PADRE MÁRIO - 1
Suas mãos estavam tremendo e ele suava frio. Podia sentir a coisa no ar. Era uma sensação que assemelhava-se à aflição da morte. Havia um peso macabro sobre a cidade. O ar estava rarefeito. Era difícil respirar.
Padre Mário já tinha sofrido um infarto aos quarenta anos de idade. O que estava sentindo agora era mais ou menos parecido, só que um pouco pior. Era uma sensação indescritível e terrível, a pior que alguém poderia sentir.
Havia um calor descomunal, era como estar no inferno. Padre Mário podia ver as chamas. Almas penadas queimavam dentro delas e gritavam. Seus gritos enchiam sua mente e não havia nada que ele pudesse fazer para parar de ouvi-los.
Em breve, toda a cidade gritaria; ele mesmo gritaria, assim como ela tinha gritado naquela noite pedindo desesperadamente por piedade, apelando para o amor que ele sentia por ela. Um amor que ele tinha certeza de sentir, mas que não quisera assumir, por um motivo que nem mesmo ele conseguia entender.
Agora, ele sentia o calor dela, mas não era mais amor, e sim vingança e ódio.
Padre Mário estava suando por baixo da batina e mal podia respirar. Ele tinha conhecimento de que estava celebrando a missa matinal e seu único conforto era ver que a igreja estava praticamente vazia, algumas poucas pessoas estavam espalhadas pela nave da igreja, que esvaziara-se nos últimos meses, talvez por causa do teor apocalíptico de seus sermões. Ultimamente, ele só pregava sobre o juízo, sobre maldições e sobre o mal que vinha do fogo do inferno e que cairia sobre a cidade. O sermão que ele tinha preparado para hoje não era diferente, falava sobre (Kaliban)
a besta que surgiria do fogo maligno.
Ele tentava evitar aqueles sermões, mas era impossível, tinha que alertá-los, precisava avisá-los que o mal estava chegando e que era necessário se arrepender dos pecados para não queimar eternamente no fogo do inferno. Ele precisava abrir os olhos do povo para a realidade do mal, e para a seriedade do que haviam feito no passado.
A fogueira.
Mas muitos não queriam ouvir. Alguns questionavam se já não estava na hora de trocar o pároco. Vinte e oito anos parecia um tempo demasiadamente longo.
Eles não queriam ouvir e simplesmente esvaziaram a igreja, e aqueles que ficaram estavam a um passo de caírem fora.
Ele ficou pensando se alguém percebia o que estava acontecendo. Achava que não. Não havia ninguém sentado na frente, a pessoa mais perto era uma velha gorda que estava sentada na terceira fileira de bancos e que provavelmente aguardava um motivo para dar o fora da igreja e nunca mais voltar, e naquela manhã ela teria o seu motivo. Depois daquilo, todos teriam um motivo.
O que padre Mário estava sentindo era a aproximação do mal, e era um mal tão maligno que invadia até mesmo um lugar sagrado como a igreja. Não havia barreiras para um mal que fora criado por eles próprios, um mal cujo único responsável era ele. Era o que acontecia quando o amor se tornava ódio. E aquele terror já estava ali, ele podia senti-lo.
Ele olhou para as imagens que ficavam nos pilares e nas paredes e viu que todas estavam sorrindo para ele de forma zombeteira, seus olhos eram malignos, os olhos do demônio. As pinturas no teto, que haviam sido restauradas recentemente e retratavam imagens sacras, agora mostravam almas queimando no inferno e gritando em desespero enquanto queimavam, e padre Mário podia ouvir aqueles gritos terríveis. Pior: ele podia sentir o cheiro da carne humana queimando, e aquele cheiro lhe causava náuseas. E para piorar a situação, aquele era o único cheiro que ele vinha sentindo há meses.
Os vitrais, onde antes podia-se ver imagens de santos, mostravam agora demônios e bestas. Eram os pequenos demônios criados pelo homem que, durante muito tempo, ficou conhecido como o ventríloquo, seres do mal que se alimentavam de almas humanas e de escuridão. Era o mal que durante muito tempo estivera adormecido, mas que agora estava eclodindo, pronto para sair de seu casulo macabro e devorar a cidade como um câncer devastador.
Padre Mário sempre acreditara na maldição, desde quando ela saíra daqueles lábios, lábios cujo gosto ele havia sentido várias vezes. Quando aquilo acontecera, ele sentira o fogo do mal sendo aceso e se arrependeu profundamente de sua escolha, sabendo, porém, que já era tarde. Não havia mais volta. Escolhas eram assim, você só podia fazer uma vez, restando depois sofrer as consequências.
No dia em que a fogueira que matou Sônia da Silva foi acesa, a cidade morreu, e só havia um responsável, um homem que durante todos aqueles anos se escondera por trás de uma batina, um covarde miserável, que não fora capaz de assumir o seu amor. Sim, porque ele a amava, ela tinha sido o único amor que ele já havia tido em toda a sua vida. Um amor ainda maior do que sentia por Ivone, a mulher com quem se casara aos vinte anos, em 1964.
A maior parte das pessoas que viviam naquela cidade amaldiçoada desconhecia a história, não sabiam da verdade, tinham-na como uma lenda, porque foi assim que eles resolveram lidar com a coisa. Preferiram ocultar a coisa, transformar a verdade em lenda e ensinar às gerações futuras a coisa como tal.
Mas não era uma lenda e muito menos um sonho. Fora tão real quanto o fato da cidade existir, e havia pessoas que, como ele, sabiam da verdade, pessoas que estavam vivendo o mesmo terror que ele vivia.
E se fora real o que se passou há vinte e cinco anos atrás, era também real a maldição.
