Hashtag
Por Mariana Mello Sgambato para a antologia "Ridículas Cartas de Amor" em 2015.
## Hashtag ##
Por que a orientação sexual de uma pessoa é uma questão de identidade? Em alguns momentos de nossa vida, somos reduzidos simplesmente a: se preferimos sair com homens ou mulheres.
É como se o nosso caráter, as coisas que fazemos nas minúcias no dia a dia, quem enganamos ou deixamos de enganar, escolhas éticas ou até mesmo se matamos ou não matamos alguém, importasse menos do que com que pessoa nos deitamos.
Sabe o que parece? Tirar uma foto com o seu celular da moda e postar no Instagram. Tem aquelas hashtags que as pessoas usam para definir todas as coisas.
A preocupação não é se a vizinha dorme com um ex-presidiário recorrente ao crime ou com um homem já casado e com família. Se é homem, tudo bem. Se é mulher...
– Pura "#sem-vergonhice"! – meu pai esbraveja com o punho firme bradando ao ar.
Meu pai é um machista. Para ele, homens e mulheres possuem funções sociais distintas e se completam. As mulheres devem cuidar do lar, da família, administrar bem os gastos da casa e molhar as plantas. Toda mulher deve ser uma cozinheira de mão-cheia, uma costureira habilidosa e, sim, pode trabalhar, desde que seja bem-vestida, o que para ele quer dizer "não com roupas curtas demais". Para meu pai, aos homens são destinados o trabalho braçal, como trocar o chuveiro, abrir o pote de palmito com que minha mãe sempre trava uma batalha árdua e o chama na cozinha (único momento no qual ele pisa sem ser para pegar algo para beber ou comer, ou ainda, carregando a sacola de compras para ajudar minha mãe quando ela volta do supermercado, por sinal), fazer a maldita televisão funcionar e assistir ao jogo de futebol de domingo, é claro.
Mulheres podem sair com suas amigas, mas em hipótese alguma devem ir ao clube das mulheres. Salão de beleza é permitido, comprar bolsas e sapatos com o dinheiro que ela ganha trabalhando (e o dele, também). Minha mãe acha bom, se sente cheia de liberdade, não percebe que já entrou no esquema e, embora levante a bandeira e se diga feminista, não percebe que quando fala mal das roupas da vizinha, por serem curtas, ou quando a chama de "periguete", está sendo machista também.
Meu pai tiraria foto da vizinha e postaria com a hashtag #gostosa #masélesbica. Não sei se ele diz isso por pura frustação de ter suas cantadas de caminhoneiro recusadas antes mesmo de verbalizar ou porque a namorada dela é nova e com tudo em cima, enquanto ele tem uma pança de cerveja.
Solto um suspiro. Remexo na salada com kani. #Fome.
– Deixa ela, pai.
– Deixa ela, deixa ela? Não quero filho meu se assanhando com aquele bundão, não! – Minha mãe revira os olhos e pega o copo cheio de água, recostando as costas na cadeira.
Minha mãe é daquelas que comenta "que absurdo" quando vê fotos das meninas fazendo duckface e com a bunda empinada de frente pro espelho.
– Ou se assanhar, não é pra se apaixonar, não, moleque – meu pai corta o bife quase mugindo de tão vermelho no seu prato e não evita dar um sorriso de canto, daqueles que quer provar com orgulho que o filho é macho.
– Bem, ela é mesmo gostosa – dou uma garfada cheia de alface para calar minha boca.
Minha impressão é que meu pai ignora a verdade, como daquela vez que ele me pegou no meio de uma masturbação quando eu tinha doze anos.
#queVergonha
Minha mãe culpou os hormônios, meu pai saiu de casa por uns dias; Tudo porque eu estava com a página da revista errada: a foto de um cantor sem camisa.
Dias depois meu pai me chamou para me mostrar uma revista de mulher pelada e dizer que aquilo, sim, eu podia olhar. Não que eu não olhasse. Só não me masturbo mais no banheiro. #Aprendi.
Isso importa?
Aposto que sua #curiosidade é maior para saber se eu gosto de #meninos ou #meninas do que para saber que agora há pouco, quando fui comprar pão a pedido da minha mãe, recebi o troco errado na padaria e voltei para devolver alguns centavos.
Estão sempre me medindo: o cabelo está muito comprido? As roupas são muito coloridas? A calça tá muito apertada? Tênis dessa cor? A cor do lápis ou da caneta que eu uso para anotar a lousa no colégio? Será que usa lápis de olho? Ei, aquilo é batom ou ele beijou alguma?
