Unhinged por Mike Lazarev
Caminhava distraída para fora do café, sentia o aroma do líquido barroso recém-passado que sempre ficava no ar por ali ir dissipando aos poucos, não sentia apreço algum pela bebida, mas seu pai parecia carregar consigo uma caneca específica para o café.
Era o mesmo café que havia almoçado com seu pai ontem, porém ele não pôde estar com ela dessa vez, estava dando uma de suas quatro aulas eletivas de matemática avançada. Enquanto ela terminava a salada há dois minutos atrás, ele provavelmente estava falando há vinte, para a sofrência de seus alunos.
Branca tinha quarenta minutos até a próxima aula de cinema, tempo de sobra para caminhar pelos corredores da universidade.
A aula de cinema com o professor Nakahara havia se tornado um ponto alto desse começo de jornada. Não sabia explicar muito bem o que era, talvez o respeito pela arte que ele deixava nítido em sua voz, seu jeito reservado ou o amor que ela mesma sentia por esse assunto. Se prendendo à última das opções, sentiu seu coração pulsar, era isso que seu pai sentia ao falar que amava o que fazia? Se sim, agora era capaz de entender como Flora era um pé no saco e difícil de engolir.
Voltando ao professor, ele tinha um ar curioso, quase enigmático. Quando falava, era como se estivesse revelando segredos, fazia da arte camadas que só ele conseguia ver, e ele estava disposto a nos guiar para enxergar o que não era óbvio.
Na verdade, depois da aula dele ontem, Branca foi pra casa e não conseguiu pensar em mais nada. Precisava de mais. No ímpeto e guiada pela fome de conhecimento que havia muito tempo reprimido, acabou comprando cinco livros sobre arte na mesma noite. Cinco! E agora estava roendo as unhas, ansiosa para que eles chegassem logo. A ideia de mergulhar ainda mais fundo no que estava aprendendo a deixava elétrica. Sentir que estava sempre à beira de descobrir algo novo, algo profundo, poderia se tornar facilmente seu novo vício.
Enquanto caminhava pelo estacionamento, percebeu que se sentia diferente de ontem, não se sentia tão deslocada. A presença do professor Kou e a empolgação de seu pai, de certa forma, davam um novo sentido a tudo isso. Era como se cada passo que dava não fosse só em direção à sala de aula, mas em direção a algo maior, algo que ainda não conseguia ver por completo, mas que sabia que estava lá.
Sorriu sozinha enquanto via alguns alunos passando em grupos. Talvez, em algum momento, ela seria capaz de se sentir parte de algo assim também. Mas por agora, só de se sentir bem na própria companhia, com a promessa de uma tarde imersa em cinema, arte e livros era o suficiente.
Caminhando pelo corredor, Branca se viu cercada por um movimento cada vez mais intenso. Aos poucos, grupos de alunos se formavam nas escadas, nas calçadas e na entrada do prédio. A agitação aumentava a cada minuto, e ela sabia que, se estivesse certa, as boas-vindas dos grupos e clubes acadêmicos aconteceriam no auditório principal, depois do período das aulas matutinas.
Assim que passou pela porta, o ambiente a envolveu. As paredes brancas, ainda cheirando a tinta fresca, refletiam a luz suave que entrava pelas janelas. Poderia soar paranoica, mas sentia que os olhos pintados nos quadros se mexiam com ela, vigiavam cada movimento dos estudantes.
De repente, algo chamou sua atenção. Um pequeno corredor lateral, discreto e escondido, quase passava despercebido. Curiosa, Branca decidiu seguir por ali, sentindo um impulso inexplicável. O som do burburinho dos alunos se distanciava conforme ela caminhava, e logo encontrou algo inesperado. No fim do corredor, havia uma parede de vidro que revelava um espaço iluminado e tranquilo: o estúdio da universidade.
Ela parou, surpresa. O aquário não era nada pequeno, com uma janela que se estendia ao longo da sala, um lugar tão calmo e escondido, diferente de tudo que já tinha visto na universidade até então.
Branca se aproximou da porta, parando de olhar pelas frestas e entrando com coragem, aproveitando que estava vazio. Lembranças de sua infância começaram a emergir. Ela se lembrou de seu tio James, que a levava para o estúdio durante as férias. James adorava música, e aqueles dias que passava com ele eram alguns dos mais felizes de sua vida. Ele a ensinava sobre gravação, mostrava os equipamentos e, às vezes, deixava Branca brincar com os instrumentos. Para ela, era como entrar em outro mundo.
Ela sorriu, sentindo uma leve pontada de emoção.
- Quem diria que agora eu estaria aqui, começando a escrever minha própria história? - Pensou sobre o quanto a música sempre esteve presente em sua vida, seja nos dias com seu tio, seja nos momentos em que buscava conforto nas notas solitárias de uma melodia qualquer. Por mais que estivesse focada na fotografia agora, sentia que a música sempre seria parte de quem ela era.
