19 | NÃO ME DEIXE
19
NÃO ME DEIXE
ADAM
3 MESES ANTES
FIM
FINAL DO OUTONO EM BAYFIELD
— Jim — digo secamente ao atender o celular
Com os olhos fixos no trânsito tranquilo diante de mim.
— Adam — meu nome é dito em meio a um suspiro — É o seu pai.
Tiro os olhos por um momento do maldito trânsito. Piso no freio arranhando os pneus no asfalto. Ignoro os gritos e buzinas que soam imediatamente.
— Que merda ele fez agora? — rosno tenso.
Todo meu corpo fica tenso. Todas as possibilidades já vividas passam por minha mente enquanto o homem do outro lado da linha parece estar com dificuldade de encontrar as malditas palavras.
— Ele — meu tio gagueja.
Aquilo piora minha tensão e humor.
— Caralho, Jim, desembucha — ordeno irritado.
— Ele está no hospital — solta rapidamente.
— O que? Que merda aconteceu?
Minha cabeça gira.
— Vem aqui — seu tom calmo não ajuda — Melhor conversarmos pessoalmente.
— Já chego
Fecho o aparelho, jogando no banco, piso no acelerado cantando os pneus em direção ao único hospital daquela cidade. Meus dedos tamborilam inquietos no volante. Não conto os minutos ou as infrações para chegar ao meu destino final.
Antes do que consiga pensar estou percorrendo os corredores gélidos, vazios e silenciosos do Hospital Geral de Bayfield. Agradeço a informação exata da recepcionista, que facilita achar meu tio.
Ao virar no corredor indicado, não demoro a encontrar o homem gorducho, sem farda, sentado em uma fileira de cadeiras, sozinho, seus cotovelos estavam apoiados em seus joelhos, com os olhos no chão.
Odeio aquela cena. Odeio o maldito silêncio que parece ser uma maldita ave mau agouro.
— Jim — sua cabeça se vira com o chamado.
O xerife de folga fica em pé em um pulo.
— Como ele está? — disparo ansioso.
Em um suspiro nada reconfortante, o homem de cabelos e barba castanhas aponta com a cabeça em direção a porta a sua frente. Engulo um monstruoso nó na minha garganta, beirando entre desespero e negação, jamais esperava que chegaria a aquele ponto da linha.
Não tenho pressa em me aproximar da cena que meus olhos já são capazes de analisar: meu pai deitado em uma cama, com soro na veia, oxigênio no nariz, alguns aparelhos colados no seu peito e rosto todo roxo.
O velhote tinha apanhado. Fecho meu punho. Paro debaixo do batente, ouvindo o som agonizante da maquina que reproduzia seus batimentos cardíacos, conhecia bem aquele som. Já tinha passado semanas em um hospital.
— Ele está estável — a voz familiar atrás de mim tenta remediar a situação — Quebrou algumas costelas, fraturou o pulso e machucados no rosto, mas o médico disse que está bem.
— Que caralhos aconteceu? — rosno entre os dentes, com os olhos fixos no meu pai.
De todos os destinos imaginados para ele, jamais me fixei muito naquele agora no meu presente. Como um idiota tinha esperança que naquela altura da vida Tomás Baylor tivesse tomado jeito.
— O Nigel — finco as unhas contra a pele da minha palma.
Um suspiro irônico sai das minhas narinas. Por que aquilo não me surpreendia? Não queria pisar naquele quarto, ao fazer isso tudo seria real. Não queria ouvir que ele não me queria ali. Não queria piorar a situação. Apenas queria que tudo fosse um maldito pesadelo.
Dou um passo para trás. Bufo irritado com ele, furioso com Nigel e com ódio de mim mesmo.
Me viro, encontrando meu tio parado a poucos passos de mim.
— Que merda ele fez agora?
Desconfortável a figura gorducha enfia as mãos dentro do bolso da frente da calça jeans. Desde novo James Baylor – caçula – protegia o irmão, ou seja, o problema do meu pai era anterior a mim. Porém entendia o porque do irmão proteger o outro, apesar de ser irritante as vezes. Só que eu protegia um pai, o meu pai como filho. A única diferença entre meu tio e eu, era que estava ali, mas jogava a real, ele floreava a verdade.
