Segunda pétala (Assombrado)
De: J. <[email protected]>
Para: S. S. <[email protected]>
03:09 | 30 de Março, lua minguante.
Assunto: Preciso que saiba de algo.
Uma vez ela me disse que se eu soprar um cílio após fazer um pedido e ele não voar, há grandes chances dos meus desejos se tornarem realidade. Foi quase automático o modo como me lembrei disso hoje, quando me olhei no espelho no quarto do hotel e encarei meu reflexo no espelho da sala de prática, encontrando um bem ali, preso em minha bochecha. Sorri ao lembrar de sua altivez me explicando que cílios caídos são tão valiosos quanto estrelas cadentes, que nunca deveríamos desperdiçar a chance de fazer um pedido por mais estúpido que isso parecesse, e talvez ela nunca saiba disso, mas os meus pedidos sempre foram sobre ela.
Enquanto buscava a chave guardada em um dos bolsos do casaco, empurrando a porta com o ombro livre, Bam riscou as patas contra a madeira, o mesmo som que o Berry feliz que conhecia, costumava fazer quando eu voltava para casa. Me diga, o Berry gosta de você?
Me lembrei daquela noite, na véspera do meu aniversário de vinte e dois anos, quando tentava levar a quantidade de bolsas que havia trazido comigo, os remédios que havia comprado na farmácia, a sopa e algumas flores, passando pela sala onde ele se espreguiçava antes de voltar à posição inicial e adormecer novamente.
Os seus chinelos estavam abandonados ali, por baixo dos meus, no mesmo lugar onde havia deixado antes de subir as escadas, o tom de lilás deles se destacava até mesmo na meia-luz da sala, uma pista de sua velha mania de andar descalça pela casa até no Inverno, provavelmente calçando meias somente porque eu mesmo tive que colocá-las.
A névoa quase imperceptível da água fervida na chaleira sobrepondo à cozinha, o barulho me alertando antes que acabasse esquecendo que havia ligado o fogo poucos minutos atrás, antes de cruzar a rua para comprar todos os medicamente receitados para tentar amenizar o resfriado que ela tinha pego na mudança brusca de temperatura.
Despejei a água quente sob a xícara de porcelana delicada na pia, antes de mergulhar o chá e assistir o redemoinho se formar fazendo a colher rodopiar lentamente. Tudo dentro daquele espaço era tão familiar que podia jurar que ficaria ali para sempre, fazendo parte da rotina, conhecendo cada detalhe como se nada daquilo pudesse ter fim; cada pequena parte do que existe ali também era minha: desde a mobília até as memórias que criamos juntos. E ela. Principalmente ela.
Havia chegado somente há alguns dias, aproveitando as férias do trabalho para passar aquela semana com noona. Quando voltei de Busan, passaríamos meu aniversário juntos e alguns dias em qualquer outro lugar que não envolvesse aquelas quatro paredes, não que as ideias que tivessem passado pela minha cabeça naqueles dias de distância não envolvessem nós dois e qualquer lugar daquele apartamento, mas há meses vínhamos planejando aquela viagem pelo interior do Japão como uma maneira de escapar de nossa rotina estressante.
Ela escolheu tudo com tanto cuidado. Um hotel simples e charmoso, com pessoas confiáveis, nos confins de um lugar onde não correríamos risco algum. Você deve saber disso, do quanto ela pensa nos detalhes, do quanto precisa que tudo tenha um significado, que todos estejam bem.
Subi os degraus e encontrei-a no meio da camada de cobertores e casacos onde havia deixado quinze minutos atrás, só conseguia ver seus olhos pesados, e ainda concentrados, em algum episódio aleatório de Brooklyn Nine-Nine no meio do amontoado de tecidos.
Tudo estava definitivamente longe do que calculei, me senti idiota por ter trazido tantos medicamentos para uma única pessoa, talvez o dobro do que o médico havia receitado. Se você me perguntasse que flores eram aquelas, provavelmente não saberia responder, mas penso que talvez a fizesse se sentir melhor. Nunca havia cuidado de ninguém na minha vida inteira. Eu que sempre ocupei o lugar de quem é cuidado. O Maknae. O fofo. Me senti na obrigação de protegê-la, de alguma forma ela me despertava esse instinto que me quebrava inteiro, exigia tanto do meu lado menos forte. Nunca fui muito emocionalmente maduro, na maioria das vezes agia como um grande babaca quando era contrariado, quando tinha dificuldades em entender meus próprios sentimentos, como se o mundo inteiro tivesse uma certa responsabilidade sobre mim. Eu odiava a vulnerabilidade e me sentia fraco. Foi ela que me ensinou que essa, entre todas as outras, era a minha parte mais valiosa.
