gelo. Neve branca e macia que escondia a terra marrom ao olho nu. Adam levanta a cabeça, e de repente consegue ouvir gritos. Tenta parar com a confusão à sua frente, mas sua voz não emite som algum, nada que pudesse impedir os dois problemáticos homens que lutavam perto de si. Quando o Gehenna pisca, a cena muda. Magicamente, os dois estão mortos. Corpos vermelhos manchando a neve clara. Agora, outros gritos passam a eclodir na cabeça do homem, vozes das mais variadas notas, das mais diversas pessoas...
E ele acorda.
A cabeça está latejando tanto quanto na noite anterior, e ele se arrepende de ter tentado dormir. O homem se levanta e passa a mão na testa. Estava suando, apesar de mal ter se coberto.
─ Está tudo bem? ─ Ele olha para cima.
Do alto da escadaria em sua casa, uma figura pequena e feminina o encarava com receio e curiosidade. Mesmo que já fosse adulta, Íris sempre seria a menininha de oito anos que o Gehenna adotou logo cedo, a criatura pequena e estabanada que vivia seguindo o caçador por todas as direções e tentava, miseravelmente, preparar o jantar para ele todas as noites.
─ Pesadelos de novo? ─ Ela sugere, descendo as escadas.
─ Estão piores dessa vez. Talvez o Homem dos Sonhos tenha alguma antipatia por mim.
─ Você acredita mesmo nele? ─ A morena indagou, sentando-se ao seu lado no sofá.
─ Você também acreditava. ─ Adam sorriu, se divertindo com a hipocrisia dela. Íris revirou os olhos.
─ É. Eu devia ter uns dez anos na época. Você me enganava muito com essas histórias todas.
─ Acredita na Morte, mas não no irmão dela?
─ Pelo amor de Deus, que cara se chamaria Sonho? Não é muito narcisista da parte dele?
─ Talvez... ─ Adam sugere, afastando o cobertor de si. ─ Mas sendo narcisista ou não, ele ainda assim tem um papel a desempenhar. E não parece estar se saindo muito bem nisso.
─ Está falando sobre aquela doença da insônia?
─ E sobre a do sono eterno ou coisa do tipo. Já se passaram décadas desde que isso aconteceu...
─ Sabe, eu acho que como sua afilhada e melhor amiga, eu tenho o direito de ser cem por cento sincera com você.
─ Eu nunca disse que você era a minha melhor amiga. ─ Ele ergue uma sobrancelha única, mas ela o ignora de propósito.
─ Acho que está tentando inventar desculpas para justificar os seus pesadelos. Mas se continuar se alimentando com fast-foods, dormindo três horas por dia e se exercitando das sete da manhã às sete da noite, é óbvio que vai prejudicar o seu sono.
─ Você age como uma mãe. ─ Ele joga a cabeça para trás. Quando vira para o lado, percebe que a Montreau fez o mesmo.
─ Quero te ajudar do jeito que você me ajudou, Adam. Mas você também precisa colaborar.
Ele suspira. E, em um impulso preguiçoso, se levanta do sofá, e estica as costas de modo a estalar a coluna. Apesar de não dizer, era evidente o seu deleite com tal gesto.
─ Okay. Pra começar, eu não me exercito, eu caço demônios.
─ Lá vem...
─ E, em segundo lugar, eu sou imortal. Se eu vou estar condenado a uma eternidade de angústias e mortes, então preciso de hambúrgueres. E, em terceiro lugar... ─ Ele fica quieto.
─ Vai, prossiga. ─ A mulher diz, cobrindo o rosto com as costas de uma das mãos. ─ Justifique os seus pesadelos, dê um porquê à sua insônia. Mais uma fantasia pra te ajudar a fugir da sua realidade.
Mas nada vem.
Íris aguarda mais um pouco, mas o silêncio continua ali. As faces de um único segundo parecem eternas, e depois de um tempo, a falta de som na casa se torna inquietante. Então abre os olhos, e vê Adam sentado em uma poltrona, coçando os olhos.
