43 | NÃO SUCUMBA
43
NÃO SUCUMBA
ADAM
METADE DO INVERNO
A delegacia estava mais vazia que o normal. Parte dos polícias estavam no hospital. Outra parte estava na velha barbearia em reforma, alvo do tiroteio. E a última parcela do contingente policial estava do outro lado da rua comemorando a captura do suspeito.
Meu tio seria o encarregado de interrogá-lo, certamente com um promotor, e o advogado do suspeito, se ele tivesse pedido.
A velha delegacia era como qualquer outra. Uma entrada. Uma saída. Cinco celas no interior. Uma sala de provas. A sala do chefe. Cozinha e banheiro. Tudo em um tom cinza carregado.
Entrar pelas portas dos fundos não foi nada difícil. Jim não estava na sua sala. A cozinha estava vazia, mas o banheiro tinha sido um ótimo esconderijo improvisado assim que Lurdes - a atendente - passou assobiando, com seu café preto na mão e coque no topo da cabeça.
Lurdes era o leão de guarda da delegacia, e do meu tio.
Aquela não tinha. Nem estava sendo a invasão mais difícil da minha vida. Já tinha experimentado entrar em um prédio com capangas armados até os dentes.
Em poucos passos alcanço a pequena ante-sala com o espelho investigativo e uma porta dividindo com outra sala. Entro em passos silenciosos. Não tinha ninguém. Um alívio. Fecho a porta lentamente.
Sabia qual era minha missão. Só tinha um objetivo em mente: vingança. Pela segunda vez na minha vida estava sendo guiado pelo emocional.
Me deparo com a figura do outro lado do espelho, sentada do outro lado de uma mesa, com uma cadeira vazia na frente. Fecho os punhos. Meu sangue ferve. Minha mente nubla. Era o maldito velho gorducho que estava me seguindo a dias. O reconheceria em qualquer lugar.
Sem pensar. Invado a sala. Fecho a porta. Pego a cadeira vazia e apoio debaixo da maçaneta. Ninguém iria entrar até que eu terminasse o serviço.
— Baby Baylor — o homem não parece surpreso — Ainda entre os vivos?
Ofego.
— Por que seu maldito? — rosno jogando a mesa contra a parede e o agarrando pela gola da camisa.
O levanto do chão. Seus lábios se curvam com satisfação. O medo não passa pelos seus olhos.
— Se você tivesse sido bonzinho — argumenta sarcasticamente.
— Seu merda — levo meu punho livre até o seu nariz — Eu mandei você ficar longe.
Ele ri. O soco mais uma vez. Jogo seu corpo contra a parede. Seus dedos passam pelo nariz, limpando o sangue. Ele olha os dedos e alarga o sorriso.
— Ficou bravinho porque errei? Ou porque acertei sua amiga? — me provoca — Fiquei sabendo.
Me ajoelho sobre seu corpo. Defiro outro soco no seu olho. Acerto seu queixo. Miro no seu cenho. Ele ri. Acerto seu olho novamente. Ele ri mais ainda.
Paro. O encaro. Agarro sua gola.
— Você acha que sou o único?
— O que? — chacoalho seu corpo
O gorducho ri.
— Acha que o senhor Nigel vai desistir assim? Facilmente?
— Seja claro — rosno, balançando o pulso em direção ao seu rosto em ameaça.
— Ou o que?
— Fala — o balanço — Vou contar até 5, se não acabo com você aqui mesmo.
Ele sorri.
— Cinco. Quatro. Três ...
— Adam! Adam! Abra a porta! — uma voz familiar grita do outro lado da porta atrás de mim.
— A cavalaria chegou — o bandido anuncia com o rosto ensanguentado — Acho que nosso tempo junto chegou ao fim.
Balanço seu corpo. Choco sua cabeça contra o chão. Ele não ri. Choco de novo. Meu sangue ferve. Queria matá-lo. Precisava matá-lo. Era a única coisa que podia fazer para proteger ela. Para proteger a minha Sunshine.
— Adam! Larga ele!
A porta se rompe. A cadeira voa para longe.
Soco mais uma vez o rosto do gorducho. Alguém segura meu braço. Outro alguém segura meu outro braço. E antes que possa reagir sou arrastado para longe do homem inconsciente no chão. Ofego. Não espero nenhuma reação. Não quero que ele reaja. Quero que ele esteja morto.
— Que merda você fez, Adam? — meu tio grita comigo.
Dois homens socorrem o outro ferido.
— Ele está vivo — alguém avisa.
Ranjo os dentes. Tento me soltar. Me seguram com mais força.
Arrasado o chefe de polícia passa as mãos no cabelo. Olha para mim. Olha para o ferido.
— Chamem uma ambulância — ordena — Levem o Adam para cela — aponta para porta.
Contra minha vontade sou arrastado para fora.
***
Olho para os nós dos meus dedos, detonados. Aperto a pele avermelhada. Minhas mãos estão cobertas de sangue. Ele está impregnado sob as unhas.
Fecho o punho. Abaixo a cabeça e esfrego a nuca. Não me sinto melhor por ter quebrado a cara daquele homem. A dor não passou.
Levanto e começo a andar de um lado para o outro.
Pra piorar, não tenho nenhuma notícia dela. Caralho! Não consigo parar de pensar. Não suporto a ideia de não saber o que está acontecendo.
Agarro as grades, enfiando a cabeça entre elas.
— Caralho! Alguém! Alguém fala comigo, porra! — grito.
Chuto o ferro à minha frente, empurrando o corpo para trás, frustrado e irritado.
— Merda!
Bufo. Volto a sentar no banco, apertando com força a borda do tampo de concreto.
— Você estragou tudo, Adam! — ergo a cabeça abruptamente ao ouvir a voz. — Que diabos você achou que estava fazendo?
Tio Jim está do outro lado, de uniforme, com as mangas arregaçadas e a expressão de poucos amigos.
— Como ela está? — suplico, desesperado.
Ele suspira, comprimindo a boca em uma linha amarga.
— Ainda está na cirurgia.
O alívio não vem. A tensão continua. O desespero cresce dentro de mim. Esfrego a nuca, frustrado, apoiando os cotovelos nos joelhos e abaixando a cabeça.
— Foi minha culpa — murmuro.
— Sua culpa foi quebrar a cara do nosso suspeito! Como é que eu explico o estado dele agora? Digo que tropeçou na própria estupidez?
— Diga o que quiser.
— Droga, Adam! Você pode ser preso! E, dessa vez, eu não posso fazer nada! — Jim soca a grade de metal. — Você faz ideia da situação que me colocou, garoto?
Balanço a cabeça. Nada mais importa. Posso perder tudo. Se ela morrer... Droga! Não quero nem pensar nessa possibilidade. Não posso. Ela não pode morrer. Eu nunca mais vou poder estar com ela. Mas aceito manter distância, se for o preço para vê-la bem e feliz. Aceito qualquer coisa, até o inferno.
— Adam, acorda! — ele grita, impaciente. — Tentaram te matar. Se você for preso, vai ser um prato cheio pra eles terminarem o serviço!
Endireito o corpo. Isso deveria me preocupar. Mas não. Não está no topo da minha lista. Esfrego as mãos nas coxas, encosto as costas no cimento atrás de mim e dou de ombros.
Jim fecha ainda mais a cara, balançando a cabeça, incrédulo.
— Eu não posso fazer mais nada — ele diz, jogando as mãos para o ar. — Um promotor de Boston está vindo pra falar com você e resolver essa bagunça. Espero que ele tenha mais paciência do que eu.
A velha porta de metal que divide as celas dos outros cômodos range quando um policial entra. O rapaz, alguns anos mais novo, com a farda maior que o corpo, me encara. Depois olha para o meu tio, hesitando.
— O promotor chegou. E... parece com pressa.
O olhar gélido de Jim em minha direção não ajuda. Suspiro. Toda aquela merda não me importava, nada mais me importava.
— Já vou — avisa Jim com as mãos na cintura.
O jovem soldado pigarreia com a voz trêmula.
— Ele pediu para falar com o preso.