— Tomás voltou a apostar com ele.
Bufo. Temo minhas próximas palavras que vão acabar me afundando em um lamaçal de bosta. Sinto os problemas chegando.
— Quanto? — ranjo os dentes.
Os olhos castanhos do meu tio fogem, seus lábios se comprimem ao tragar uma amarga saliva que desce com dificuldade por seu pescoço. Lá estava ele a tentar minimizar a verdade que arrebentaria com a minha vida mais uma vez.
— Nada — aquilo é como um soco inesperado na boca do estômago — Ele vendeu a casa para pagar a dívida.
— A casa? — rio incrédulo.
Rio sem acreditar. Esfrego minha mão no meu cabelo e desço até a minha barba, tentando digerir aquela indigesta informação. Aquilo não era um soco, era uma rasteira. E quando pensava que meu pai não podia ir mais longe, percebia que estava enganado. E um ciclo infernal se repetia.
— A casa? — sumo com o meu não humor — Ele precisa da minha assinatura para vende-la — recordo alterado.
Jim olha-me com censura pelo meu tom que ecoa pelas paredes silenciosas daquele lugar. Seus dedos grossos agarram meu braço e me puxam para longe da porta.
Seus olhos se reviram inquietos e indecisos.
— Ele falsificou a sua assinatura.
Falsificou? Ótimo. O problema não estava no horizonte, eu estava já sentado nele.
— Por que não me surpreende? — solto amargamente — E ainda assim o cretino fez isso com ele? — estico o braço em direção a porta atrás de nós, sem entender nada.
— Juros pela demora — justifica meu tio — Acho que a dívida começou naquela noite que ele revirou suas coisas atrás do dinheiro.
Aquela conclusão não me surpreendia. Tudo aquilo apenas doía e apesar dos anos, aquele velhote ainda conseguia me magoar e ferir com suas ações. Engulo a arma saliva junto com o ar que tremula as minhas narinas. Me viro e olho para a figura tão indefesa, quase soando improvável que tanta desgraça poderia ser provocada por alguém sem forças.
Queria odiá-lo. Deveria sair dali e ir embora, sem olhar para trás. Porém sinto ódio pelo culpado de fazê-lo estar ali. Mesmo agindo errado, ele era o meu pai e não merecia aquilo. Não merecia sofrer.
♦
A poltrona não era desconfortável. O pequeno sofá parecia mais cheios de espinhos, inquietando Jim, que estava à procura do seu terceiro café, mas sabia que era apenas uma desculpa para dar uma pitada em um cigarro do lado de fora.
Ajeito meu tornozelo sobre o meu joelho. Com os dedos cruzados, olho o homem que parecia tão vulnerável naquele estado. Parte de mim começava a remoer a infernal culpa, procurando alternativas para um passado que não poderia mudar. Queria. Não. Precisava ter feito algo de diferente.
E se eu não o tivesse abandonado?
Aquela pergunta ia e vinha como um maldito pêndulo perdido entre um pensamento e outro. E mesmo sabendo que Tomás teria achado diversas formas de burlar a minha vigília e a chance de acabar ali – naquele estado – era quase inevitável, não conseguia afastar a maldita sensação de culpa.
Apenas as máquinas barulhentas me fazem companhia. Recosto minha cabeça cansado.
— Adam — meu nome é gemido com fraqueza.
Fico em pé em um pulo, encontrando os olhos semicerrados do meu pai. Seu rosto estava pálido, apesar das manchas roxas que cobriam apenas uma lateral.
— Adam — o chamado se repete.
Não tenho certeza se ele está sonhando, delirando ou lucido. Seus olhos não ajudam a concluir nada. Sua mão – com o fino cano do soro presa – eleva-se em um movimento limitado.
— Estou aqui, pai.
Seus lábios curvam-se, sua cabeça gira em minha direção e finalmente seus olhos cansados abrem-se. O alívio não vem, ainda sinto o silêncio segurando a minha mão. Ele parecia frágil. Queria dizer que já estava de saída, mas seus lábios são mais ágeis.