─ O que foi?
─ Não acredita em mim. E, curiosamente, isso é inacreditável. Eu fui sincero a minha vida toda com você. ─ Ele se levanta, rodando passos largos pela sala de estar. ─ Aquele bêbado maldito do Texas mentiu pra mim. Disse que o segredo de toda boa relação era a verdade absoluta. E você está aí, achando que eu invento histórias.
A mais nova balança a cabeça, inconformada, e a joga para trás em seguida.
─ O que eu fiz para merecer essa família?
─ Eu te conto tudo, desde cedo. A imortalidade, o encontro com a Morte, o lance dos Perpétuos, meu trabalho vitalício como caçador de demônios. Lembro de ter mostrado Supernatural pra você quando tinha quatro anos e você me associou ao Dean. Eu aceitei, porque além de ser um baita elogio, era algo que te ajudaria a compreender, mas você ainda questiona, aos trinta anos.
─ Vinte e sete! ─ Ela corrige, gesticulando a mão exageradamente. ─ Viu? Está com tanto sono que não está falando coisa com coisa. Você me adotou aos sete anos, lembra? Agora, diz que assistia televisão comigo aos quatro. Está ficando caduca. Está literalmente enlouquecendo.
─ Íris, acha que eu mentiria sobre minha vida para você por quê? ─ Ele cruza os braços, aguardando curioso por uma resposta plausível. Ainda assim, estaria longe de ser mais verdadeira que a sua.
─ Não sei. Talvez você faça parte de uma máfia londrina. Como em 365 dias.
─ Você não tem nenhum respeito por mim, não é mesmo? ─ Ele leva as mãos às têmporas, massageando as mesmas. ─ Uma escritora de ficção completamente maluca com soluções medíocres. Eu poderia te matar agora mesmo.
─ Talvez isso não batesse com a sua conduta de agredir apenas idiotas e demônios.
─ Mas você está bem próxima da primeira categoria. ─ Adam sorri, vitorioso, e Íris tenta lhe acertar uma almofada no rosto. Felizmente, ele pega o objeto a tempo. ─ Como ousa?
─ Você mereceu.
─ Está bem, não vou procurar te convencer. Mas me responda: os seus sonhos não andam esquisitos, ultimamente?
─ De novo esse assunto?
─ Apenas me responda ─ O negro exige, mas a mulher cruza os braços. Ele revira os olhos. ─ Por favor.
─ É, talvez estejam. Quer dizer, na maioria das vezes, eu sonho com uma tela em preto. Mas não costumo reclamar, pois não atrapalha a minha produtividade do dia seguinte.
─ Atrapalha a sua escrita.
─ Como?
─ Quando foi a última vez que escreveu um capítulo? Seus maiores enredos vinham dos seus sonhos de quando era uma garotinha catarrenta e desastrada.
─ Você deve ser a pessoa mais insensível e arrogante que eu já conheci em toda a minha vida. ─ Ela lhe mostra o dedo do meio, mas o rosto é suavizado em seguida. ─ Mas não posso deixar de reconhecer que você pode estar certo dessa vez. Os sonhos ajudavam.
─ Era Morpheus e o seu reino incrível e provavelmente maluco. Já ouvi falar sobre ele em alguns momentos.
─ Então esse é o nome do cara? Morpheus?
─ Ele tem muitos nomes. Esse me parece o mais aceitável.
─ E você nunca perguntou para ele? Caçadores de demônios não têm acesso V.I.P. à corte do senhor dos sonhos?
Adam riu, admirando o deboche da afilhada. Ele se aproximou com certo cansaço, e se sentou ao lado dela.
─ Eu não acho que tenha motivos para visitar o reino dele. Quando você carrega muitos demônios consigo, é difícil alcançar os céus. Eles te puxam pra baixo. Sempre.
─ Então comece a orar. ─ A Montreau sugere com um sorriso singelo no rosto, e Adam ri.
─ Sabe que não acredito nessas coisas.
─ Que tipo de pessoa não acredita em Deus, mas acredita em Lúcifer?
