02 | ACORDANDO NO INFERNO
02
ACORDANDO NO INFERNO
ADAM
6 MESES ANTES
1 ANO E 1 DIAS DEPOIS DE SAIR DO INFERNO
FINAL DO VERÃO EM BAYFIELD
Barulho. Dor. Gritos. Boca seca.
Meus pés correm. Eu corro. Mas tudo ao meu redor parece parado. Nada se move. Nenhuma das figuras borradas ficam para trás. Nenhuma ameaça fica para trás. Minhas pernas se movem. Meus joelhos dobram. Meus pés são as únicas coisas saindo do lugar.
Eu estou preso. Eu corro e não chego a lugar algum. Eu não saio daquele maldito inferno com cheiro de enxofre, carne podre e sangue. Eu fedo a carne podre. A minha carne lacerada queima. Os dois furos na altura do meu ombro queimam lentamente. Posso sentir o cartucho de ponta fina perfurar todas as camadas da minha pele, musculatura e finalmente abrir um buraco de saída nas minhas costas.
Dói.
Trago o gosto ferroso de sangue.
Dói. É agonizante.
Só não é mais agonizante do que meu corpo ainda parado no meio do lugar. Meus corturnos afundam-se na areia fofa. O calor queima a minha pele. Ofego exausto. Os gritos começam a tomar forma.
Os gritos começam a soar como malditas palavras que aumentam a minha agonia. Alguém grita. Olho para os lados e não acho nada. Não vejo nada além de vultos. Uma voz conhecida grita a plenos pulmões em meio à confusão e tortura. Alguém me chama: Adam.
Adam
A voz ecoa na minha mente. Continuo preso no mesmo lugar. O calor aumenta. Ofego. Estou enjoado. Não consigo parar de correr. Tem sangue por todos os lados. Tem sangue nas minhas mãos. Corpos sem vida me cercam e fedem.
As malditas palavras que antes formavam o meu nome transformam-se em a porra de um grito agonizante. O ambiente arenoso e ensolarado começa a perder a coloração, a escuridão chega.
Está tudo escuro.
A escuridão engole meu corpo. O grito aumenta como um soco que atinge o meu corpo roubando a minha vida.
Abro os olhos.
Com um grito entalado na goela, abro os olhos.
Odiava aqueles pesadelos confusos e torturantes. Bebia para afoga-los, mas continuavam lá cheios de vida na minha cabeça. Em alguma parte podre do meu ser.
Abro as merdas dos meus olhos. A respiração ofegante ainda está lá, junto com o suor que cola meu corpo no colchão duro. Pisco algumas vezes com a luz que queima meus olhos e confunde a minha mente. O piso de madeira não se parece nada com areia. Não estou preso ao inferno. Não tem sangue, nem corpos. Estou acordado na minha maldita realidade.
— Merda — balbucio com a cara colada no lençol e os dedos fincados na borda do colchão.
O cheiro de enxofre, carne podre e sangue queima no meu cérebro. O cheiro de flores frescas e vivas invade meu nariz, tencionando todo o meu corpo. Em um pulo sento na cama. Aquele cheiro não fazia parte do ambiente. Tinha algo errado. Tinha alguém. Minha cabeça queima e gira, mas não consigo ignorar a figura feminina pequena desfocada parada a poucos passos da cama, sustentando uma xícara de café fumegante na mão. Pisco. Esfrego meus olhos. A figura de cabelos castanhos presos em um rabo, trajando jeans e camiseta continua lá. A estranha desconhecida continua lá. Ela é real e não um maldito pesadelo ou imaginação.
— Bom dia — seu tom suave é saudoso e cuidadoso.
Ela é assustadoramente real.
— Quem caralhos é você ?— esbravejo irritado com a merda daquela invasão.
Tudo gira. A cabeça queima.
Tento puxar qualquer fragmento de lembrança da noite passada. Nada. Uma merda de nada. Porra. Esfrego as mãos no meu rosto. O gosto nojento de lixeira não saí da minha língua. O arrependimento, por passar aquela maldita data bebendo, não chega.
— Você não lembra? — a voz suave irritantemente não é irritante.