"Flores!"
Ela sorriu pela primeira vez, esticando os braços para fora do pequeno casulo de cobertas e me alcançando, puxando-me para perto junto com as flores.
"Comprei seus remédios também."
Eu disse, com um tom de voz um pouco mais baixo do que pretendia quando me aproximei do corpo dela na cama; Ela parecia tão frágil que tinha medo de machucá-la se ultrapassasse a linha da delicadeza, parecia que seria capaz de desfazê-la como um sonho. Até mesmo no meio de nossa intensidade, quando nossos sentidos falavam mais alto do que o nosso senso de autocontrole, temia ir além do que ela pedia.
"Se você ficar pertinho de mim, prometo que melhoro rápido..."
Ela falou, envolvendo os braços ao redor de minha nuca quando estiquei meu corpo na cama sem conseguir alcançá-la completamente no meio da camada de lençóis. Se pudesse, nunca mais iria embora, passaria o resto dos meus dias ao lado dela no meio daquelas cobertas, eu pensava. Esqueceria quem eu era e seria seu. Mas a vida sempre nos cobrava muito além do que podíamos oferecer e mesmo que aquele pensamento me rodeasse durante os nossos dias juntos com uma súbita vontade de viver, eu queria amar. Amar tudo. Amá-la. Amar a minha vida. Nossa casa. O futuro que planejaríamos como qualquer casal. Onde iríamos viver, o nome dos nossos filhos, como iríamos envelhecer. Mas sabia que ela era altruísta demais para aceitar que eu abrisse mão de tudo. E eu, egoísta o suficiente para colocar tudo a perder.
"Você está tão febril..." Murmurei contra seu rosto. "Acho melhor checar sua temperatura outra vez." Minha mão pousou em sua testa por um segundo e seus olhos até então fechados, se abriram lentamente quando me movi para buscar o termômetro na mesa de cabeceira.
"Estou bem, sério. Me sinto até melhor..."
Ela respondeu de imediato, quando posicionei o pequeno aparelho por debaixo da camada de tecidos que vestia. Se a febre não tivesse diminuído com os remédios nas últimas duas horas, partiríamos para a segunda opção: um banho morno para estabilizar a temperatura. Por mais que se tratasse de ordens médicas, ela havia basicamente me implorado no caminho de volta para casa, após nossa breve visita ao hospital, de que tinha certeza que os remédios dariam conta da situação e que aquela opção deveria ser descartada de imediato, mas não precisou sequer dizer uma palavra para que soubesse o que aconteceria em seguida.
Ela reclamou, enquanto se removia a camada de cobertores ao seu redor, puxando-a para fora, no fundo eu sabia que me odiaria por aquilo, mas estava mais preocupado em fazê-lo. Caminhando pelo quarto enquanto ela continuava reclamando, e eu, abria suas gavetas, escolhendo peças de roupas limpas para deixá-las separadas na cama antes de removê-las do seu pequeno ninho de moletons.
"Eu prometo que vai ser rápido..."
Eu disse, tirando as peças de roupa com cuidado, uma a uma. Primeiro o moletom grosso que cobria toda a camada de tecidos em que ela estava afogada, em seguida sua cota de casacos e as malhas que estava usando por baixo deles desde que havíamos chegado da consulta, suas meias vieram logo depois, e por último a calça de pijama com estampas minúsculas de cenouras que havia trazido para ela na última visita.
Ela se encolheu quando desci sua calcinha pelas pernas, envolvendo as mãos ao redor do próprio corpo pelo contato com a temperatura ambiente.
Entramos no banheiro minúsculo. Eu logo atrás dela. Lembro que seu cabelo estava emaranhado no topo de uma maneira engraçada, não consegui evitar de tocar a parte desgrenhada quando entramos no espaço do box e ela me olhou, brava, enquanto eu ajustava a temperatura da água: "É errado rir de uma pessoa doente, sabia?" ela disse e eu gargalhei.
Contei até três antes de pegá-la no colo, entrando no chuveiro e posicioná-la bem abaixo dele.
A verdade era que estava rendido, completamente moldado pelo que sentia por aquela mulher. Talvez se alguém tivesse me dito, anos atrás, que seria desse jeito, provavelmente não acreditaria em uma palavra. Rá. Eu? Apaixonado? Que piada! E eu me sinto patético agora, deitado aqui, enquanto observo as luzes coloridas no teto do meu quarto e te escrevendo e-mails sobre a minha história de amor, enquanto você terá uma parte que costumava ser só dela.