O peito do meu tio infla com o sabor amargo de deixar o promotor ver o estrago que fiz nada cara do idiota.
— Você não avisou que ele está sendo tratado? — o tom ríspido não é novo para mim.
Já tinha sido subordinado. Era um Baylor. E os Baylor não eram amáveis.
— Não ! — o rapaz o corrige — Com ele — aponta para mim.
Ótimo.
Jim suspira jogando a cabeça para frente em sinal de impotência.
— Não posso fazer mais nada garoto — seu tom é de pesar — Desculpa. Manda o promotor entrar.
— Tio! — o detenho.
— O que? — a pergunta é grosseira.
— Se tiver qualquer novidade — suplico.
Ele assente.
As botas de Jim são audíveis ao sair. A porta demora a voltar a ranger, até o baque seco que anuncia que está sendo fechada.
Um homem da minha altura. Não muito mais velho que eu. Cabelos negros. Barba por fazer. De terno e gravata afrouxada debaixo de um sobretudo. Segurando uma pasta. Entra.
— Abra — ordena ao soldado em um tom mais ríspido que do meu tio.
Trêmulo o policial obedece.
Ele entra na cela. Ele olha para o policial do outro lado.
— Pode ir. Quando terminar aviso.
— Jack Daniels — o nome é quase uma piada e o homem percebe — Sim! Meu pai era fã do uísque.
— Adam Baylor — devolvo o comprimento.
— Eu sei.
Estico as pernas. Cruzo os braços na altura do peito. O homem joga sua pasta no banco lateral , assim como o seu casado e por fim o corpo. Seus cotovelos se apoiam na coxa, reclinando o corpo.
— Você tem noção quantas leis quebrou essa noite, senhor Baylor ? — seu tom é amargo.
Penso a cabeça para os lados.
— Tenho uma ideia.
Ele balança a cabeça.
— Podia mandar prendê-lo agora mesmo por tentativa de assassinato.
É a minha vez de balançar a cabeça.
— Pode fazer o que quiser — jogo as mãos no ar.
Os dedos do promotor se entrelaçam.
— Você parece não se importar com a sua vida — Jack observa.
Dou de ombros. Naquele momento somente uma vida importava para mim e não era a minha.
— Ok — ofega comprimindo o lábios e empertigando-se — Será que o senhor vai se importar mais se eu disser que a sua cabeça foi colocada a prêmio.
Ok!
Tento não esboçar nenhuma emoção. Apenas balanço a cabeça processando até que ponto Nigel tinha chegado para me impedir.
Jack fica em pé com as mãos no bolso.
— Não acredito ter tanto valor.
Jack solta uma risada seca sem humor.
— Mas tem. Nigel contratou três assassinos de aluguel antes que conseguíssemos bloquear suas contas e rastrear outras em paraísos fiscais.
— Acho que não sai muito caro.
— Não tem graça . Eu poderia prendê-lo pelo que fez com o nosso suspeito. Mas talvez tivesse feito a mesma coisa no seu lugar — a afirmação prende minha atenção nele — Quero prender Nigel. E para isso preciso de você — aponta para mim.
— Imaginei — observo.
— Por isso você vai entrar no programa de proteção até o julgamento.
— Não — nego rapidamente.
— Sim! É isso, a prisão pelo que você fez essa noite ou a morte.
Cerro os punhos e ranjo os dentes.
— Acho que não tenho escolha.
***
Eu caminho pelo corredor do hospital, os passos pesados e o som deles soando altos demais para mim. A minha mão ainda está suja de sangue, e eu seguro a barra da jaqueta como se o toque do tecido fosse o único vínculo que ainda tenho com a realidade. Não consigo parar de pensar na Tate, naqueles olhos redondos dela, no jeito que ela me olhou naquela manhã no meu apartamento: cheia de vida. No jeito que me olhou antes de desmaiar... antes de ser baleada. Os murmúrios dela ainda ecoam na minha cabeça. Eu tento não pensar nisso. Mas é impossível.