Bufo. Encaro a garota que mais parecia uma adolescente saída de algum catalogo de universidade. Cabelos castanhos, olhos cor de mel, pele clara, um tamanho terrivelmente pequeno. Definitivamente não a conhecia. Caralho. Aqueles malditos olhos redondos me observam sem medo, pavor ou compaixão, como se me entendesse. Como se compartilhássemos algo. Como se tivéssemos compartilhado algo.
Eu dormi com ela?
Olho os lençóis amarrotados atrás de mim que não dizem muito. Minha mente se foca e percebo que estou usando a mesma camiseta e calça que tinha usado na manhã seguinte, faltando apenas meus coturnos. Nenhum vestígio de sexo. Porra. Checo o zíper da minha calça. Intacto.
— Não se preocupe — a intrusa tenta corrigir qualquer mal-entendido. A encaro. Seu indicador em riste balança entre nós dois — Nós não fizemos nada.
Ok. A porra daquela informação não servia para nada. A merda daquela informação era preocupante. Uma garota no meu apartamento. Uma garota vestida no meu apartamento. Uma garota vestida que tinha passado a noite na minha casa e eu não tinha metido nela na noite passada. Aquilo sim era preocupante.
— Eu sou apenas a garota que te ajudou a subir as escadas, a capotar na cama e preparou o pior café que você já tomou na vida — ela faz uma careta ao encarar o líquido fumegante dentro da caneca branca com uma propaganda na frente — Mas considerando seu estado — a ponderação vem acompanhada de uma balançar de ombros e o esticar da caneca em minha direção — O gosto não vai fazer muita diferença.
Estreito os olhos. Minha cabeça gira. Encaro a xícara. Meu estômago se revira. Que caralho. Aquela garota só faltava aparecer com uma caixa de biscoitos e tentar me vender. De esguelha me deparo com o sofá com almofadas empilhadas e um cobertor dobrado apoiado no braço.
— E você dormiu aqui — observo mais para mim mesmo do que para ela.
Quem caralhos era aquela garota?
— E eu dormi aqui, para garantir que você não morresse engasgado com o próprio vômito — a estranha complementa, desistindo de segurar a xícara e apoiar na mesinha ao lado da cama — Você sobreviveu — ela sorri, como se aquilo fosse para se comemorar.
Ela sorri simpática. Aquilo me irrita. Ela me irrita. Esfrego os olhos.
— Pode ir se quiser — resmungo desconfortável com ela ainda em pé diante de mim.
Irritado comigo mesmo pela noite passada ser um borrão. O dia anterior era um borrão na minha mente fodida. E era assim que deveria ter sido. Não queria viver aquela data. Não queria lembrar que fazia um ano que tinha saído do inferno. Que tinha saído vivo. E tudo estaria normal, se aquela garota não estivesse plantada na minha sala.
— Eu te ajudo e é assim que você me agradece, Adam Baylor?
A garota tagarela e intrometida sabia a porra do meu nome. Todo meu corpo fica em alerta. E encaro com mais atenção do que gostaria. Gostaria de estar a arrastando para fora, mas minha mente e meu corpo ainda não estavam concordando.
— Quem caralhos é você?
Cabelos castanhos. Olhos castanhos. Pele clara. Sorriso largo e branco. Voz suave e gentil. Baixinha. Tagarela. Irritante.
— Eu sou
Suspiro a interrompendo quando a imagem da garota diante dos meus olhos retrocede a alguns anos para uma figura infantil quase com as mesmas características.
— Elizabeth. A irmã pirralha do Elliot.
Sua boca abre-se. Sua boca fecha. Sua cabeça pende para direta aceitando a minha resposta.
— Só minha mãe me chama de Elizabeth, mas você acertou — seu lábio inferior projetasse sobre o superior — E pode me chamar de Tate, como todos.
Minha memória começa a voltar. As imagens daquela garota pirralha começam a voltar. E mesmo com tudo começando a se encaixar, uma coisa ainda não fazia sentido: ela ali.
— O que você quer? — fico em pé com certa dificuldade em conciliar meu equilíbrio — Por que diabos está aqui?