Minhas mãos deslizando pela rota já feita tantas outras vezes, tocaram seus cabelos molhados para afastá-los dos seus ombros, quando ela se esticou para envolver os braços ao meu redor, apoiando a cabeça contra meu peito, molhando a roupa inteira que eu estava usando.
Os lábios dela adquiriram um tom arroxeado quando estávamos de volta ao quarto. Fechei as janelas deixando pequenas poças e pegadas marcadas ao meu redor. E ela, encolhida na cama, segurando a toalha firme próximo ao corpo como uma cota de malha que a protegia do frio.
"Eu posso?"
Perguntei, antes de tocar nas peças de roupas pré-escolhidas para ajudá-la a se vestir. "Uhum", ela respondeu ficando de pé entre minhas coxas, quando me sentei. Cuidadosamente afastei a toalha antes de vestir peça por peça novamente, seus dedos trilhando, outra vez, um caminho pelos meus cabelos, completamente úmidos, puxando-os para trás delicadamente. Tudo nela sempre foi tão dócil e intenso. E era quase instintiva a maneira como respondia ao meu toque.
"Faltam poucos minutos para a meia-noite, acho que arruinei seu aniversário, não é?"
Ela sussurrou, segurando meu rosto entre suas mãos pequenas quando terminei de fechar os botões do seu pijama, me incentivando a olhá-la.
"Desculpe!"
Toquei uma de suas coxas a instigando a dar um passo à frente e abracei inteira, apoiando a orelha contra seu peito. E me perguntei como ela poderia ao menos pensar que teria arruinado alguma coisa? Ela era minha morada. Minha casa inteiramente em uma pessoa. Diferentemente dos quartos com portas numeradas em hotéis luxuosos, de tudo que já chamei de lar, ali, naqueles braços, eu estava à salvo. Ficaria para sempre se me permitisse, se a vida fosse um pouco mais fácil, simples.
E às vezes, quando o álcool fala mais alto, quando você deve estar me achando um grande de um cuzão por te escrever tudo isso, mas eu precisava encontrar um modo de falar o que estava lacerando a minha garganta. Essa memória me assombra. É justamente ela, todas as vezes.
Ela, sob as mesmas luzes que vejo agora, sendo minha. Quando podia beijar sua boca, despi-la e olhá-la nos olhos para procurar amor. E tudo parecia tão certo.
Outro dia, vi as fotos que você postou naquela rede social. Você e ela. Sorridentes. Acho que nunca a vi ser tão feliz assim. Sorrindo tanto. Os registros estavam lá, como provas de felicidade. Os encontros. Bebidas compartilhadas. Os livros que leram juntos. Você deve ser um cara inteligente, do tipo que entende as coisas cultas que ela fala ou que compartilha a excitação de encontrar uma edição rara de um livro em um velho sebo na cidade, que entende o mundo que ela vive e pode participar dele.
Eu o odeio na mesma proporção que o invejo, Sota-San. O que eu não daria para ser você, que vai poder fazê-la tão feliz, e chamá-la de esposa e dar filhos a ela, que por sorte sua, serão lindos, inteligentes e amáveis como a noona?!
Eu morro um pouco a cada vez que penso que é sua maldita voz que ela vai ouvir todos os eu-te-amos que nunca mais darei, ou receber todos os beijos cheios de paixão, ou qualquer outra cena que não quero pensar agora, porque seria cruel demais viver assim, sabendo que posso ter tudo, menos o que tanto quero.
E caralho. Ela é a única que eu quero.
Continuarei mentindo para mim mesmo, e buscando um pouco dela em outros corações e me esforçando para engolir o mundo na tentativa de saciar a minha fome, ocupando esse espaço que ela deixou aqui. O que me faz feliz é saber que essa parte dela, que foi minha, nunca poderá ser tirada de mim. Serei assombrado por essa versão para sempre, Sota-San. Esse será o meu castigo. E sei que será inútil, como tudo que tento, e que em algum momento aprenderei a seguir em frente, eu a verei feliz e isso será o bastante para mim e essas palavras que te disse já não significarão mais nada.
Eu te desejo felicidade, acima de tudo, que possa cuidá-la, amá-la e protegê-la com tudo que ela merece.
Mas espero que saiba que a cada cílio soprado, com valor de estrela cadente, eu continuarei a desejá-la.
— Atenciosamente, J.
—
N/A: Será que esse e-mail vai dar confusão? Hummmmm!
Gente, esse JK debochado a gente não tá acostumado, não! HAHA.
O que vocês acham que vai rolar agora? Será que ela vai ver esse e-mail?
Até qualquer dia.
— Com amor, Sô.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro