31 DE OUTUBRO DE 1975
Mário não voltou a ver Sônia até a fatídica noite de 31 de outubro de 75. A noite em que ela foi queimada em uma fogueira e a cidade morreu.
Ele fraquejara. Fraquejara como padre e fraquejara como homem.
Ele descobriu que Sônia estava transando com outros homens na loja, a maioria garotos de sua idade ou um pouco mais velhos do que ela.
Afinal ela era de fato a puta que as mulheres diziam ser.
Ele não sabia se ela fazia aquilo para puní-lo por ter deixado de frequentar a loja, por tê-la abandonado e escolhido sustentar a batina.
As pessoas sabiam. Ele dirigia a missa mas sentia os olhares, e eram olhares de acusação.
Qualquer um em seu lugar teria largado tudo por uma mulher como aquela, mas ele resolveu se esconder. O altar e as penitências eram seu esconderijo (além, de garrafas de uísque nas noites de sábado). Mário sentia-se um desgraçado.
Mas nada poderia se comparar ao que aconteceria na noite de halloween daquele ano.
No final da tarde do dia 31 de outubro, dois dias após o desastroso show de ventríloquismo de José Augusto, de onde as pessoas sairam falando que ele e sua mulher eram bruxos, adoradores do demônio; tudo porque José descobrira uma maneira de fazer seus bonecos se movimentarem sozinhos, as mulheres da diocese, que não eram santas de jeito nenhum, lideradas por Georgina Morais, invadiram, a loja de artigos esotéricos de Sônia e a pegaram transando com Rodrigo Morais, o único filho de Georgina.
Mais tarde, cerca de dois meses após o halloween, Rodrigo mataria a mãe com um tiro de espingarda e se mataria depois, tudo porque o garoto de 22 anos havia se cansado de ser obrigado a fazer sexo com a mãe.
Sônia foi espancada e arrastada até a praça da igreja. Foi novamente espancada, logo em seguida amarrada a um poste e rapidamente uma fogueira foi montada ao redor dela com lenha trazida pela população, que como moscas varejeiras se amontoou aos na praça.
Ronaldo Prestes, conhecido como Grilo, dono do posto de combustíveis, trouxe dois galões de gasolina e os despejou sobre Sônia.
Georgina tomou a palavra como uma inquisidora:
- Essa mulher foi pega em adultério e a lei de nosso Senhor exige que ela seja morta! Ela é uma bruxa, uma serva de satã. Ela e seu marido devasso criador de monstros. Eles tem espalhado o mal sobre a nossa cidade, e esse mal deve ser extirpado.
" O mal deve ser purificado como se purifica o ouro. No fogo! O fogo santo do altar de nosso Deus!"
Toda a população gritou, ovacionando a mulher.
- Queimem a bruxa! Que seus pecados sejam consumidos nas chamas do inferno!
Mário aparecera naquele momento. Ele estava em casa quando recebera um telefonema dizendo que a população enlouquecera, e quando ali chegou e viu a fogueira e Sônia amarrada à ela, soube que era verdade.
Georgina, a mulher que se dizia santa, uma serva de Deus, e que de noite trepava com o próprio filho, olhou para ele e seus olhos eram vidrados, sedentos de sangue, por expiação.
- Padre! Que bom que o senhor veio. Estamos aqui para extirpar o mal de nossa cidade. O senhor pode nos dar sua benção?
Mário se aproximou e olhou para o povo.
Eles sabiam, sabiam que ele violara os votos e se deitara muitas vezes com aquela mulher. Era o mesmo que se deitar com o demônio.
Quem era ele para repreendê-los? Que autoridade ele tinha para isso?
Mário olhou para Sônia que chorava desesperada.
- Má...Mário! - Disse ela. - Oh! Me ajude Mário! Eles querem me matar! Eles dizem que eu sou uma bruxa, mas eu não sou! Você sabe que eu não sou!
Mário aproximou-se de Georgina.
- O que pensa que está fazendo?! - Exclamou.
- Oh. Estamos queimando uma bruxa e livrando a cidade do mal.
- Ela não é uma bruxa!
- Não. Ela é uma cadela preta. Uma cadela que fode muito. A buceta dela chupa, padre?
Georgina sorriu. Um sorriso zombeteiro.
- Você vai soltar ela agora, sua cadela louca!
- É. Talvez eu solte, então você diz ao povo que o mal é você, que você a corrompeu e a fodeu. E, você vai dizer a esse povo sedento por sangue padre, que você colocou o pinto dentro dela e empurrou fundo. Então eu acho que o povo vai querer queimar você ao invés dela. O que acha, padre?
Mário olhou para Sônia.
- Mário! Me ajude pelo amor de Deus! Não deixe eles me queimarem. Eu sei que você me ama! Eu também te amo, meu amor! Me salve! Me salve e poderemos fugir dessa cidade!