Seu corpo permanece imóvel. Seu queixo se empina sem quebrar o contato visual. Ela não recua. Ela não se assusta. Ela não se intimida. Eu me irrito. Eu tenho que baixar os olhos para encara-la, a garota quase nem tinha crescido ao longo dos anos.
— Eu tenho uma proposta.
— Não. Não estou interessado.
Não queria nem saber se ela estava vendendo biscoito, livros ou brinquedos eróticos. A resposta era não. Agarro a xícara ainda fumegante, não por gentileza, mas por sede. O líquido turvo não era atrativo, mas mesmo assim beberico.
— Mas você nem me ouviu ainda
— Porra — cuspo o café dentro da xícara — Isso está uma porcaria.
Passo pela baixinha com braços cruzados e determinada. A ignoro. Contorno a bancada que dividia a sala e a cozinha. O calor fresco da geladeira é reconfortante. Gostava do frio. Agarro a garrafa de leite esquecida, abro a tampa. O gosto azedo é melhor do que aquilo que não poderia chamar de café. Bebo. Bebo.
— Eu vi o vídeo seu e do Elliot, está bombando na internet — a pequena mulher continua a falar, mesmo bebendo não consigo ignora-la — E eu trabalho para uma emissora de televisão que produz programas de entretenimento — e ela continua.
Bebo até a última gota. Arroto. Ela para de falar. Jogo a garrafa vazia para dentro da geladeira, até que seja substituída por outra. Limpo a babar com as costas da mão.
— Minha chefe viu o vídeo e amou. Ela amou você e o Elliot.
Bufo. Aquele falatório estava aumentando a minha vontade por um cigarro. Estava começando a me arrepender por estar sóbrio. Estava arrependido daquela merda de vídeo. Nem sabia quem caralhos tinha gravado aquilo, mas foi ali que as porras das ligações começaram. E as ligações continuaram. E as merdas das ligações me obrigaram a arrancar o fio do telefone.
Me viro. Paro diante do obstáculo de 1,60 com os olhos fixos em mim. Sua mão espalma-se no meu peito, me detendo. A porra dos seus dedos finos afundam-se contra o tecido da minha camiseta. O leite revira-se no meu estômago. Encaro os dedos. Encaro os olhos redondos suplicantes. Não gosto do seu toque quente.
— Me escuta
Bufo.
— Não.
— Por favor, me escuta
— Sei que você teve trabalho ontem, mas eu não quero ouvir nada. Não quero saber no que você trabalha. Não me importa o que a sua chefe achou. A resposta é não para qualquer coisa — estico meu braço em direção da porta — Então fecha a porta ao sair — envolvo seu terrivelmente pequeno pulso e arranco de mim.
Seus lábios determinados – e agora impacientes – balbuciam algo que ignoro ao encarar os intensos raios solares que invadem as janelas sem coberturas. Cacete. Já estava quase na metade da manhã. Caralho.
— Caralho — esbravejo em voz alta — Que horas são?
— O que? — Tate me encara como se tivesse feito uma pergunta absurda — Quase dez da manhã, porque?
— Merda — rosno.
Aquela mulher iria comer meu cú a seco. Estava mais de meia hora atrasado. Merda. Estava atrasado. Estava de ressaca. Fedendo feito um banheiro de bar. E terrivelmente atrasado. Ela me foderia. A doutora Chata Fode acabaria comigo.
Ignoro a intrusa. Corro até o banheiro tentando ser o mais rápido possível e consertar a merda. Ignoro os murmúrios femininos atrás de mim.
— Bata à porta quando sair — digo pela última vez, antes de entrar no banheiro.
Bato a porta branca atrás de mim.
— Você é mais divertido bêbado — o comentário em alto e bom som invade o pequeno espaço.
♦
Cinco minutos. É o tempo que levo para tomar a porra de um banho. Abro a porta. Minha irritação aumenta.
Tate ainda estava lá. Com a bunda sentada no braço do meu sofá. Braços cruzados e olhos fixos em mim. Seu cenho se arqueia desafiadoramente. Ela não se incomoda com o meu corpo enrolado em uma toalha.
— Por que caralhos você ainda está aqui? — esbravejo, sumindo em direção ao pequeno closet.