— E aí garoto — suas palavras são fracas.
Toco seu braço, o impedindo de se movimentar muito. Seu rosto está pálido, como uma folha de papel em branco. Um misto de raiva com pena passeia dentro de mim. Quero gritar e censura-lo. Quero abraça-lo e protege-lo.
— Não se mexa — peço preocupado.
Meu pai suspira cansado. Aquele som afasta mais ainda o alívio. Era como uma voz silenciosa dentro da minha cabeça que gritava palavras que era melhor ignorar. A mesma voz que sempre tinha ignorado nos anos distante, nos anos cuidando dele. Eu não queria ouvi-las. Eu não podia escuta-las. Não queria saber o que ela tinha a me dizer.
— Eu fiz besteira — sussurra em um meio sorriso.
Engulo o caroço preso na minha garganta. Seus olhos voltam a se fechar em um cansaço visível.
— Desculpa, filho — sua mão sem soro faz um grande trajeto apenas para repousar sobre a minha — Eu queria ser diferente — suas palavras são fracas.
Seus lábios pálidos se fecham. Sua cabeça se vira. E o silêncio volta. Seu peito sobe e desce sem ritmo, apenas trabalhando. Olho seus dedos sobre a minha mão. Sua mão repousa pesadamente sobre a minha.
Tudo começa a apitar ao nosso redor e o peso da sua mão aumenta ainda mais sobre a minha. Tudo apita incansavelmente.
— Pai — chamo perdido.
O velhote não responde. O desespero me atinge. Estico o braço e chamo as enfermeiras. Tudo apita. Eu conheço aquele maldito som. É como se tivesse preso em mais um dos meus pesadelos sem fim.
— Pai — insisto tocando em sua pesada mão.
Seus olhos não se abrem. Pessoas nos cercam e meu corpo é empurrado vários passos para trás. Meus olhos permanecem fixos na cama hospitalar. Enfermeiras e médicos trocam palavras e tocam nele.
— Precisamos leva-lo para cirurgia. Agora — alguém grita.
Apenas fico parado assistindo tudo. Meu corpo é afastado para mais longe. Uma enfermeira me empurra até o corredor. A cama é levada pelo mesmo corredor. E a maldita voz que estava ignorando ao longo do dia começa a fazer sentido. Eu conhecia aquela voz, era a mesma voz que tinha ignorado a mais de um ano atrás, a mesma voz que me alertava que tinha algo errado.
Meu pai some entre as portas duplas daquele lugar.
E o maldito silêncio volta a me fazer companhia.
Engulo o medo e o pavor.
Esfrego as mãos no rosto cansado. A madrugada chega e o homem do outro lado da porta dupla no fundo do corredor não saí.
Não quero pensar o pior, mas o pior está ali, assoprando no meu ouvido. Vivi durante meses com aquele sussurro, dentro de um buraco sem luz e sem esperança. E lá está o mesmo sussurro: suave, amigável e que afirma que tudo vai acabar mal.
Aquele séria o final?
Não consigo respirar. Esfrego as mãos no joelho ficando de pé. Aquela fileira de banco de plástico azul era desconfortável pra cacete. Ando até a parede oposta do corredor de dois metros de largura.
— Calma garoto — o gorducho sentado ao meu lado murmura — Vai ficar tudo bem.
Encontro seus olhos castanhos que contradizem suas palavras. James Baylor não falava. Eu não falava. Nenhum de nós dois estávamos dispostos a dar voz a nossos temores. Era como se ao falarmos aquilo fosse verdade, um imã que atrairia o que mais temíamos.
Meu pai era um merda – de diversas formas – um péssimo pai na maioria dos anos da minha vida. Porém era o meu pai. Caralho. Ele era um maldito viciado, rabugento, resmungão e que sabia me ferir. E no final continuava a ser o meu pai, o homem que não me abandonou. Quando ela foi embora, ele ficou. Ele aprendeu a cozinhar uma gororoba terrível, por um tempo ia as minhas reuniões escolares, não faltava a um jogo e quando voltei destruído ainda estava lá para me oferecer uma cerveja.
Estar ali, parado diante daquela porta, apagava todas as lembranças doloridas.