─ Eu apenas acredito no que vejo, meu pequeno arco-Íris.
─ E já viu Lúcifer? O rei das trevas ou sei lá o que? O dono do Inferno?
─ Eu posso até dizer que o visitei algumas vezes.
─ Ha! Você é, certamente, a mais icônica figura paterna que já existiu. Eu não posso negar isso. Deveria escrever um livro. Você ficaria rico.
─ Já somos ricos. Eu, sou aqui ─ Ele aponta para o próprio cérebro. ─ E você, aqui. ─ Com o indicador, aponta para o coração da mais nova, a área coberta por um moletom surrado e azul, que seria o seu pijama. ─ E além disso, temos esse super, hiper, mega apartamento antigo e luxuoso.
Íris ri.
─ Como pagou por ele?
─ Na verdade, foi um pagamento. Meu cliente não tinha outra forma de me agradecer pelos meus serviços.
─ E isso foi quando?
─ Um pouco antes de você nascer, eu imagino.
─ Tipo, antes ou depois de Cristo?
─ Um pouco antes do fim da Segunda Guerra. O senhor era português, mas tinha propriedades na Inglaterra. Eu sei que você não vai acreditar em mim, então deduza o que quiser.
─ Você precisa dormir.
─ Se o Sandman deixasse, eu juro que o faria.
─ E o que são esses pesadelos, afinal?
Lembranças, ele queria dizer. Queria gritar. A única parte de sua vida que jamais revelou para a jovem. Era humilhante, triste, sangrento e fazia com que se sentisse impotente e fraco. Não era a visão que queria que ela tivesse dele.
─ Sonho que sou hétero. ─ Ele responde, arrancando uma longa risada da filha. De alguma forma, o som escandaloso e com uma sonoridade quase que próxima com a de um porco deixava o Gehenna feliz. Era um gesto genuíno da Montreau, como se ela não tivesse medo de ser vulnerável. Quando percebeu, estava sorrindo com ela. ─ Isso seria realmente um pesadelo.
─ Me sinto cinquenta por cento atacada com isso.
─ Poderia ser pior. ─ Ele sorri, e se levanta. ─ Agora, vá dormir.
─ Está bem, está bem. Talvez Morpheus tenha alguma piedade de mim. Talvez eu volte para o seu reino maravilhoso.
─ Um dia, vou fazer você se arrepender de todo esse deboche e descaso.
─ E eu aguardo ansiosa por esse evento, padrinho. ─ Ela sorri, e sobe as escadas com pressa em seguida.
─ Ela precisa de terapia. ─ Adam diz, assim que um silêncio natural se instala na casa.
Ele andava de um lado para o outro, convicto de que não precisaria dormir novamente, de que logo amanheceria. Pegava pastas mal organizadas nas cômodas e analisava antigos registros. De alguma forma, ele se sentia melhor ao ter o nome de cada demônio que caçou anotado em um papel. Poderia ser útil em um próximo caso.
─ Mas talvez... ─ Ele larga o arquivo, encarando a porta de entrada a alguns bons metros de distância. ─ Talvez ela não esteja tão errada assim.
Cautelosamente, o Gehenna sai do sofá. Ele desvia o olhar entre o quarto de Íris e a porta do condomínio, procurando se decidir sobre o que faria.
Sua jaqueta estava bem ao seu lado, e era como um sinal para ele prosseguir com a inusitada ideia que havia surgido em sua mente.
─ Eu sei onde ele está. E a garota precisa voltar a sonhar. ─ Ele suspira, vestindo o casaco e indo até a bancada da cozinha.
Pegou um pedaço de papel e escreveu, em caligrafia apressada e pouco legível, que iria sair.
─ "Se eu não voltar até às sete da noite, tranque as portas e não saia. Mas eu voltarei logo." ─ Prende o papel sob o balcão com o peso minúsculo, apesar de eficaz, da caneta antiga.
E, calçando as botas escuras e pegando os óculos escuros, ele atravessou a porta.
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