O cheiro de desinfetante me invade as narinas assim que me aproximo do quarto. A enfermeira sai de lá e me dá uma olhada rápida, talvez percebendo o peso nos meus ombros. Ela parece querer dizer alguma coisa, mas apenas me observa por um instante.
— Ela está estável. — Ela fala baixo, como se isso fosse o que mais eu precisasse saber.
Eu aceno com a cabeça sem responder. Eu não posso responder. Eu só entro. Não ignoro a presença da mulher sentada na cadeira ao lado da cama: Anne Evans. Ela não me nota.
O quarto é simples. O som dos monitores é a única coisa que quebra o silêncio. Tate está lá, deitada, com os olhos fechados e o rosto pálido, imobilizada, como se o tempo tivesse parado para ela, como se ela não estivesse mais aqui.
Eu olho pra ela e sinto um aperto no peito, uma dor que não sei como lidar. As marcas do tiroteio, as cicatrizes, eu carrego elas na minha cabeça, mas elas não estão visíveis, não para os outros. Só pra mim.
Pigarreio. Anne dá um pulo. Não queria enfrentá-la, mas a necessidade de me despedir era maior.
Ela me olha. Esboço um sorriso sem humor. Para minha surpresa sou acolhido em um abraço caloroso.
Fico imóvel.
— Obrigado Adam!
Engulo em seco. Queria dizer que tinha sido minha culpa. Mas nenhuma palavra sai da minha boca. Meus olhos não saem da mulher na cama.
— Desculpa — a única coisa que consigo soltar.
Anne se afasta. Suas mãos acolhem meu rosto. Pela primeira vez noto seus olhos vermelhos e inchados. Agradeço por só ter ela ali. Preferia que fosse Elliot.
— Não foi sua culpa! — ela balança a cabeça tentando me convencer — Não foi você que puxou o gatilho. Entendeu?
Uma lágrima escorre do meu olho.
— Entendeu? — ela insiste
Balanço a cabeça. Apesar de não concordar.
Ela bate carinhosamente a mão no meu rosto.
— Vou deixar vocês a sós. Ela vai gostar — seu sorriso é cheio de insinuação, devolvo com um olhar confuso — Não nasci ontem garoto. Sei reconhecer quando minha filha está apaixonada por alguém. Vou tomar um café — ela bate no meu ombro.
Aquelas palavras pesam. Anne me deixa sozinho com Tate.
Eu me aproximo da cama e passo a mão na nuca, sentando na cadeira ao lado dela. O som da cadeira rangendo parece ecoar no vazio do quarto, e tudo ao redor fica mais calmo, mas a sensação dentro de mim só aumenta. Eu a olho e, por um segundo, quase não consigo respirar.
— Trouxe algo para você. Para quando acordar. — tiro um pacote de jujubas em forma de minhoca do bolso e deixo escapar um sorriso amargo. — Lembrei que você adora essas. — sua voz ecoa na minha mente, uma resposta rápida que não sai dos seus lábios. — Sim, me lembrei! E não, não estou sendo romântico.
Coloco o pacote na mesa de cabeceira ao lado dela e pego sua mão, sentindo o frio nela. A pele dela é tão fina, tão frágil, e isso me destrói de uma forma que eu não consigo explicar.
— Me desculpa... — minha voz sai rouca, carregada de culpa. Aperto sua mão, tentando não demonstrar a dor que estou sentindo. — Eu... a bala era para mim. Não era para você. Fico tão bravo... tão furioso com você por ter ido atrás de mim. Por que você tinha que ser tão teimosa? Por que não podia apenas se afastar? — dou uma risada seca. — Eu sei, eu sei. Não é do seu tipo. Mas pela primeira vez, você devia ter aceitado as coisas.
Outra lágrima escorre do meu olho. Corro para secá-la, fungando enquanto tento controlar a emoção.
Fecho os olhos, tentando manter a calma, mas é como se tudo em mim estivesse prestes a desmoronar. Eu não consigo parar de pensar nela, em tudo o que ela passou e no que eu não pude evitar. Cada segundo aqui, olhando para ela assim, me destrói mais e mais.
