SÔNIA
Padre Mário entrou na loja pela primeira vez em 10 de junho de 74 e até hoje não entendia exatamente porque fizera aquilo.
Teria sido o destino? Estariam ele e toda a cidade destinados à maldição?
Ele estava passando pela loja e simplesmente resolvera entrar.
A porta era de vidro e havia uma plaqueta dizendo ABERTO. O nome da loja estava estampado na vitrine que exibia livros, amuletos, apanhadores de sonho e duendes feitos de gesso: ROSA MÍSTICA.
Mário empurrou a porta e entrou.
Havia um forte cheiro de incenso no ar. O interior da loja era levemente obscuro. Ele pensou naquela coisa de bruxas. Talvez Sônia fosse realmente uma bruxa como diziam as mulheres da cidade, ao menos a loja parecia a alcova de uma bruxa.
Ele ponderou se a mulher vendia alguma daquelas coisas. Quem em Santo Antonio iria comprar coisas daquele tipo? As irmãs que se alto denominavam santas? Era hilário!
Talvez fosse uma coleção, objetos que estavam ali simplesmente para serem expostos, o que era improvável. Por que alguém abriria uma loja para expor produtos sem interesse de vende-los?
Mário ficou olhando para as coisas. Havia duendes, gnomos, fadas, estátuas de bruxas montadas em vassouras, bolas de cristal, pirâmides de cristal, apanhadores de sonho, amuletos e plantas como arruda, guiné, e espadas de São Jorge.
Ele sentiu um calafrio diante de tudo aquilo e chegou a se benzer.
Então ouviu a voz atrás de si:
- Posso ajudá-lo em algo, padre?
Ele olhou para trás e constatou que o que diziam era verdade. A mulher era linda. Era a mulher mais linda que ele já tinha visto em toda a sua vida.Era uma beleza surreal. Parecia que ele estava diante de uma deusa, e aquilo não era nenhum exagero.
Primeiro ele ficou sem jeito, não sabia o que fazer ou o que falar. Suas faces ruborizaram-se. Ele tentava mas não conseguia disfarçar o seu nervosismo.
- Eu... é... eu estava passando...e... e resolvi entrar...
- Veio ver se eu sou mesmo uma bruxa?
Ele ficou olhando para ela surpreso por alguns instantes. Em tão pouco tempo na cidade ela já devia estar farta dos comentários que circulavam.
- Como? - indagou ele.
- É o que todos na cidade dizem, que eu sou uma bruxa.
- É... e você é?
- O que o senhor acha?
Padre Mário hesitou, olhou à sua volta e então respondeu:
- É claro que não.
E essa era uma resposta sincera.
Sônia sorriu.
Deus! Como era linda!
- Talvez o senhor queira que eu leia a sua sorte.
Foi a vez de Mário sorrir.
- Eu... eu não acredito nessas coisas. Minha sorte é Jesus.
Sônia ficou olhando para ele por alguns instantes. Era um olhar penetrante, intenso.
Ele desviou o olhar e viu uma mesa em um canto, sobre ela uma bola de cristal.
- Então você pode ver o futuro?
- Só bruxas podem ver o futuro padre.
- Então, o que você faz aqui?
- Digo às pessoas o que elas querem ouvir, e também vendo algumas coisas.
- Então você mexe com magia.
- Tudo é magia seu padre.
- Então você é mesmo uma bruxa?
Era uma pergunta ofensiva, ele sabia, mas não pode evitar.
- É o que o senhor acha?
- É o que as pessoas estão dizendo.
- As pessoas por aqui dizem muitas coisas.
E ela tinha razão, as pessoas por ali eram uma corja com peçonha na língua.
- É. Eu sei. É uma cidade pequena. Sabe como são as coisas em lugares assim.
- É. Eu sei. E o senhor?
- O que tem eu?
- Como um homem tão jovem vira padre e vem parar em um lugar como esse? Não é desilusão, é? O senhor perdeu alguém padre?
Mário levou um susto e arregalou os olhos. Ele tinha perdido. Há dez anos atrás era um homem comum, um jovem que encontrara o amor de sua vida, uma garota linda de 19 anos chamada Ivone. Os dois se casaram, estavam felizes e pretendiam ter filhos. Mas a felicidade durou menos de um ano, Ivone morreu vítima de um câncer devastador.
O mundo pareceu desmoronar para Mário.