Se eu fosse mulher, fariam as mesmas perguntas, mas seriam diferentes. Uma amiga minha é #heterossexual, mas prefere usar roupas de homens porque prefere o conforto a salto alto. O cabelo é curto, para se arrumar mais depressa e porque ela acha mais elegante. Ela gosta de andar de skate, porque chama atenção dos meninos, e ela beija todos. Mas teve uma vez que ela foi ao shopping com uma amiga comprar sutiã, porque seus peitos não paravam de crescer, e a vendedora a tratou mal, achando que ela e essa amiga eram namoradas. Ela chorou por dias, e eu nunca entendi se chorava por ter sido chamada de lésbica – e isso era uma ofensa – ou se, no fundo, ela era lésbica e tinha medo de assumir. Nunca vou saber a menos que ela mude o status no Facebook. Os pais dela a mudaram de escola. Perdemos contato.
Na época, pensei muito na vendedora da loja, vendo duas meninas entrando, sorridentes, conversando sobre um filme de ação que estava na moda e pensando "olha, lésbicas, vou tratar mal, humilhar, falar uns bons palavrões, acabar com o sorriso delas". Eu não sei o que se passava na cabeça da vendedora, mas não entendo por que ela achava que tinha de dizer alguma coisa. Quem perguntou a opinião dela? E daí que a religião dela não aceita esse tipo de coisa? Ela não é Deus para julgar.
Era o que eu pensava.
Agora apenas me calo. Como meu jantar, saio da mesa levando o prato para a pia, ajudo minha mãe na cozinha, limpando tudo e colocando no escorredor. Volto para meu quarto, pego a minha carteira e apareço na sala depois de borrifar muito perfume.
– Onde vai? - meu pai quer saber, curioso, sentado na mesa, repetindo o prato.
– Ao cinema. É sexta-feira. Vou sair com a Alana e o Leandro.
– Opa, manda um beijo para ela e os pais dela! Tão boas pessoas – minha mãe enche o peito de orgulho e abre um sorriso. – Vá, vá se divertir um pouco.
– Vai com Deus, meu filho – meu pai replica.
– Amém – bato a porta e chamo o elevador.
Enquanto espero, lembro que o irmão de um amigo meu tem uma namorada de mentirinha. Ele a leva para encontros do trabalho, apresenta em todas as festas para o chefe. A menina é bonita, e ele estava convencido que tinha recebido um aumento por causa disso. Meu amigo sabia que ele era #homossexual, que ia para boates gays nos fins de semana, mas nunca conversou com o irmão a respeito.
Eu tenho um tio que vai à missa, é muito devoto e participa de encontros, retiros, sabe a Bíblia de cor e salteado, sempre me diz para ir com ele, mas eu nunca vou. Nunca conversei com meu tio sobre porque ele não tem uma namorada e nunca se casou, mas escuta as músicas de Justin Bieber. Esse meu tio me ensinou a gostar de Prince e de Madonna, "a Diva" como um amigo meu, assumidamente homossexual, gosta de falar. Não, meu tio não é homossexual: ele apenas não encontrou o amor da vida dele. Eu acho. Não tenho muita certeza. Ele gosta de Abba. #DancingQueen.
Desço as escadas da recepção, saindo do prédio e atravesso toda a rua. O sol já se pôs, e a brisa da noite tem cheiro de maresia. Ando pelo Gonzaga, caminhando depressa, desviando de todas as pessoas que descem a serra na alta temporada. Para mim, é um inferno como a cidade fica cheia, falta água, os preços inflam, mas, por outro lado, é mais fácil misturar-se às pessoas, conhecer gente.
Assim que chego à porta do cinema, dou um sorriso. Subo as escadas.
– Oi, gato. Demorou – Leandro me abraça e me beija demoradamente na boca. As pessoas da fila nos olham feio.
– Pipoca passando! – Alana enfia um saco de pipocas doces entre nós e abrimos espaço para ela, afrouxando o abraço. Ela me beija com fervor e, depois, troca um beijo com Leandro.
Poupamos a fila de pessoas #curiosas, #horrorizadas, #chocadas de um beijo a três. Às vezes, eu posto alguma coisa no Instagram com a hashtag #poliamor.
Talvez saber que eu sou #bissexual responda algumas perguntas sobre mim. Saber que me deito na cama, com duas pessoas maravilhosas e íntegras que não fariam mal a uma mosca, responde outras.
Mas isso não dá a ninguém o direito de julgar o outro.
>> 1480 palavras
>> Fim.
Obrigada pela leitura! Espero que tenham gostado!
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