—Eu não sou bom com as palavras — pigarreio — Mas vou tentar. Eu nunca te disse, mas eu sabia que você seria a minha perdição. Desde aquela manhã, quando acordei e vi seus olhos redondos, eu soube que estava fodido. — as palavras saem com mais dificuldade do que eu imaginava. — Você entrou na minha vida sem permissão, tomou conta da minha cabeça como uma inquilina indesejada. E, ainda assim, você não desistiu de mim... mesmo quando merecia coisa melhor.
Eu me inclino um pouco mais perto dela, respiro fundo, tentando guardar seu aroma perdido. Beijo sua pele, sentindo a fragilidade de tudo isso.
— Talvez, quando você acordar e abrir esses olhos, você continue me odiando. E vai ser bom. Vai ser o melhor para você. Mas, se você continuar sendo teimosa e não desistir de mim... — me afasto um pouco, afastando algumas mechas de cabelo do seu rosto, e com a voz trêmula, digo o que eu nunca imaginei dizer — Eu vou voltar. Pela primeira vez na vida, eu tenho um motivo para voltar para casa.
Pela primeira vez, eu quero voltar para casa.
Pela primeira vez, eu tenho um motivo para continuar.
Eu engulo em seco, sentindo o peso das palavras me esmagando. Não posso me perder aqui. Não posso.
Eu olho para ela mais uma vez, e tudo o que eu sinto é uma dor imensa, um desespero que me consome. Lembro da nossa última conversa.
Ela disse tanto, e eu... eu não disse nada.
Queria tanto ter dito algo, queria ter interrompido ela, ou para proibir de falar, ou para me ouvir.
O olhar dela... Seu rosto pálido me faz tremer. Aperto sua mão com mais força, tentando engolir o nó na garganta. Olho ao redor, sentindo o vazio, e, de repente, me estico até a prancheta na mesa ao pé da cama. Agarro a caneta com as mãos trêmulas.
Com delicadeza, pego sua mão e viro a palma para cima, tentando resumir tudo o que sinto em uma palavra, para quando ela acordar. Desenho as três letras com cuidado, como se o mundo dependesse disso. Depois, deposito um beijo sobre o desenho na pele, fechando os olhos por um segundo.
— Eu vou voltar. — fico de pé e dou um beijo na testa dela. — Mesmo que você não me espere, eu vou voltar. — sussurro contra a pele dela, sentindo o peso das minhas palavras. — Nem que seja para que você possa me odiar.
Eu fico ali por um momento, sentindo o coração bater tão rápido que parece que vai sair pela boca. Olho mais uma vez para ela, respiro fundo e saio do quarto. Não consigo olhar para trás.
Não posso.
***
O bar está mais quieto do que o que eu imaginava. A música parece um pano de fundo, uma melodia distante que mal consegue encobrir a tensão no ar. Eu estou em um canto, de costas para a parede, o copo de cerveja na mão, mas a bebida já não me interessa. Não tem mais sabor. Não tem mais gosto. Nem para disfarçar o que eu sinto.
Tinha sido difícil convencer meu carcereiro deixar sair, mas consegui. Tanto ele como eu estávamos cansados de ficar pulando de motel em motel. Estávamos cansados da cara um do outro e dos jogos de cartas chatos.
Pouco sabia de Bob. Apenas podia chamá-lo de Bob, era da polícia federal, casado e com filhos, além do gosto horrível para comida.
Bob, sentado na minha frente com sua camisa havaiana ridícula, parece mais preocupado com a bebida do que com a situação. Como sempre, ele tenta agir como se nada estivesse acontecendo, mas ele sabe. E eu sei que ele sabe.
A luz do bar reflete no isqueiro que Tate me deu. Eu não consigo parar de olhar para ele. As linhas do metal brilham sob a luz, mas não é isso que chama minha atenção. É o que ele representa. O que eu fui. O que eu sou agora. O que eu deixei para trás. Giro ele entre os dedos, apenas com os pensamentos nela. Fazia duas semanas que não tinha uma notícia. Não podia. Não podia, nem devia entrar em contato com ninguém, sabia como era.
