Armário
|Please don't play with
my pure heart
I am a naive
A girl in love
— Girls, Nature
"Hayoung ouvia os gritos da briga na sala do seu quarto, torcia para que eles terminassem aquela infinita discussão. E ainda que odiasse admitir, já que se sentia ingrata por tudo que eles fizeram para si, preferia voltar para o lugar de antes do que viver naquele ambiente cheio de agressões e confusões, muitas das vezes geradas por uma garrafa de whisky ou vinho quebrada na reserva ou até mesmo porque a situação finaceira está cada vez mais difícil de ser estabelecida com apenas um trabalhando.
Por ser mais fácil de sua mãe lidar, estudava em casa com milhares de livros e apostilas doadas pela carinhosa vizinha que a tratava mais como uma filha do que quem a adotou de verdade. Mas ali estava ela, apertada em pequeno e escuro espaço com um livro no colo, lápis em uma mão e uma lanterna em outra. Dentro do armário, seu esconderijo contra as monstruosas e assustadoras brigas, as palavras sobre a segunda guerra mundial pareciam ter muito mais impacto em seu lado sentimental do que teriam caso estivesse no lugar mais claro da casa e a algazarra barulhenta de fundo teve um efeito pior ainda quando ouviu algum vidro quebrar.
Empurrou de leve a portinha do armário, sentindo como se fosse para si cada xingamento e ironia que atormentavam cada segundo das últimas horas tão tumultuadas pelo desespero. Sentiu o estômago revirar ao ouvir seu nome no meio da briga, a culpando por ter tido tantas crises de ansiedade nos últimos dias, então cogitou a ideia de pular pela janela e buscar abrigo na casa ao lado, mas ao notar a tesoura que havia separado para fazer um dever de artes, pensou que talvez conseguisse algo melhor ao sentir o corte da lâmina em sua pele fina. Quase sem fazer barulho e saiu devagar do seu amado esconderijo esconderijo, foi engatinhando até a mesa onde o objeto estava guardado se levantou, correndo com ele até o banheiro minúsculo do seu quarto.
Encarou a tesoura como se fosse um tesouro intrigante, logo olhando para sua coxa e o pulso. O que na mente de Hayoung seria apenas um arranhão se tornou o suficiente para fazer com que o chão fosse manchado do vermelho escuro de seu sangue. Guardou o objeto cortante e puxou a caixinha branca de primeiros socorros embaixo da pia, que sempre estava ali já que tinha um dom em se machucar de formas toscas, como dizia sua mãe. Tirou dali tudo o que precisava, limpando o sangue das pernas e agradecendo por não ter feito nenhum profundo demais, ou teria mais problemas. Quando já estava com as faixas enroladas em si e o chão tão limpo como pode fazer, percebeu que não havia berros lá embaixo, agradeceu por isso. Abriu o armário novamente e trocou o short de malha que usava por uma calça de moletom, ninguém se surpreenderia já que o tempo estava frio.
Enquanto estava deitada na cama ainda lendo o mesmo livro sobre a guerra, começou a ouvir batidas no vidro da janela. Por já saber quem era, apenas andou devagar até lá, afastando as cortinas cor de pêssego e destrancando a janela.
— Eu já agradeci seus pais por terem escolhido uma casa com dois andares, mas deixarem você sozinha no primeiro? Sério, isso é maravilhoso. — O garoto disse passando para dentro do cômodo.
— É melhor nem tentar. — Falou ajudando ele a se equilibrar. — Estavam brigando ainda agora, devem estar muito irritados.
— Poxa, gata. Justo hoje que eu tenho dois ingressos para aquele filme que você queria ver.
Hayoung sorriu mesmo com a dor ainda latejante em suas coxas, mas não se arrependeu em momento algum. Foi para cama e se sentou, batendo a mão no lugar ao seu lado, ganhando depois a companhia do namorado.
— Não rola nem de noite? Estão marcados às dez e quinze da noite.
— Meu pai provavelmente vai passar a noite bebendo e minha mãe vai se encher de calmante antes das nove, então já está resolvido. O problema é se ele quiser me ver quando chegar — deitou na cama e continuou a olhar para o teto. — mas tranco a porta e resolvido, desde que eu chegue antes da meia-noite.
— Eu sei, Cinderela. — Riu e se deitou junto com ela. — Mereço um beijo?
— Merece mais do que um.