— Eu não vou embora, antes de falar com você — a garota determinada anuncia.
Dentro do pequeno espaço de 2x2 visto as primeiras peças de roupa que encontro. Saio. Ela ainda está lá.
— Eu tenho um compromisso — revelo caçando meus coturnos.
Os encontro ao lado da cama, enfileirado um ao lado do outro. Não tinha sido eu quem os tinha tirado. Não precisava pensar muito para saber quem tinha sido, a minha intrusa. Os calço, praticamente os amarrando no ar.
— Minhas chaves — olho ao redor — Cadê. Você as viu? — espero que pelo menos ela possa me ajudar em algo.
Porra. Porra. Porra. Nada. Nada na mesinha ao lado da cama. Nada no banheiro. Nada na roupa suja. Ir correndo era uma opção que me tomaria uns dez minutos a mais que o normal. Caralho. Fico de quatro sobre o assoalho, passando os olhos debaixo da cama vazia.
Um tilintar de chaves me obriga a elevar o olhar. E lá estão elas, prateadas e convidativas nas mãos na mulher recostada no meu sofá. Bufo. Rosno. Aquela garota estava testando todos os meus limites. Nenhuma mulher jamais tinha testado minha paciência daquele jeito. Porra. Nenhuma mulher tinha passado a noite na minha casa. Nenhuma mulher tinha passado a noite no meu sofá. E principalmente, nenhuma tinha sequestrado as minhas chaves.
— Você as deixou caídas na entrada — minha não convidada revela.
Em um pulo fico em pé. Em passadas largas me aproximo. Ela não recua. A pirralha nem treme ao fechar a mão e esconder as chaves em sua palma.
— Me dá — exijo, balançando meus dedos com a mão esticada — Não tenho tempo para brincadeirinhas.
— Não — ardilosamente ela sorri — Me escuta e eu devolvo.
Poderia arranca-las de sua mão. Mas entrar em luta corporal com a irmã do meu melhor amigo não parecia uma ideia aceitável.
Bufo. Cerro meu punho. Aperto meus dentes.
— Você continua a mesma pirralha chata de sempre, Sunshine — rosno cruzando os braços.
Finalmente seus olhos mostram alguma emoção quando recordo seu apelido de infância. É. Eu lembrava o apelido de Elizabeth Evans, ou como todos a chamavam, Tate. E como Elliot a chamava na infância: Sunshine. Algo fofo para uma garota que tinha ganhado a coroa e a faixa de miss Sunshine na festa de celebração ridícula, que a cidade tinha, a cada chegada do Solstício de verão. Ela odiava aquele apelido. E eu lembrava. E ela lembrava. E ainda odiava, soube disso quando o sorriso sumiu dos seus lábios, dando espaço para uma suave mordida no lábio inferior, como se evitasse dizer algo.
— E você é um idiota rabugento.
Concordo com a cabeça.
— Já me chamaram de coisa pior. Me dá as chaves.
Ela esconde a mão atrás do corpo.
— Cinco minutos — propõem.
Suspiro irritado, atrasado e sem opção.
— Cinco minutos — decreto.
Seus olhos se arregalam. Mas seus lábios não sentem dificuldade em voltarem a tagarelar.
— Eu trabalho em uma emissora e minha chefe quer você e o Elliot como as próximas estrelas das segundas-feiras. É um programa de reformas, vocês vão continuar fazendo o que já fazem, nós só vamos gravar tudo — seu tom animado não me contagia, me irrita, ela parecia aquelas vendedoras deslumbradas de bíblias— Vocês vão ganhar 240 mil por temporada, cada um, fora extras, patrocinadores e liberdade para atuarem em propagandas para marcas patrocinadoras — continua — Vocês assinarão um contrato de dois anos para uma temporada com 13 episódios, podendo ganhar uma temporada completa com 18 episódios e uma segunda — seus lábios resplandecem um largo sorriso.
Balanço a cabeça. Digerindo cada palavra que já tinha jogado no lixo mental.
— Em que parte eu devo me deslumbrar? — disparo curioso e irritado — Com os 240 mil? Ou as propagandas? —debocho diante daquela oferta ridícula— 18 episódios, talvez?