Um ano depois ele entrou para o seminário, e aos trinta anos, idade que tinha ao entrar pela primeira vez na loja de Sônia era o pároco de Santo Antonio, onde ficaria por vários anos.
Mas ele ainda não acreditava que aquela linda e jovem mulher pudesse ser uma bruxa. Aquilo fora apenas uma dedução, era o que ele achava.
- O senhor perdeu. - Continuou Sônia. - Foi sua mulher. O senhor já foi casado padre?
Mário engasgou. Ficou embaraçado e sentiu vontade de sair correndo. Se tivesse saído quem sabe as coisas poderiam ter sido diferentes. Às vezes a melhor saída era correr.
Mas ele não correu.
- É... eu... fui...
- E ela morreu.
- É... morreu.
- Eu sinto muito.
Mário não soube o que dizer. Ele nunca falara sobre aquilo com ninguém. Durante todos aqueles anos evitara o assunto, muitas feridas ainda não estavam cicatrizadas algumas feridas não cicatrizavam nunca. Ele sentia vontade de chorar, abraçar aquela mulher e chorar com a cabeça encostada em seu ombro, deixar que as mágoas partissem seu coração sem que houvesse cura.
Sônia sorriu.
- Desculpe a minha impertinência. Sou uma boba às vezes.
- Não tem importância.
Mas tinha. Tinha muita importância.
Ele suspirou e tratou de mudar de assunto:
- E então, pretendem ficar aqui muito tempo?
Sônia sorriu mostrando os dentes perfeitamente brancos.
- Eu acho que para sempre. As mulheres da cidade vão ter que se acostumar comigo, ou se mudarem. Gostaria de um café padre?
- Oh sim, obrigado.
Café era uma coisa que ele difícilmente recusava. Se tomar café fosse pecado, ele iria diretamente para o inferno.
Sônia foi até os fundos da loja, passou por uma porta oculta por uma cortina feita de conchas e desapareceu.
Mário perguntou, sentindo-se pouco à vontade:
- E seu marido?
Sônia respondeu lá de trás da cortina:
- Ele está animado.
Ela voltou com uma xícara de café e um pote de açucar e os depositou sobre o balcão.
- Aqui está.
Mário sorriu.
- Obrigado.
Ele colocou duas colheres de açucar no café e começou a tomar.
- Seu marido é artista? - Perguntou.
- É ventríloquo. Ele tem uma pequena fábrica onde faz os próprios bonecos.
- Que legal!
- Ele está pretendendo montar uma companhia de teatro aqui na cidade.
- Nunca tivemos algo assim por aqui.
- É inovador, não é? As pessoas estranham.
Ele pensou em dizer à ela que as pessoas estranhavam o fato dela sair transando com a metade dos homens da cidade, mas não o disse, porque gostava dela, por algum motivo ele gostava dela. Além disso ele sabia que aquilo não passava de boatos inventados pelas bruxas da diocése na tentativa de denegrir a imagem daquela linda e inocente mulher.
- Eu acho que eles acabarão se acostumando. - Disse ele.
Mais uma vez Sônia pareceu adivinhar seus pensamentos:
- Sabe padre, andam dizendo que eu estou transando com todos os homens da cidade.
Mário engasgou com o café e tossiu. Ela o ignorou e continuou:
- Mas não é verdade. O fato dos homens virem até aqui não significa que eu estou transando com eles.
- Não... é claro que não...
- Eu não sou uma puta, padre! Não sou esse tipo de mulher!
Mário a fitou. O que viu o surpreendeu: era a verdade nua e crua. Ele fora ali esperando comprovar o que as pessoas diziam, que ela era uma bruxa, uma puta devassa que trepava até com a própria sombra, mas o que via era uma moça linda, cheia de vida e que parecia muito sincera. Ele gostara dela logo de cara, era como se a conhecesse a um longo tempo.
- Eu... eu tenho certeza de que não... minha filha. - Disse ele, e aquilo soou estranho, porque ele tinha 30 anos, e ela parecia ser só dez anos mais nova.
Mário percebeu uma lágrima escorrer no olho dela. Ela a enxugou com o dedo e sorriu.
- Não quero confusão com ninguém, o senhor entende? Só quero viver a minha vida. Para mim seria melhor se os homens não viessem aqui, mas não posso barrar os clientes.
- É claro que não.
Quando se deu conta Mário estava segurando as mãos dela.
- Não ligue para o que as pessoas dizem. Deixe que eles falem.
Sônia sorriu e Mário soltou suas mãos.