Bufo impaciente.
— Quanto tempo mais essa merda vai levar? — esbravejo impaciente — Já faz horas que ninguém passa por aquela maldita porta.
— Alguém já vem — Jim recosta-se na cadeira.
— Falaram que ele estava bem — resmungo andando de um lado para o outro.
— Coisas acontecem, você sabe — seu tom controlado não me ajuda.
— Porra — bufo, parando e olhando para o teto.
A merda era que eu sabia. Você poderia estar ali e em um piscar de olhos tudo mudava porque algo deu errado dentro de você. Na marinha um garoto morreu no meio do treinamento devido a um aneurisma nunca detectado.
Um barulho seco ecoa pelos corredores tenebrosos daquele hospital. Jim e eu olhamos em direção a porta ao fundo. Um homem alto, magro, na casa dos cinquenta anos caminha em nossa direção. Seus olhos encontram nós dois, sua mão arranca a pequena touca da sua cabeça.
— Doutor Harper — meu tio o cumprimenta em um estender de mãos.
— Jim — com um sorriso forçado o homem devolve.
Conhecia aquele sorriso. Me aproximo, o médico nos olha por um breve momento, torcendo o tecido entre os seus dedos. Um arrepio passa por minha nuca, já sabia o que estava prestes a ouvir. Meu estômago se embrulha. Fecho meu punho pronto para esmurrar o que não podia.
— Como ele está? — finalmente o xerife da cidade tem coragem de perguntar.
— Ele teve uma hemorragia interna que não foi detectada nos exames — começa o discurso circular — Quando o abrimos tinha sangue por tudo — o suspiro de pesar antecede o que já sabíamos — Sinto muito, Jim. Não conseguimos fazer nada para salva-lo — sua mão toca o ombro do meu tio.
Bufo. Algo parece ter acertado meu peito, um soco duro e profundo arranca o ar dos meus pulmões. Pisco. O médico se afasta. Pisco os olhos preocupados do meu tio estão em mim. Pisco. Não consigo respirar. Pisco. Meu tio se aproxima.. Eu recuo. Balanço em negativa.
Não queria pena. Fecho meu outro punho. Curvo meu corpo para frente. Não consigo respirar. Minha cabeça gira. Quero vomitar. Me sinto enjoado.
— Adam — escuto a voz masculina me chamando ao fundo.
Ele morreu.
O velhote conseguiu, chegou ao final da linha. Meu pai morreu. Meus olhos ardem. Sugo o ar com força pelas narinas, não quero – e não posso chorar -, não agora. Aquele merda tirou o meu pai de mim. Aquele maldito. Aquele verme.
Ranjo os dentes.
— Ahhh — esbravejo empertigando o corpo.
Esbravejo levando meu punho contra a parede branca ao meu lado. Soco a parede. Esbravejo. Soco a parede. Esbravejo toda a minha fúria e dor. Esbravejo. Vejo a parede branca com tons avermelhados. Soco a parede, os ossos da minha mão latejam. Soco a parede. Agradeço por aquela dor física que come a emocional.
Paro.
Ofego.
Os ossos da minha mão latejam.
Espalmo minha mão com a pele dilacerada na parede. Encosto minha testa ao lado.
Ofego. Obrigo meus pulmões a tragarem o ar.
— Adam — meu tio toca meu ombro.
Balanço a cabeça. Arranco meu ombro do seu toque. Não quero consolo, preciso de outra coisa, quero vingança.
— Eu vou mata-lo — rosno.
Ignoro o homem atrás de mim e dou passadas largas pelo corredor, decidido.
— Adam — ignoro o chamado — Droga garoto.
Me perco e me acho pelos corredores, com o destino final certo em mente.
♦
Não precisava rodar por Bayfield sem rumo para achar meu alvo. Após ser expulso do Paris Hall, só restava um lugar em que ele era aceito naquela cidade, um bar escondido, em uma viela, conhecido pelas apostas.