Branca deu um passo para trás, enxugando uma lágrima que ameaçava escapar. O estúdio parecia um santuário secreto, um refúgio silencioso em meio ao caos de novidades que a cercava. Ela sabia que sempre poderia voltar ali, caso precisasse de um momento de paz.
Olhando o relógio, percebeu que ainda faltavam alguns minutos. Respirou fundo e quando ia sair do estúdio, deu um passo para trás, acendendo a luz de vez e indo até o piano.
Não conseguia me lembrar da última vez que tinha sentado diante de um piano. Não do jeito que estava agora, sozinha, com o peso do medo de estar feliz de novo nos ombros e uma vontade louca de se perder nessa felicidade, mesmo que seja momentânea.
O piano na sua frente era imenso, um Steinway de cauda preta que reluzia sob a luz suave da sala. As teclas de marfim pareciam inatingíveis, como se o instrumento carregasse uma majestade que Branca não mais merecia tocar. Deixou sua bolsa lateral escorregar pelo ombro e cair no chão ao lado do banco, os materiais teimando em tentar se espalhar aos seus pés, mas ela não se importava o suficiente. Tudo o que sentia naquele momento estava concentrado nas pontas dos seus dedos.
Apoiando as mãos suavemente no piano, deixando os dedos deslizarem pelas teclas, uma a uma, sem pressioná-las. Apenas o toque, frio e delicado, era o suficiente para mandar uma onda de sentimentos que percorreu seu corpo de uma forma inesperada. Era como se, por um breve instante, o tempo tivesse parado. Aquele som mudo, aquele toque sem vida, mexeu com algo profundo, algo que nem sabia que estava enterrado ali.
Uma explosão dentro do peito carregava lembranças boas e ruins das vezes que havia tocado. Não era só a memória, era mais do que isso. Era uma mistura de saudade, dor e desejo, um desejo que não sabia mais como expressar. A bateria sempre tinha sido seu primeiro amor, mas o piano... O piano sempre teve uma voz própria. Ele a puxava de volta para um tempo em que ainda acreditava que a música podia a salvar, que tocar era mais que uma fuga – era liberdade.
Fechou os olhos e respirou fundo, seus dedos agora pairando sobre as teclas com uma urgência quase desesperada para tocar, para liberar aquela corrente elétrica de sentimentos. Mas ao mesmo tempo, algo dentro dela hesitava. A última vez que tocou em um piano, realmente tocar, ela ainda era uma pessoa diferente.
Sentar ali, naquele banco de madeira, sentindo o peso da ausência do som, era como abrir uma porta para algo que Branca havia fechado com força. E, no entanto, tudo dentro dela gritava para tocar, para preencher o vazio, para se reconectar com a música e consigo mesma.
Não tinha um plano, não buscava perfeição ou técnica, mas apenas a necessidade de extravasar. Quando começou, as primeiras notas vieram à sua mente, e ela as deixou fluir pelo piano. A suavidade melancólica da melodia encheu a sala, como se o som estivesse se infiltrando de um lugar distante, ecoando memórias que ela tentava manter enterradas, mas que agora se recusavam a permanecer caladas.
Cada nota parecia carregar um peso, uma dor latente, algo que Branca reconhecia profundamente. A música não era apenas uma composição — era uma viagem ao âmago das emoções, algo que transcendia o tempo e o espaço. Conforme seus dedos deslizavam pelas teclas, a melodia a levou de volta a um momento específico de seu passado. Um momento onde a raiva e a dor falaram mais alto, e a única maneira de processá-las era através do som.
Era como se cada acorde, cada pausa no som, evocasse a raiva reprimida de sua adolescência, os gritos silenciosos que nunca encontrou coragem para soltar. Aquelas notas a confrontavam, forçando-a a revisitar o sentimento de abandono que ainda habitava em seu peito, a ferida emocional que, embora não sangrasse mais, continuava aberta, marcada por cicatrizes invisíveis. O piano parecia uma extensão dela, uma maneira de deixar as emoções fluírem de forma ininterrupta, vulnerável e crua.
Conforme a música avançava, Branca sentia-se como se estivesse à beira de um abismo, não de medo, mas de descoberta. As notas delicadas e introspectivas a levavam para aquele lugar onde a raiva encontrava a tristeza, e ambas dançavam entre si, uma luta entre a dor e a aceitação. Ela sabia que a peça não lhe oferecia respostas, mas a fazia encarar seu próprio reflexo de forma inescapável.
O som preenchia o ar, e, no silêncio entre as notas, havia tanto significado quanto nas melodias. Era como se aquele silêncio falasse mais alto que qualquer acorde, lembrando-a das ausências, das palavras que nunca foram ditas entre ela e seu pai, das despedidas não resolvidas. Naqueles momentos, Branca não era apenas uma pianista — era uma mulher confrontando os próprios fantasmas.
No final, quando a última nota se dissipou no ar, Branca permaneceu quieta, sentindo o peso do que acabara de tocar. Mais do que uma música, era um diálogo íntimo entre ela e seu passado, um lembrete de tudo o que já havia vivido e de como a arte era sua única forma de cura.
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