— A partir de hoje, vocês são malditos! Todos vocês! Vinte e cinco anos é o tempo que vocês terão para lamentarem o seu pecado! Então eu virei, eu ressurgirei das cinzas e acenderei um fogo que os consumirá para sempre.
O mal fora vaticinado e era real, e pairava sobre a cidade, infectando o ar. O único responsável era ele mesmo. Só ele merecia as consequências daquele ato, porque fora um fraco e permitira uma loucura, uma loucura que deveria ter sido impedida.
Agora, a maldição cairia sobre todos, mas ele era o único merecedor. Ele condenara toda uma cidade por causa de sua frouxidão, por não fazer o que devia ser feito. Ele deveria ter rasgado a batina, atirado fora a Bíblia e gritado que ele a amava, que ele a tinha possuído diversas vezes em sua loja, deveria ter tentado salvá-la, ou, quem sabe, ter sido queimado junto com ela. A fogueira teria sido sua redenção, um melhor caminho. Mas o que ele fizera foi se aproximar dela e lhe dar a extrema unção, condenando sua alma e, consequentemente, a alma de todos ao inferno.
Ele fora um fraco, um covarde, deixara-se influenciar por aquela corja de mulheres chefiada pela verdadeira bruxa, a única bruxa que já existira: Georgina Morais, que na época tinha 30 anos e era a mulher de Dornelles, o dono do único mercado da cidade. Georgina era uma bruxa disfarçada em pele de ovelha, além de ser a líder do grupo de senhoras da diocese. A ideia da fogueira partira dela.
Ela precisava de expiação, precisava de sangue para satisfazer sua inveja, porque aquele tinha sido o único motivo para a coisa toda: inveja. Elas tinham inveja porque Sônia era jovem, bonita e os homens (e algumas mulheres) a desejavam. Mas o único homem que realmente a possuíra tinha sido Padre Mário.
Inveja.
Pela inveja, Georgina acendera o fogo.
— Queime, preta. Queime e vá para o inferno.
Mário era o responsável. Ele não construíra a fogueira, não acendera o fogo, mas consentira que uma inocente fosse queimada viva.
Sônia, a mulher mais linda que já existira, um verdadeiro colírio para os olhos, era tão linda que parecia um sonho, e as pessoas, dominadas por um inexplicável e vergonhoso racismo, ficavam se perguntando: como pode uma negra ser tão linda?
Mas ela era linda. Os olhos eram verdes como a relva do campo, seu corpo era o corpo de uma diva.
Assim que chegou à cidade, ela despertou o interesse da maioria dos homens, e aquele foi o motivo de despertar nas mulheres tamanha inveja. Elas não podiam aceitar que uma negra, uma negrinha insolente, pudesse ser desejada pelos homens da cidade. Aos olhos das "bruxas" de Santo Antônio, Sônia era digna de morte. Ela devia morrer porque era bela demais.
A história começou em 1972, o ano em que José Augusto da Silva chegou à cidade e trouxe consigo Sônia, sua esposa, vinte anos mais jovem do que ele.
O casal chegou à cidade no dia 20 de agosto e se instalou na casa da colina, uma construção nova erguida no terreno comprado um ano antes. Naquela época, a casa era a única naquela colina.
A beleza de Sônia logo chamou a atenção de todos em Santo Antônio. Ela era, de longe, a mulher mais bonita que havia na cidade, e era negra, algo raro por lá naquela época.
José Augusto havia adquirido mais duas propriedades: um terreno nas imediações da rodoviária e um ponto comercial no centro da cidade. No terreno, ele construiu, em dois anos, um teatro, o que não foi bem visto pelos mais conservadores, como Georgina Moraes e seus semelhantes. Eles eram a maioria na cidade: pessoas que se diziam religiosas, mas não passavam de um bando de hipócritas prontos para apunhalar pelas costas ao menor sinal de oportunidade. Esse tipo de gente era abundante em muitos lugares.
Foi nesse ambiente que José Augusto e sua jovem esposa foram viver — o pior lugar possível.
José Augusto era um tipo de artista (considerado vagabundo pelos padrões dos conservadores da cidade), e trabalhava como ventríloquo.
Em 1973, o ponto comercial comprado por ele foi transformado na loja de objetos esotéricos de Sônia. Ela vendia amuletos, incensos, ervas, livros, e também lia a sorte. Isso, naturalmente, foi mal visto pela maioria dos habitantes. As distintas e “santas” senhoras da diocese a chamavam de bruxa, adoradora do diabo, entre outras coisas. O grupo de Georgina chamava a moça, que na época tinha vinte anos, de "esposa de Satanás". Mas nada disso era verdade, e todos sabiam disso. Sônia era apenas uma jovem bela, cheia de vida e negra — e foi isso, e não a bruxaria, que a matou. Ela morreu simplesmente por ser quem era.
A loja passou a ser muito frequentada, e mais da metade dos clientes eram homens — muitos deles casados. Mário sabia que eles não iam lá para que Sônia lhes lesse a sorte. O que queriam era outra coisa; o que queriam, literalmente, era foder a mulher do ventríloquo.
Isso despertou a fúria das "santas" donas de casa católicas da cidade. Mulheres que, um dia, também foram jovens, que perderam a virgindade nos bancos traseiros de carros; algumas eram adúlteras, outras eram lésbicas e desejavam Sônia tanto quanto os homens.
Padre Mário já havia ouvido alguns desses podres no confessionário. Mas essas mulheres se achavam no direito de serem juízas, de atirarem a primeira pedra e acenderem a fogueira. Elas também sabiam que os homens iam à loja de Sônia em busca de algo que não tinham em casa: uma garota jovem, linda e muito gostosa.
Sônia se tornou, ao mesmo tempo, a mulher mais amada e mais odiada da cidade. As mulheres queriam vê-la morta, e os homens queriam vê-la nua.
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