Paro diante da porta metálica enferrujada. Sabia que não tinha mais ninguém além de Nigel, seus capangas e alguém que trabalhasse lá. Ajeito no cós da minha calça a Sig Sauer colada no meu corpo. Aperto a pele ferida da minha mão por debaixo da faixa improvisada com um pano velho. Chupo o ar pelas narinas. Limpo a mente. Aquilo tinha muita emoção envolvida, mas precisava de frieza, precisava da minha mente treinada para não cair em uma armadilha.
Empurro a porta em um baque seco. Analiso o ambiente rústico vazio, com o único requinte sendo as inúmeras telas espalhadas pelas paredes. De canto dos olhos não ignoro os dois capangas, - largos de 1,80, um ruivo e outro careca, sentados no bar, com um rapaz magricelo os servindo. Eles me notam e se ajeitam sobre o pequeno banco. Os ignoro, com os olhos fixos no homem no fundo, sentado em torno de uma mesa redonda e com uma pilha de dinheiro diante dos seus olhos.
Seus dedos contam tantas outras notas, vez ou outra umedecendo seus dedos na ponta da própria língua.
Nigel me vê. Ele para a tarefa. Sua mão se estende em direção dos seus seguranças, em uma ordem silenciosa para permanecerem onde estavam.
— Baby Baylor —o homem de cabelos negros, pele clara e sorriso sarcástico me cumprimenta — A que devo a honra? — seu cenho se arqueia.
Suas mãos largam as pilhas de nota na mesa. Seu corpo se reclina para trás, cruzando as pernas, junto com seus dedos e seus lábios que sustentam um sorriso que aumenta minha vontade de vomitar.
— Precisamos conversar — murmúrio seriamente.
Agarro uma cadeira abandonada ao lado da sua mesa, a puxo e sento, apoiando meus braços em seu encosto, fico frente a frente com aquele verme maldito que nem se abala, apenas estende a mão, balança o copo de uísque tilintando o gelo dentro. Enfio o polegar contra a ferida na minha mão, focando na dor física.
— O do seu pai não foi nada pessoa — murmura ao saborear sua bebida na maior inocência — Apenas negócios — o agiota lambe os próprios lábios — Ele vai ficar bem.
O verme sabia o que eu tinha feito. Balanço a cabeça afirmativamente, processando suas palavras. Aperto com força a ferida. Engulo a vontade de colocar fim em tudo rápido.
— Só negócios? — repito saboreando aquela justificativa nojenta.
Ciente que tinha duas missões naquele lugar e as duas levariam ao mesmo lugar: a destruição daquele canalha. Por isso não podia simplesmente sacar a minha arma e enfiar uma bala no meio da testa daquele diabo.
— Sabe como é — o homem usando camisa branca, dá de ombros, ao esticar o braço e ajeitar o pulso da camisa — Eu preciso sobreviver.
Rio ironicamente diante daquelas palavras, sumindo com o sorriso de Nigel. Paro de rir. Ele fica sério e apenas me observa com certo desconforto.
— E para isso abusa do vício dos outros? — tento manter a calma.
— Eles me procuram, esfregam dinheiro na minha cara, fica difícil recusar — o sorriso volta aos seus lábios — Sabe como é.
Ajeito meu corpo sobre a cadeira de madeira. Não tiro a atenção dos três homens atrás de mim, qualquer movimento brusco eu precisava estar preparado. Mas os idiotas estavam relaxando conforme minha conversa casual com o seu chefe fluía.
— E se eles não pagarem você cobra de outro jeito? — disparo ironicamente, balançando a cabeça em direção aos maços de dinheiro no canto da mesa — Ou cobra juros.
Nigel inclina-se para frente, seus olhos brilham orgulhosos sobre o prêmio sujo. Seus dedos cruzam-se sobre a mesa trazendo um tom mais íntimo para a nossa conversa. Agradeço por não estar soando como uma ameaça. Era o que eu queria. Era o que eu precisava.
— Tenho que dar o exemplo — a ponta do seu dedo se choca contra a mesa envernizada de madeira — Do contrário vou a falência. E como disse com o seu pai não foi pessoal.
Sorrio, concordando com a cabeça. Evito ranger os dentes.
— Você é um maldito — solto em um tom humorado — Sabe disso.
— Opa. Opa. Opa — suas mãos se espalmam no ar, com um ar de ofensa — Sou um homem de negócios, Baby Baylor.