- Mais cedo ou mais tarde eles vão se cansar e parar de falar. Pode ser até que alguns deles se tornem seus clientes.
- Seria hilário, mas não acho que isso aconteça padre.
Mário suspirou.
- O café estava ótimo, mas... eu preciso ir.
- É tão cedo! Apareça mais vezes padre. Foi ótimo conversar com o senhor.
Então Sônia o surpreendeu com um abraço e aquilo foi algo que Mário nunca mais conseguiu esquecer. E era algo que aumentava a sua culpa, fazia a coisa doer de uma maneira terrível dentro de seu peito.
Ele sentiu o cheiro dela, e era o cheiro mais delicioso que ele já sentira em toda a sua vida. Era um cheiro maravilhoso, um cheiro que faria qualquer homem desejá-la, e, por Deus, ele era homem. Um homem que só usava uma batina por causa de uma desilusão.
Naquele momento Mário descobriu que não era um padre. Ele era apenas um homem se escondendo. Escondia-se atrás de uma batina; escondia-se porque não tinha coragem de enfrentar seu tenebroso passado. Mal sabia ele que passaria o restante de sua vida se escondendo atrás daquela mesma batina.
Sônia se afastou e sorriu, e Mário podia jurar que havia algo mais naquele sorriso, algo como uma hipnótica atração. Ele sentiu que era a hora de sair dali.
- Bem... já vou indo. Tenha um bom dia.
- O senhor também. Apareça outras vezes.
E Mário apareceu. Apareceu muitas vezes.
††††††††††
Padre Mário possuiu Sônia na próxima vez que a viu.
Não se lembrava ao certo o que o levara a passar na loja. Talvez tivesse sido o desejo. O desejo incontrolável que um homem sentia por uma mulher. E Mário a amava. Era uma constatação que ele fizera desde o primeiro dia em que a vira.
Naquele dia ele soube que não podia sustentar mais a batina, não podia continuar escondido por mais tempo.
Hoje, quando pensava naquilo, não podia imaginar o que o levara a fraquejar naquela noite quando a vira amarrada à fogueira, quando ela implorava pela vida e dizia que o amava, pedindo desesperadamente que ele assumisse seu amor.
Ele fraquejara, fora um frouxo, o mais cruel e miserável de todos os homens. Ele era culpado, o único que merecia o peso da maldição que cairia sobre a cidade.
Quando chegou na loja, três meses após ter entrado pela primeira vez, a placa dizia fechada, mas por algum motivo ele sabia que ela o esperava.
Ele empurrou a porta e entrou. A primeira coisa que notou foi o ar soturno que dominava a loja.
Tudo estava mergulhado na penumbra. O cheiro de incenso que ele sentira quando entrara ali pela primeira vez agora estava mais forte do que nunca, era quase sufocante.
Sônia estava sentada à mesa que ficava no canto, a mesa com a bola de cristal. Ela estava imersa nas sombras, e vê-la daquela maneira lhe deu calafrios. Quando ela falou, sua voz soou estranhamente amorfa, como se ela falasse de dentro de uma caixa:
- Entre padre, e sente-se. Eu sei porque veio. Veio para que eu leia sua sorte.
Por mais incrível que pudesse parecer, aquele era um dos motivos pelos quais ele estava ali. Queria que ela lesse sua sorte, visse seu futuro dentro da bola, e queria que ela estivesse dentro daquele futuro. Queria que ela estivesse para sempre em seu futuro. Não era um pensamento adequado para um homem que era um padre, mas isso pouco importava, porque depois daquilo ele nunca mais seria um padre. Era o que ele pensava, o que era para ser, mas não foi o que aconteceu.
- É... sim.
- Pois sente-se.
Mário aproximou-se cautelosamente, puxou a cadeira e sentou-se.
Parte dele queria sair correndo, fugir dali, se derramar diante do altar na igreja e passar o dia rezando, pedindo perdão por seus pecados. Se ele tivesse feito aquilo, haveria salvação para a sua alma, e para a alma de todos na cidade. Mas ele resolvera ficar, ele queria ficar. Era o que ele mais queria naquele momento, e o que acontecera depois, o que ia acontecer agora, era consequência de suas escolhas.
Sônia passou as mãos sobre a bola de cristal no centro da mesa e um brilho espectral acendeu-se nela. Mário ficou surpreso, seus olhos arregalaram-se e ele sentiu um arrepio estranho.