Não era ridículo o valor. Era ridículo a ideia dela achar que eu faria a merda de um programa.
Seu sorriso some gradativamente. Ela volta a morder o lábio. Engolindo um e outro insulto.
— Não precisa ser babaca — finalmente ela parece escolher uma palavra.
Estendo a mão.
— As chaves — exijo.
Seus olhos cor de mel olham meus dedos que balançam. Seus olhos se voltam para os meus olhos. Suas narinas dilatadas são sinal da sua irritação. E mesmo não ouvindo sabia que sua mente fervilhava.
— Pode pensar? — não sei se é um pedido ou desespero.
Reviro os olhos. Balanço os dedos.
— Até sexta? — ela insiste — Pode conversar com o Elliot, pelo menos?
Ok. Aquela garota não me daria o que queria até ouvir o que precisava. Eu sabia. Eu sabia ler a merda das pessoas. E eu sabia quando alguém estava determinado. E aquela garota estava determinada. Ela poderia me deixar preso lá até conseguir o que queria.
— Tá — minto — Sexta — concordo.
Sua cabeça balança para os lados, com os olhos estreitados, como se tentasse me ler. Como se tentasse descobrir se eu estava ou não mentindo. Balanço os dedos exigindo a chave. Ela suspira, desarmando os ombros. Finalmente sua mão estende a chave. Caminho em passadas largas até a porta.
— É para pensar — ela grita antes do meu corpo passar pela porta — Não vai me enganar.
Aquela garota parecia ter uma necessidade doentia de dar a última palavra.
♦
Sabe qual é a merda de sair de uma merda? Ter que passar por mais e mais merdas. Ser uma ferramenta do governo me tornava uma peça que não podia ser facilmente dispensada. Nunca imaginei que ser um Seal poderia tornar minha vida um inferno.
Mas um ano após sair do inferno e cair no purgatório, não foi difícil de entender como as coisas poderiam piorar. Demorei para perceber que cair em uma emboscada em uma missão. Ser prisioneiro americano durante meses no meio do nada na Somália era quase uma benção. A maldição estava sendo o último ano, com a bunda assando naquele desconfortável sofá de couro marrom, grudento e fofo, como um convite para relaxar. Os quadros na parede nunca mudavam de lugar, apenas mais um título, conquistado pela terapeuta no último ano, estava preenchendo o espaço revestido com papel de parede e na moldura dourada. A pequena sala era simples, a primeira sala da entrada da casa dentro da vila militar de Bayfield, mobiliada com o irritante sofá, uma pequena escrivaninha ao lado da porta francesa de vidro, com visão para fora e uma mesa de centro dividindo o espaço entre meu corpo e a poltrona ocupada pela doutora Charlie Ford.
A mulher mais irritante que tinha conhecido, parecia uma criança com intermináveis por ques?, que nem eu sabia as respostas. Nos últimos doze meses e um dia ela estava tentando entrar na minha cabeça. As pontas dos meus dedos tocam o topo do meu ombro, a cicatriz ainda dói. As balas não estão mais lá, mas seu fantasma sim. A cicatriz ainda estava lá, cravada na minha carne, uma lembrança dos meus erros e de como tinha falhado.
Era uma falha como filho. Era um erro para a mulher que tinha me colocado no mundo e dado as costas antes de completar dez anos. Tinha sido a vergonha da cidade no rinque como jogador de hóquei. E era uma peça defeituosa que o governo americano não conseguia liberar, me obrigando a intermináveis horas de terapia, até ter certeza de que não seria uma arma desgovernada no meio dos civis ou se continuava apto para exercer as minhas funções.
— Potinho — a mulher de altura mediada, sorridente, cabelos curtos grisalhos e rosto magro bate o copo de plástico na mesa de centro de madeira que dividia nossos corpos.
Encaro o objeto nada convidativo. Nada novo, como jogador já tinha mijado no potinho e como fuzileiro também.
— Acho que você sabe onde fica o banheiro — seu sorriso gentil não torna suas palavras mais acolhedoras ou estimulantes naquela manhã.