Fecho meu punho, os escondendo contra o meu corpo. Quero esmurra-lo, minha perna balança inquieta - a inquietação que passeia por todo o meu corpo –, preciso esmurra-lo. Suavemente giro a cabeça para o lado, analisando os capangas que bebiam com os olhos longe do seu chefe.
— Negócios sujos — devolvo ao voltar encara-lo.
— Negócios justos — me corrige com o indicador em riste — Não tenho culpa se apostadores como o seu pai escolhem sempre o azarão — seus dedos agarram o copo de uísque quase vazio e vira o líquido, que desce dando uma pausa nauseante — É só negócio — finalmente conclui, batendo o copo na mesa e arrastando para o lado — Eu sou o meio, não tenho culpa se algum time, cavalo, cachorro ou atleta perdem.
A inocência em seu tom é enfurecedor. Aquele cretino tinha resposta e justificativa para tudo, como se fizesse bem para a comunidade. Minha perna balança mais inquieta que antes. Meus dedos apertam a ferida encoberta em minha mão, preciso daquela dor. Necessito da dor carnal e não emocional. Rio. Rio a plenos pulmões. Rio sem humor qualquer. Apenas rio para distrair meus inimigos.
Em um movimento calculado, planejado e pensado desde que coloquei os pés naquele lugar, estico o braço levando o corpo junto, enrosco a cabeleira escura de Nigel entre meus dedos e empurro sua cabeça em direção a mesa de madeira. Pego a Sig Sauer na minha cintura. O som do choque da cabeça do corretor de apostas contra a mesa ainda ecoa pelo ambiente, junto com um gemido que alerta os dois capangas.
Aponto a arma em direção dos dois brutamontes. Mantenho a cabeça do homem enfiado contra a tabua de madeira. Não miro, acerto o ombro do careca dentro do paletó preto e a mão armada do ruivo só de camisa. O som do metal das armas caindo no chão e grunhidos de dor precede o dos tiros. Atrás do bar o magricelo ergue as mãos assustado, levando junto um copo no chão.
— Esse é um aviso — rosno para os dois homens agora desarmados — Da próxima vai ser na cabeça — a dupla espalma as mãos — Ergam as calças e mostrem as cinturas — ordeno balançando a arma na direção deles.
Continuo a esfregar a cara nojenta do Nigel na mesa suja.
— Você está em desvantagem, Baby Baylor — o homem debaixo dos meus dedos rosna.
Sorrio com o fato dele me subestimar. Se quisesse já teria metido uma bala na testa dos quatro. Estava enferrujado, mas seria capaz.
— Não, vocês estão.
O careca e o ruivo abandonam suas facas, armas reservas e pares de algema com chaves.
— Algemem-se um no outro — aponto em direção ao círculo metálico no chão — Os três.
Os capangas me olhavam com fúria. Seus movimentos eram lentos e calculados e os meus também. Pingos de sangue já cobriam o piso cinza. E antes que precisasse meter uma bala na cabeça de alguém escuto o clique das algemas.
— Agora vão para o banheiro.
Conhecia o banheiro daquele lugar, era perfeito para mantê-los. Ambiente pequeno, sem janela, com apenas um sanitário e pia, nada além. Nada que pudesse facilitar uma fuga. Em passos lentos os três caminham até cubículo. Puxo Nigel pelos cabelos, suas pernas me seguem cambaleando e a maldita boca resmungando algo a todo momento.
— De joelhos — ordeno ao cara de terno e com a testa sangrando.
Ele obedece. Os três entram no banheiro. Aponto a arma em direção ao homem ajoelhado. Em passadas largas me aproximo da porta, analiso a parte de trás, arrancando a única chave, a fecho. Jogo a chave para longe, com a coronha da arma quebro a maçaneta.
— Você está jogando um jogo perigoso garoto — o homem ajoelhado anuncia com uma paciência monstruosa.
Queria, precisava ver o medo em seus olhos. O mesmo medo que o meu pai deveria ter sentido. Queria aquele medo. Precisava cobrar na mesma moeda. Ranjo os dentes.