Talvez as pessoas tivessem razão, talvez ela fosse mesmo o que as pessoas diziam que ela era: Uma bruxa, uma serva do demônio. E aquilo era um embuste para levar sua alma para o inferno.
Era um pensamento ridículo, mas agora, quando pensava naquilo, percebia que era a mais pura verdade.
- Me dê a sua mão padre.
Sônia segurou sua mão direita, a mão dela estava tão gelada quanto as mãos de um cadáver, e ele estremeceu.
- O que... o que está acontecendo? - Perguntou ele.
Sônia fez sinal de silêncio.
Seus olhos pareceram arregalar-se. O brilho da bola refletiu no rosto dela e lhe conferiu um aspecto macabro, estranho.
- Eu estou vendo! - Disse Sônia eufórica. - Eu estou vendo padre!
- O que você vê Sônia?
- Vejo o seu caminho padre, e ele não é plano.
" Vejo o passado, mas não nos interessa. "
Ela passou a mão sobre a bola e sorriu.
Mas então o sorriso desapareceu em seu rosto, e o que apareceu foi uma expressão aturdida.
Ela olhou para Mário, os olhos arregalados, era uma expressão de quem parecia à beira do pânico.
- Não sou eu Mário! - Exclamou ela. - Eu juro!
- O que?! O que você vê Sônia?!
Ela passou a mão sobre a bola e o sorriso voltou a iluminar seu rosto.
- Vejo que você está com uma ereção, e seu pensamento é: Deus! Como ela cheira bem. Será que... - Ela inclinou o corpo para a frente e disse quase num sussurro:- Será que a buceta dela também cheira bem?
Mário arregalou os olhos. Não era bem aquilo que ele estava pensando, mas era quase, e sim, ele estava com uma ereção dos diabos.
Ela se levantou e veio caminhando majestosamente em sua direção.O coração de Mário disparava no peito e ele estava suando.
Sônia colocou a mão em seu ombro e ele quase chegou ao orgasmo.
Ele estremeceu, o cérebro ordenou ao corpo que agarrasse aquela mulher maravilhosa e a possuísse em cima daquela mesa, mas ele apenas tremia. Ele estava à ponto de perder o controle.
Ela se inclinou e sussurrou em seu ouvido esquerdo:
- Quer descobrir se a minha vagina cheira bem, padre?
Mário olhou para ela. Seu olhar era lindo, quase hipnotizante.
- Não me chame de padre. - Disse ele e a agarrou.
Os dois se engalfinharam em fervorosos beijos. Em questão de segundos suas roupas estavam no chão. Ele a ergueu no colo e a colocou sobre a mesa.
Se entrasse alguém na loja naquele momento, os dois seriam descobertos.
Mas agora nada importava.
Mário transou com Sônia em cima da mesa e o móvel antigo rangia sob o peso dos dois. Era a primeira vez que possuía uma mulher desde que Ivone morrera.
Era algo que ele pensou que nunca mais iria fazer, mas fez e foi a melhor coisa do mundo. Foi mágico, e ali, na esfera daquela loja, foi místico.
Eles fizeram várias vezes, um orgasmo atrás do outro, e quando não aguentaram mais caíram sobre a mesa banhados de suor, e ali ficaram por vários minutos em silêncio.
Mário experimentava a sensação do pós violação dos votos de castidade a qual jurara obedecer quando fora ordenado padre há quatro anos, e descobriu, surpreso que não havia culpa, remorso ou arrependimento, mas sim satisfação e... e amor.
Mário dos Santos amava Sônia, mas ela era casada e ele sabia que estava com problemas.
Eles não podiam ficar ali para sempre, tinham que sair e seguir com suas vidas e ele precisava decidir o que fazer, e ele deduziu que a coisa mais sensata a fazer seria entregar o cargo de padre.
Até hoje ele não entendia porque não fizera aquilo, porque continuou celebrando as missas mesmo sabendo que amava uma mulher, mesmo passando a frequentar assiduamente a loja nos finais da tarde e despertando a curiosidade das pessoas.
No fundo ele achava que Georgina e sua trupe de bruxas sabia o que se passava lá. Ela sabia e usou contra ele na noite em que a fogueira foi acesa.
Talvez tenha sido um dos motivos para ele ter fraquejado daquela maneira tão desgraçada.
Mário transou muitas vezes com Sônia num período de oito meses. Até abril de 75, meses antes da terrível noite da fogueira.
Até o dia em que encontrou José Augusto da Silva, o marido de Sônia. O homem a quem chamavam de o ventríloquo.
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