Nem a ausência de algum sermão pelo meu atraso. Odiava ouvi-la falando. Mas preferia um sermão do que seguir o maldito ritual como se nada tivesse acontecido.
Agarro o potinho, marchando em direção a porta ao lado do sofá.
— Porta aberta — recorda.
Paro. Trincando meus dentes irritado por ter esquecido daquela maldita parte, de ter que mijar com olhos vidrados no que saia do meu pau, como se eu tivesse trazido algum saco ou recipiente com urina limpa. Não que já tivesse pensado no último ano.
Ela sabia qual seria o resultado. E mesmo assim a cada quinze dias lá estava minha urina em um pote. Mas minha restrição não era o álcool, sim as drogas ou remédios.
A encaro. Já acomodada em sua poltrona cinza, com as pernas cruzadas dentro de uma calça de alfaiataria xadrez e a pasta de couro repousada em seu colo, com a insuportável caneta de apertar.
— Não quer vir assistir? — rebato sarcasticamente.
Meu sarcasmo não a atinge. Seus ombros dançam em desdém, assim como sua mão que balança em uma ordem velada para que fizesse logo o que tinha que fazer.
— Não, obrigado — seus olhos encaram as folhas no seu colo.
Reviro os olhos, mais irritado do que o normal naquela manhã. Se aquela mulher pudesse, certamente enfiaria um pau no meu cu, para me fazer falar.
Quero bater à porta. Porém não o faço. Abro a tampa do vaso. Abro o potinho. Abro minha calça. Arranco meu pau e mijo no potinho, despejando o resto da urina no sanitário, antes de guardar tudo, lavar as mãos e retornar.
Bato o recipiente tampado na mesa de centro. Ela mantém o ar inalterado.
— Pronto — digo áspero, sentando no desconfortável sofá de couro, que parecia querer fazer o meu corpo afundar.
Com um saquinho, a doutora Ford abandona sua pasta, agarra o potinho, o envolve dentro, amarra e guarda na pequena geladeira ao seu lado. Batuco meus dedos contra a coxa, meu pé balança, enquanto ela reassume sua posição.
Seus olhos azuis recaem sobre mim, seus dedos cruzam-se sobre a pasta.
— Então, como você tem passado? — seus lábios gesticulam as palavras com uma calma perturbadora.
O batucar dos meus dedos se acelera. Minha boca começa a ficar seca, em busca de um cigarro. Estava exausto. Na verdade estava péssimo e cansado naquela manhã. Ainda estava de porre. O álcool misturado com o leite azedo no meu estômago era vestígio suficiente.
— Bem — minto, olhando fugazmente em direção a porta de vidro na extremidade da sala.
Sua cabeça balança em resposta, seu olhar encontra meus dedos. Fecho meu punho, parando com o batucar. Ela pega sua caneta, a apertando, produzindo o barulho que me dava calafrios e era o anúncio silencioso de que algo seria anotado naquela sua maldita pasta.
A necessidade de sair daquele lugar gritava em cada parte do meu interior, como se estivesse preso em uma armadilha.
— Alguma novidade desde a última vez que nos vimos? — prossegue, quando para de anotar.
Dou de ombros, soprando o ar por minhas narinas. Trinco meus dentes, engolindo qualquer informação dos meus últimos dez dias. Qualquer informação daquela manhã, com uma intrusa no meu apartamento. Não iria contar nada, não para aquela psicóloga que começaria com os seus malditos por ques esperando que eu tivesse a resposta na ponta da língua. Era ela quem era a especialista e estava ali para dar as respostas, não eu. Eu era o ferrado com a vida sendo analisada.
— Não? — seus olhos estreitam-se insatisfeitos em minha direção.
Jogo minhas mãos no ar, sem resposta. Ela assente, voltando a anotar algo.
— Sério? — questiono irritado — Vai anotar até as não respostas?
Ela escreve em silêncio. Aumentando o meu mau humor. Bate a caneta sobre as folhas organizadas dentro da pasta preta, antes de voltar a entrelaçar os seus dedos e me encarar, me recordando todos os motivos que me faziam odiá-la a cada novo encontro.
