Lima
O choro fluvial que pronuncia uma personalidade mortal
Esta descrição é baseada na narrativa #2421 do Arquivo Português de Lendas (APL 2421).
Não se costuma pensar nos rios como seres com vida propriamente dita. Porém, se formos a ver, os rios têm os seus próprios ciclos de vida, iguais aos dos seres vivos: nascem – designam-se de nascentes os lugares nos quais a terra parem os rios, digamos assim –; crescem – aumentam de volume e de tamanho ao longo do curso como se passassem por uma fase de crescimento –; se reproduzem – rios distintos podem se juntar para dar origem a outro rio –; e morrem – o desaguamento com que terminam o seu percurso ou, infelizmente, a poluição que elimina a vida deles. Um percurso que faz lembrar o percurso de vida de uma pessoa. E ainda têm nomes como as pessoas. É por essas razões que muitas populações vêm os rios com os quais estão entrelaçados nas suas existências terrenas como personagens vivas. Isto reflete-se nas tradições orais dessas populações – por exemplo, os rios são o destaque central de algumas lendas portuguesas. As características de um rio constituem então a sua personalidade, diferente da doutros rios. E há personalidades fluviais para todos os gostos e desgostos – incluindo uma personalidade cruel e caprichosa! Ao que parece, é essa a personalidade do rio Lima segundo o povo de Ponte da Barca.
Se alguém puser um ouvido dentro das águas do Lima, é capaz de ouvi-lo a chorar – sim, um rio que chora de forma audível! Trata-se do prenúncio de uma coisa ruim que acontece anualmente: o curso de água que nasce no Monte Talariño, em Espanha, e desagua no oceano Atlântico junto a Viana do Castelo fica inundado de tristeza como uma pessoa; e para trocar a tristeza pela felicidade, o rio mata imediatamente pelo menos uma pessoa, parando assim de chorar! É como se o Lima fosse um assassino em série sob a forma de um rio que exige vítimas mortais humanas de acordo com o seu humor sazonal! Pergunto se fica triste por matar pessoas e não poder evitar que isso aconteça.
É curioso: este rio atualmente tido como mortífero foi indicado como sendo o Lete pelo Estrabão, um historiador, geógrafo e filósofo grego. O Lete («esquecimento» em grego) é um dos rios do Hades, o Deus grego do mundo inferior e dos mortos. Aqueles que bebessem a sua água ou até mesmo tocassem nela esquecer-se-iam de tudo. Assim recordavam os soldados chefiados pelo Décimo Júnio Bruto Galaico, um dos generais da conquista romana da Península Ibérica, ao estarem perante o Lima em 138 antes de Cristo. Para dissipar esse mito, esse general atravessou o rio sozinho e, da outra margem, chamou os seus soldados, um por um, pelos nomes deles. Esses soldados, ao verem que o seu general manteve a memória, atravessaram o rio, sabendo então que não era o Lete. Mas para o Lima passar de um rio do esquecimento para um rio da morte na consideração popular vai um grande passo... Pergunto porque e como se deu o passo!
No entanto, as características que constituem a personalidade infame do Lima não são nada doutro mundo: tratam-se de remoinhos, muitos dos quais escondidos nas calmarias insuspeitas de certas partes do rio. Quem mais se afoga lá são pessoas de fora das terras onde estão essas partes por não as conhecerem bem. É assim tanto para o rio Lima como para os outros rios: é preciso conhecer bem a personalidade para se saber com o que se lida... Ou com quem se lida!
Fonte da imagem: Travel & Safaris (site)
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