Sentiu um pouco de felicidade no meio de todo o desespero que enfrentado nos últimos tempos naquela casa. Conhecia o filho da amável vizinha desde antes de ser adotada, quando ainda morava no orfanato em um lugar afastado do centro da cidade. O garoto sabia de toda a dificuldade que Hayoung tinha, fazia de tudo para conseguir arrancar um sorriso mesmo que fraco do rosto dela, mas quando recebeu a proposta tentadora vinda do pai adotivo da garota, não pensou duas vezes em aceitar. Quando entrou no quarto, percebeu que a saia no cesto de roupas sujas estava manchada com sangue, então só precisou ir ao banheiro e ver os primeiros socorros fora do lugar, além do pano sujo de vermelho e uma tesoura, para ter a confirmação do que já sabia: Hayoung havia se cortado. Não faria mais o trabalho com as próprias mãos.
Entendiada, a garota decidiu que seria melhor começar a se arrumar e se levantou, abrindo o mesmo armário que estava escondida poucos minutos antes, encarando as roupas penduradas nos cabides. Pouco se importava com o olhar vidrado do namorado em seu corpo ainda coberto pela blusa e pela calça, apenas, estava concentrada em achar o cropped branco que tinha guardado para o Réveillon, mas gostava tanto dele que queria usá-lo o quanto antes. Não se assustou quando ouviu a janela abrindo, já sabia que ele estava indo embora para se trocar, assim como ela, mas alguns detalhes estavam tão bem escondidos para todos que nem ao menos imaginava o resto daquela história.
Quando ouviu sua mãe gritar da cozinha que estava indo dormir, já sabia que ela não iria acordar nem tão cedo. Já estava com a roupa trocada e com uma maquiagem fraca, usando apenas máscara de cílios e um gloss de morango perto da data de validade. Ajeitou o cabelo e esperou as batidas fracas na janela, indicativas de que o namorado já estava a aguardando, mas demorou. E demorou tanto que Hayoung quase não continha sua ansiedade enquanto ficava roendo as unhas antes pintadas de branco. Quando ouviu as batidinhas na janela, correu quase que imediatamente até ela, destrancando-a e sorrindo ao ver novamente o rosto do namorado.
Com muito esforço, já que as pernas ainda estavam um pouco doloridas pelo que fez, conseguiu passar para o lado de fora da casa e fechou a janela. Ambos começaram a andar, lado a lado, até o shopping que não ficava tão longe do lugar onde o pai de Hayoung estava enchendo a cara de bebidas álcoolicas e desperdiçando o dinheiro que tanto precisavam para as despesas da casa, mas ela não sabia disso e o garoto esconderia o máximo que pudesse. Perguntava-se a que ponto havia chegado para aceitar a proposta horrenda da pessoa que deveria amar mais a jovem no mundo, mas de qualquer jeito, não faria nada para impedir e seguiria o planejamento.
Hayoung sorria como nunca quando entrou na fila da pipoca sozinha enquanto seu namorado esperava na entrada da sala, olhando os potes personalizados dos filmes como se fosse uma criança, mesmo sabendo que escolheria o menos enfeitado já que seu namorado iria rir da sua vontade um tanto incomum para uma adolescente. Observou a moça entregar o pedido das pessoas na frente e agradeceu quando finalmente chegou sua vez. Escolheu a maior opção de pipoca salgada para dividir com sua companhia da noite, um pouco menos alegre pelo que escolheu: um pote branco, simples e sem qualquer decoração. Quando voltou, já estava na hora de entrar, então sua felicidade voltou totalmente.
O filme começou, o barulho alto das falas e o vento frio do ar-condicionado eram, de certa forma, a representação de liberdade para Hayoung. Mesmo que estivesse dentro de um lugar fechado e escuro, mas pensava como se a liberdade estivesse no ato de poder estar ali finalmente. Assistiu o filme com a mesma animação de uma criança, mas sem falar e agradecendo pelo resto do público também estar em silêncio.
Na volta para casa, quase dormindo enquanto ia se apoiando nos braços do namorado, ele decidiu para em uma loja de conveniência para comer, com a clara intenção de demonstrar para o pai dela 'olha, já estou com ela, de hoje não passa'. A menina estava tão sonolenta que não percebeu a presença do homem poucos metros a frente brigando com alguns outros caras, apenas tomava o suco de laranja e enfiava para dentro um pouco mais de macarrão instantâneo.