— Seu silêncio diz muito — revela a doutora Chata.
Preciso fumar
Porra, como precisava de um cigarro, mais do que um uísque.
Passo a mão no meu rosto, tentando não ficar em pé e romper para fora daquela sala asfixiante.
— O que você quer que eu diga? — questiono tentando não parecer desesperado — Não tenho as respostas, você é a especialista aqui, não eu.
— Ontem fez um ano — recorda.
Balanço a cabeça para frente. Eu sabia. E não queria falar sobre aquilo. Quem iria querer falar do dia em que saiu de um buraco no meio do nada, foi resgatado e teve que lidar com a morte dos seus companheiros. Eu não.
— Como você se sente?
Dou de ombros. Fincando meus dedos contra o meu joelho.
Como caralhos eu me sentia? Eu simplesmente não pensava sobre aquilo. Simples assim. Seus olhos azuis me analisam. Aquela sala clara torna-se cada vez uma tortura. Charlie fecha a pasta para a minha surpresa.
— Já faz um ano Adam — Charlie não deixa o silêncio se prolongar — Já faz um ano que você se senta nesse sofá e não diz nada. Absolutamente nada.
Relaxo um pouco meus dedos. A observo. Aquele maldito jogo já estava ficando chato.
— Me dá alta — peço a única coisa que me fazia ir ali duas vezes por mês.
Queria alta. Precisava ser liberado pela marinha. Não queria mais fazer parte daquela engrenagem, nem voltar para ela. Porém ou fazia aquela merda ou era preso por desacato.
O corpo magrelo da terapeuta se recosta insatisfeito com a minha resposta.
— Não — silaba calmamente — Não, até você se abrir.
Trinco minha mandíbula. A merda do meu dia tinha começado péssimo e não parecia que iria melhorar.
— Você está lidando errado com os seus problemas — a especialista dispara em um tom cheio de saber — Não é difícil deduzir que você se atrasou por estar bêbado. Foi isso que você fez ontem? Bebeu até cair?
Não muito diferente do que faço todo dia. A única diferença foi que bebi do café da manhã até meu corpo não aguentar mais. Não queria estar naquele dia. Não queria reviver aquele dia. Um ano. Exatos 365 dias atrás estava sendo retirado de um buraco, na Somália, depois de meses de tortura, mortes e escuridão naquele calor infernal. Principalmente não queria lembrar de como tínhamos ido parar lá, dos gritos e corpos. Não queria passar o dia com os rostos e gritos do Willians, Vargas, Stone, Jansen e Finley.
— Foi.
Charlie balança a cabeça.
— Isso não te ajuda.
Nego com a cabeça.
— Falar disso também não.
— Enquanto você não colocar para fora as coisas vão continuar te assombrando.
Esfrego a minha nuca. Eu merecia aquelas assombrações. Eu não queria, mas não podia esquece-los. Suspiro exausto. Estava terrivelmente exausto ao longo dos últimos meses. Voltar para onde tinha jurado nunca mais voltar: Bayfield. Ficar perto das merdas do meu pai. Lidar com os olhares curiosos que me ora me julgavam, ora sentiam pena. Fingir que não tinha merda por cada pedaço do meu ser.
— Você quer falar? — jogo meu corpo para trás — Faz um ano e um dia que eu saí de um buraco quente, fedido e cheio de corpos. Fui praticamente o único vivo. Vi meus companheiros de equipe serem assassinados como animais. Ser resgatado não foi uma benção, mas uma maldição que carrego cada vez que respiro — meus dedos inquietos batucam na minha coxa — Saí do inferno para cair em outro, encontrar o mesmo pai viciado em jogo, voltar para a mesma merda de cidade que tinha jurado nunca mais pisar. Eu tinha uma vida agora eu apenas sobrevivo a espera de sei lá o que, porque eu nem acho que mereça estar aqui — cuspo o ar para fora, não me sentindo melhor em dizer aquilo em voz alta— Terminamos por hoje?
Os olhos azuis me analisam em completo silêncio.
— Terminamos.
SEMANA HEART
PRIMEIRO DIA
Não postei ontem porque meu Wattpad não estava funcionando direito. Apertava e nada.
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