Quando estava em missão como seal era fácil, porque não tinha deixado ninguém para trás. Mas agora. Agora tinha alguém por quem voltar.
Bob toma um gole da cerveja e me observa por um tempo. Eu sei que ele está esperando que eu diga algo, qualquer coisa, mas não tem palavras. Não tem mais palavras. Ele começa a se mexer na cadeira, irritado, mas com um tom divertido.
— Você vai continuar olhando para esse isqueiro como se ele fosse a chave do seu futuro ou você vai dizer alguma coisa, Adam?
Eu rio, uma risada seca que mal faz barulho. Dou mais um gole na cerveja, sentindo o amargor engolir a garganta.
— Nada, — eu minto. — Só... pensando.
Bob revira os olhos, mas mantém o olhar fixo em mim. Ele não compra a desculpa, nunca comprou. Mas ele também sabe quando é hora de calar a boca.
Ele volta a beber, mas dessa vez ele olha ao redor, como se estivesse procurando alguma coisa. Ele tem aquele olhar, o olhar de quem está à caça. E, quando ele se mexe um pouco mais rápido, como se estivesse se preparando para fazer algo, eu sinto o peso da situação.
Não é como se ele me dissesse, mas eu já sei.
— Tem um cara atrás de nós, — Bob diz, quase casualmente, mas a maneira como ele diz, com uma voz mais grave, me faz saber que não é nada casual.
Eu vi o sujeito há uns 20 minutos. Eu fui treinado para isso, para notar detalhes. O jeito que ele olha para o nada, mas nunca tira os olhos de nós. O jeito que ele se encaixa no ambiente, mas é claro demais. Claro demais para ser só mais um cara de bar. Não é um cliente comum.
— Já percebi, — eu digo, sem desviar o olhar, como se nada tivesse mudado, como se isso fosse algo normal. Mas não é. Nada disso é normal.
Bob balança a cabeça, sem querer admitir que a situação está mais feia do que ele quer que eu perceba. Ele olha novamente para o homem, então volta a olhar para mim, um brilho de preocupação nos olhos.
— Acho que devemos nos preocupar — observa com o que parece ser um misto de curiosidade e cautela.
Eu paro por um momento, e só então percebo como estou apertando o isqueiro nas mãos. Minha respiração fica um pouco mais pesada, mas eu não me dou ao luxo de demonstrar qualquer coisa. Não na frente de Bob. Eu dou de ombros e tento manter o tom leve. Jogo o isqueiro no bolso da jaqueta.
— Pode ser. Mas o que eu sei é que ele não está aqui para beber cerveja.
Bob ainda está observando o cara, pensando no próximo movimento. Eu sei o que ele está tentando fazer. Ele quer me proteger, mas eu já estou além disso. Eu não posso ser protegido.
Não mais.
Ele me olha de novo, um brilho nos olhos como se estivesse calculando alguma coisa. Eu sei o que ele vai dizer, mas ele prefere lançar isso de forma indireta. Uma sugestão que não é bem uma sugestão, mas é como ele tenta disfarçar a ordem.
— Vai para o banheiro. — A voz de Bob é calma, mas é uma ordem disfarçada de conselho. — Eu chego logo.
Eu respiro fundo, a vontade de rir me deixando tenso. Eu sei o que ele quer. Ele quer que eu vá, que eu seja a isca, que eu atraia o cara para onde ele vai poder agir. Isso é o que Bob faz, e eu sei que ele vai estar lá. Mas ele sabe que eu sei. E talvez eu finalize a situação antes dele.
Eu fico em pé, ainda mantendo o olhar fixo no isqueiro, e murmuro:
— Bom! — fico em pé batendo na mesa — Acho que preciso tirar água do joelho.
Bob me olha com aquela expressão de quem sabe que eu estou só provocando, mas ele não se importa. Ele está mais preocupado com o que está por vir. Ele faz um aceno com a cabeça, e sem mais palavras, eu começo a me afastar.
Eu não olho para trás. Não posso. Eu já sei o que está acontecendo. O pior é que a cada passo que dou em direção ao banheiro, o peso daquilo tudo aumenta. O peso do que está por vir
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