Quando chegou em casa, pulando novamente a janela junto com o garoto, a primeira coisa que fez foi conferir se a porta estava realmente trancada e não havia se confundido. Como não havia barulho algum do lado contrário, deduziu que seu pai ainda não voltou de onde estava e agradeceu por isso, despediu-se do namorado e pegou novas roupas, dirigindo-se até o banheiro. Com as roupas trocadas para um pijama, não contava com a presença do vizinho ainda na sua cama, sentado enquanto brincava com a tesoura que tinha usado para fazer os cortes em sua coxa. Boquiaberta e nervosa, sentiu todo o sono se esvair, sendo tomado pelo desespero de ter bem em sua frente a pessoa que mais amava contemplando as faixas expostas pelo short curto e ainda por cima brincando com o que usou para fazer os machucados.
— Não vai tentar se explicar? — Perguntou apontando a tesoura para ela.
— O que eu vou explicar, se você já concluiu tudo? — Tentou não desviar os olhos dos dele. Não era como se estivesse orgulhosa de seu feito, mas odiaria demonstrar fraqueza.
— Vem cá. — Hayoung não vai, apenas cruza os braços abaixo dos seios e fica esperando a próxima ação dele. Tomou um breve susto quando o viu levantar, aparentemente bravo, e andar em sua diração. — Quando eu falar algo, você obedece.
— O que está acontecendo? — Disse recuando alguns passos apenas para evitar qualquer toque vindo dele. — Enfiou essa tesoura no cérebro, foi? Está falando comigo assim por quê?
Apenas ouviu uma risadinha irônica, que lhe dava ainda mais raiva além do tom de voz usado, tão agressivo e transbordando ódio. Não estava com medo, mas sim enfraquecida, sabia que se ouvisse tudo o que ele parecia querer dizer poderia fazer o mesmo de mais cedo, tinha consciência de que sua mente gritaria, imploraria tanto quanto seu coração e corpo para sentir a lâmina gelada da tesoura. Era fraca e manipulável, ainda mais naquele estado, portanto, evitaria o máximo para não ouvir o que ele tinha a dizer.
— Fale sério, Hayoung! Acha mesmo que eu vou passar a mão na sua cabeça, te confortar e dizer que vai ficar tudo bem? Tenho mesmo cara de homem que faz isso? — Voltou a se aproximar dela, apontando a tesoura para suas coxas. — Nunca vi tanto drama assim, mas já que começou, vamos terminar, não?
Ela entendeu. Percebeu a insinuação à morte que estava implícita naquela frase, ou estava louca. Não queria morrer, sabia disso, mas se perguntava também: se não é de meu desejo, por qual motivo coloquei uma lâmina afiada contra minha própria pele? Embora não tivesse tido coragem para cortar a parte que desejava, tinha feito parte de sua vontade; pensava que, assim, estaria um pouco mais perto da morte, embora quisesse ocultar isso para si mesma. Começou a se arrepender e querer voltar atrás, sentindo tanta culpa que poderia explodir.
— Mal sabia seu pai que faria um favor para você. Tão irônico, mas diminuiu minha sensação de culpa. — Conseguiu tocar a garota, no momento de distração dela. — Quero que você faça. — Passou a tesoura ainda fechada pelo pulso da garota, que nem ao menos se moveu.
— Meu pai? — Perguntou, seu raciocínio estava beirando o mais lento, a citação dele não fazia sentido para si.
— Dá trabalho conviver com você, cansa sabia? Então, ele decidiu acabar com você. — Colocou a tesoura no pescoço dela. — De qualquer jeito, você poderia fazer isso sozinha — puxa a mão dela, fazendo com que Hayoung segurasse a tesoura. — Não é? Mas eu não vou usar essa tesourinha aqui, tão inútil. — Puxa o canivete que estava guardado no bolso da calça. — Agora sim, vamos começar."
Yubin dessa vez estava sentada em uma cadeira, Hayoung continuou em cima da mesa de madeira enquanto observava a garota. Era apenas a segunda vez que contava sobre sua morte para uma recém chegada, estava nervosa e falava cada palavra com tamanha dor que não poderia explicar apenas com palavras.
— Você entendeu, não vou me prolongar, com certeza Haru está mais nervosa do que eu. — Disse apontando a porta com a cabeça. — Vai lá.
Haru andou até onde as duas estavam, pegando Yubin pela mão como todas as outras fizeram. Além dela, Saerok também estava na porta, mas esperava por Hayoung.
No quarto de Haru, havia uma pilha de cadeiras com um emaranhado de linhas vermelhas ao redor, tudo em cima de um pano branco. Ursos de pelúcia manchados de vermelho estavam por toda a parte do lugar, como se fizessem parte de uma decoração macabra.
— Foi exatamente aqui, nessa casa, onde tudo aconteceu.
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