Mário se aproximou da fogueira, ele chorava. Seu coração estava partido de uma maneira que não teria concerto nunca mais. Ele nunca mais se recuperaria daquela noite, aquilo o assombraria para sempre.
Sônia estendeu as mãos suplicante.
Ele pode sentir o cheiro de seu corpo molhado em gasolina.
- Me ajude! - Disse ela. - Me tire daqui por favor!
Por um momento ele achou que fosse tira-la. Que se dane o povo, que fossem para o inferno, aquela era a mulher que ele amava e não haveria nada que pudesse impedir aquele amor.
Mas Mário ergueu a mão na frente dela e lhe deu a extrema unção.
Sônia arregalou os olhos.
- O que?... O que está fazendo?! O QUE ESTÁ FAZENDO?!
O QUE É ISSO?!
- Em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo. - Disse ele. - Amém.
Sônia balançou a cabeça indignada. Georgina sorriu e o povo gritou eufórico.
- NÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!!- Gritou Sônia em pânico. Ela começou a se debater tentando se soltar das amarras. - O QUE ESTÃO FAZENDO?! O QUE ESTÁ FAZENDO, SEU FILHO DA PUTA?! NÃO PODEM FAZER ISSO! NÃO PODEM! NÃO PODEM ME MATAR! EU NÃO SOU UMA BRUXA! NÃO SOOOOOOU!!!!
- QUEIMEM A BRUXA! - Gritou Georgina.
- NÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!!!NÃÃÃÃÃÃÃOOOOOO!!!!!
Sônia olhou para Mário e foi como se ela lhe arrancasse o coração. Ele deu um passo para trás. Os olhos dela se esbugalharam, veias saltaram em seu pescoço.
- NÃÃÃÃÕOOO!! MALDITOS! MALDITOS!!
Pessoas segurando tochas aproximaram-se da fogueira.
Então aconteceu algo estranho que fez o lugar emudecer.
Os olhos de Sônia viraram em suas órbitas e por um momento ficaram brancos. Nuvens negras povoaram o céu em questão de segundos e ocultam a lua. Um vento quente e impetuoso assoprou vindo das montanhas e apagou as tochas.
Sônia olhou para eles, para o povo da cidade, e Mário podia jurar que seus olhos eram vermelhos.
- A PARTIR DE HOJE VOCÊS SÃO MALDITOS! - Gritou ela. - TODOS VOCÊS. VINTE E CINCO ANOS SERÁ O TEMPO QUE VOCÊS TERÃO PARA LAMENTAREM O SEU PECADO.
" ENTÃO EEEUU VIRE! EU RESSURGIREI DAS CINZAS E ACENDEREI UM FOGO QUE OS CONSUMIRÁ PARA SEMPRE! "
Ela olhou para Mário e sorriu. Era um sorriso maligno, zombeteiro.
- Sônia!
Ele correu em direção à fogueira e então ela explodiu em chamas.
Sônia começou a gargalhar como uma lunática, depois passou a gritar, e seus gritos enchiam a tenebrosa noite. Houve murmúrios de exclamação entre todos os presentes e então o cheiro de carne humana queimada inundou o ar.
Mário caiu de joelhos, sua escolha estava feita. Ele se arrependia profundamente mas agora já era tarde demais.
Parada onde estava Georgina via a cena e sorria.
Ela olhou para a colina e viu a claridade tênue da única casa que lá havia, a casa de Sônia e de José Augusto, o ventríloquo.
- OUÇAM POVO PINHALENSE! - Gritou ela retomando seu tenebroso controle.- ESTAMOS QUASE DERROTANDO O MAL MAS ELE AINDA VIVE.- Ela apontou para a colina. - LÁ, É A CASA DO DEMÔNIO. ELA DEVE SER QUEIMADA, E O SERVO DE SATAN QUE VIVE LÁ DEVE SER EXPURGADO COM FOGO!
O povo gritou. Eles reacenderam suas tochas e partiram para a colina armados com foices e facões.
Naquela noite a casa de José Augusto foi queimada, o ventríloquo foi queimado junto com ela, ficaram apenas as cinzas.
A praça ficou vazia, ficaram apenas Mário e o corpo em chamas de Sônia, a mulher mais linda que ele já tinha visto em toda a sua vida.
Mário chorava desesperado.
- MEU DEUS! O QUE EU FIZ?! O QUE EU FIZ?!
Ele matara uma inocente e condenara uma cidade.
O corpo de Sônia caiu no chão e cinzas voaram pelo ar.
- Sônia... me... me perdoe...me perdoe, meu amor!
Mas não havia perdão, nunca mais haveria.
Aquele vento quente assoprou levantando folhas mortas pelo chão.
Mário viu surgir diante dele uma forma difusa e ouviu um sussurro:
- Kaliban.
Ele gritou em estado de terror e o vento levou as folhas para longe.
Mário ficou ali por mais alguns instantes e depois se levantou. Ele precisava de uisque. Ele precisava de uma garrafa inteira.
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