— O que você vai fazer? — arqueia o cenho escuro em um tom casual.
Inspiro o ar. Observo a figura do homem usando uma calça cara, camisa de seda, um corte na cabeça que começa a escorrer sangue pela lateral do seu rosto, mas sua postura era inabalável.
— Eu vou cobrar a sua conta — aponto a arma em direção da testa a poucos passos de mim — É hora de você pagar, Nigel.
Ele ri. Aquele maldito sorriso cheio de soberba. Minha náusea aumenta, meu sangue ferve, meu indicador acaricia o gatilho em uma tentação diabólica de dar um fim antecipado a vida daquele verme.
— E você vai me matar? — debocha, empinando o queixo desafiadoramente — Ora. Ora. Você não é capaz Baby Baylor.
Ranjo os dentes, engolindo o rosnar a andar dois passos para frente e colocar a cano da arma a um movimento de distância daquela testa.
— Você dúvida? — digo entre dentes.
Minha pele acaricia o metal que bastava ser apertado e acabaria com tudo, acabaria com aquela voz que era pior do que a dos meus fantasmas. Eu queria que ele se calasse, mas precisava que ele falasse. Meu sangue ferve debaixo da pele, controlo minha mão para não tremer de ódio. Sempre desejei aquele momento, mas nunca me vi nele. Pensava que outra pessoa chegaria na minha frente.
— Atira — pede com desdém e sem medo — Mostra que não é covarde feito o seu pai.
Enfio meus dentes contra o meu lábio inferior. As emoções estavam tomando a razão. Dou mais um passo para frente e encosto o cano da arma contra a cabeça daquele diabo. Agora só um simples movimento do meu dedo me separava de dar um fim a aquele inferno.
— Você acabou com ele.
— Ele acabou com ele mesmo — devolve irritado.
Ofego. Tento trazer qualquer resquício de razão que não seja impulsionada por meu sangue fervente. Meu dedo aperta o gatilho – não afunda-se nele – o leva até a metade. O ódio toma conta. Puxo a arma para o lado e atiro.
— Ohh — o homem de joelhos diante de mim grita levando a mão na orelha —Minha orelha — sua mão afasta-se da orelha manchada de sangue — Seu fedelho.
Não dá para ver o estrago exato na sua orelha, apenas que parte da carne na borda está dilacerada.
— Você merece pagar os seus juros, Nigel — debocho.
— Seu merdinha — seu corpo curva-se para frente — Covarde.
Rio com a ironia daquela acusação. Volto a apontar a arma para os miolos daquele homem. Ele empertiga-se sem a soberba no olhar. Ele me olha com ódio. Uma fúria que dilata suas pupilas. Em um movimento brusco seus dedos envolvem o cano da arma e me puxa junto. Não consigo reagir. Meu dedo quer apertar o gatilho, mas uma dor lacerante me impede. Não consigo respirar.
Nigel gargalha como o diabo.
Olho para baixo e encontro um canivete enfiada entre as minhas costelas, a camiseta branca começa a ser manchada de vermelha.
— Esqueceu de me revistar — debocha o homem torcendo a faca dentro do meu corpo e alargando mais ainda os lábios.
Rapidamente, o agiota fica em pé arrancando o pequeno canivete de dentro do meu corpo, que agora jorra sangue. Seu joelho acerta o meu, fraquejando meu corpo que cai no chão. Não consigo respirar. Não tenho medo do que sinto, mas sinto ódio pelo que não conclui.
Encaro a arma ainda entre os meus dedos.
— Esse jogo é demais para você, eu avisei — a sola do seu sapato de couro para em cima da minha mão — Fico triste que tenha que acabar assim, você estava indo bem até deixar a emoção tomar conta.
Não solto a arma. Seu pé afunda-se sobre a minha mão já com a pele dilacerada, a dor é profunda. Seu pé faz mais força esmagando as articulações dos meus dedos que se abrem soltando a arma. Seu pé se afasta e sua mão agarra a arma. A dor carnal é um energético.
Sugo o ar com dificuldade. Sugo com raiva. Ofegante, fico de quatro. Viro meu corpo sobre o piso gelado. Não iria desistir sem lutar. Aperto o sangramento das minhas costelas. Ofego. A adrenalina amortece a dor e a torna tolerável.
Suspiro, me sento sobre o chão e agora encaro o cano da minha própria arma.
— Ele morreu — conto — Acho que não sou capaz de jogar esse jogo mesmo, um jogo nojento que causa a morte de outros.
Nigel pisca algumas vezes surpreso. Sorrio sem medo, já tinha estado naquela posição tempos atrás. Já tinha olhado o diabo de frente, entrado no inferno, morrer não me assustava. Não temia não voltar a abrir os olhos, seria um alivio. Seria ótimo pular toda a merda do luto, culpa e pesadelos. Já tinha dose suficiente daquilo.
Não precisava de mais.
A arma continua apontada na minha cara.
— Não foi minha culpa — defende-se.
Dou de ombros. Agarro a carteira de cigarros no bolso de trás da minha calça – sem medo dele reagir – consigo puxar um papelote com os lábios, jogo a carteira no chão, ficando só com o isqueiro que queima a ponta da nicotina. Dou o mesmo destino ao isqueiro. Minha outra mão continua a estancar o sangramento entre as minhas costelas.
— Se isso te ajuda a dormir.
Pela primeira vez naquela noite vejo o pavor nos olhos negros daquele diabo, algo o estava incomodando, ou ele não tinha um plano.
— Como vai ser agora? — questiono cuspindo fumaça em sua direção — Seus capangas estão feridos, está amanhecendo, meu tio vai me procurar, não vai ser bom deixar meu corpo aqui — provoco, tragando mais uma dose de nicotina.
Nigel enruga o queixo furioso com as minhas verdadeiras palavras.
—Vai — grito — Atira, Nigel — ordeno — Jogue o seu jogo.
Ele dá um passo para frente e encosta o cano na minha testa. O encaro nos olhos.
— Acaba logo com isso — aconselho — Porque se não fizer eu vou fazer a sua vida um inferno — rio entre uma tragada e outra.
Um som agudo reverbera pelas paredes do lugar sem janelas, passos ritmados e a porta sendo arrombada invade o ambiente solitário. De soslaio vejo oito policiais entrando, meu tio na frente. Todos apontam as armas em nossa direção. Esmago o cigarro contra o piso do meu lado.
— Mãos ao alto! — Jim ordena com a arma apontada para as costas do Nigel..
A mão do homem que segura a arma contra a minha testa treme sua indecisão.
— Seja homem, Nigel — sussurro na direção do meu carrasco — Atira.
— Mandei largar a arma — meu tio insiste.
Começo a perceber gotas de suor vindo da testa da figura intocável do crime.
— Não tenha medo — sussurro desafiadoramente.
Seria uma benção morrer naquela altura que não tinha nada a perder.
— Larga a arma — o xerife da cidade insiste.
Nigel suspira. Suas narinas dilatam-se furiosas com os olhos fixos aos meus. Sua mão treme ao afastar a arma da minha cabeça e joga-la no chão, deixando uma decepção no meu interior ao ver suas mãos erguidas e seu corpo sendo arrastado para longe de mim.
— Adam — meu tio corre em minha direção preocupado — Um médico, agora.
Seus olhos analisam minha roupa coberta de sangue. Começo a sentir minha pressão cair e um suor frio tomar a minha pele. Com a mão livre agarro o pequeno gravador escondido no meu bolso da frente. Bato o objeto contra o peito do único membro restante da minha família.
— Toma, isso vai ajudar a trancafia-lo por alguns anos.
Eu iria acabar com Nigel de qualquer jeito, fosse um uma bala na cabeça, fosse com a gravação da sua confissão sobre o seu negócio sujo. Eu não queria, nem esperava sair vivo, mas o arrastaria junto para o inferno.
E antes que possa trocar qualquer palavra com o meu tio sou cercado por socorristas. Queria afasta-los, mas estou sem forças. Estou sem forças para impedir a sensação de que tinha finalmente chegado ao fundo do poço.
E o tombo chegou 🤧
Gostaram do capítulo? Teorias?
SEGUNDA TEM MAIS 🥺
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