1.2 | Aprendiz
Respirar, ouvir, pensar, falar...
Preciso conseguir ouvir meus próprios pensamentos em maio ao barulho das muitas vozes no auditório, para conseguir organizar minhas ideias. E eles esperam por mim, pela minha entrada.
Só diga o que ele quer que você diga...
– Bom dia a todos os estudantes presentes aqui hoje. – Todas as vozes, todo o auditório se cala em menos de cinco segundos, deixando apenas o eco da minha voz, que ressoa nas paredes do gingante espaço repleto de pessoas. – É com grande honra, como representante do diretor Robert Johnson, que declaro a cerimônia de iniciação, aberta.
O auditório se enche com o som do hino da universidade, juntamente com aplausos dos estudantes todos animados com início de mais um ano acadêmico. Imagino que seja inda mais animador para os novatos, já que será a primeira vez que terão contato com os mais profissionais professores seres-éter da ilha. Mas qualquer um que já está aqui há mais de um ano sabe que S.E. não se trata apenas de jogos e diversão, uma pequena, mas bela, porcentagem dos alunos novatos repetem o primeiro ano, por baixo desempenho. Honestamente, eu só quero que passe o mais rápido possível...
Entrego o palanque de discurso à uma das professoras conselheiras, para que ela dê continuidade ao evento. Deveria ser trabalho do meu pai iniciar a cerimônia, mas, como todo mentor, ele decidiu que seria mais interessante que eu fizesse isso este ano. Ele esteve em posição de diretor desde que entrou aqui, e como o filho prodígio, estou na mira tanto dele quanto dos conselheiros para substituí-lo, quando chegar o momento. Não me importo muito com isso, provavelmente ele tinha esse plano desde que eu nasci.
Deixo, então, o palco do auditório para ir até a sala de meu pai, ainda preciso iniciar meus afazeres como seu assistente. No caminho, embora geralmente os alunos evitem contato visual, ou sequer entrar em meu caminho, vejo apenas grandes corredores vazios; estão todos no auditório, não tenho que me preocupar com eles.
Ao entrar na fria e um pouco escura sala, observo, de perto da porta, a grande cadeira vermelha de couro virada de costas para mim. O trono do rei, o diretor...
– A cerimônia está iniciada... – digo friamente.
A poltrona se vira lentamente para mim, mostrando o grisalho homem de quarenta e poucos anos, lendo algo em seu grande tablet preto. Ele não olha para mim, apenas continua seu trabalho, enquanto diz:
– Muito bem, meu filho! Você foi ótimo, eu assisti das câmeras. Está cada dia mais chegando perto de se tornar o sucessor perfeito que esta universidade precisa.
– Bom... a sua reputação eu já tenho... – deixo escapar. Seus olhos pretos como carvão, escondidos por detrás da escuridão de sua sala, afastada apenas por uma pequena luminária em sua mesa, encontram os meus, mas nem por um momento deixo minha visão se desviar da dele.
Meu pai deixa tablet de lado e se inclina sobre sua mesa, colocando seus braços na madeira polida.
– Você sabe que não posso confiar este lugar a ninguém além de você, não é, Hansel? – pergunta ele. – Este lugar... o trabalho que fazemos aqui, mantém o país inteiro em ordem. É tão prestigioso que até locais de fora da Ilha Cristal adotam a nossa metodologia. Um dia, alguém confiou esse trabalho a mim... e eu confio em você para levá-lo a diante.
– Eu sei, pai... – Desvio o meu olhar para outra direção. – Não tenho medo.
– Sei que não tem – diz ele com um tom mais leve. – Bom, antes de você começar seus afazeres, preciso que assine uns papeis.
Acendo a luz da sala e me aproximo de sua mesa, enquanto ele me oferece dois documentos e uma caneta.
– Que tipo de papeis? – pergunto, me sentando em uma das cadeiras de visita.
– São da sua matrícula – responde ele. Neste momento, olho para ele com surpresa.
– O quê? – pergunto aborrecido. – O senhor não disse que conseguiria uma procuração para que eu não precisasse cursar na S.E.?
– Sim, eu disse e fui atrás disso, como diretor – diz ele. – Mas estamos falando de uma questão de lei, filho, você sabe disso.
– Eu nem mesmo tenho um poder! – digo frustrado. – Como vou passar nos exames práticos sem uma individualidade?!
– Você tem quintessência no seu DNA, Hansel, mesmo que seu poder ainda não tenha se manifestado, ainda é um ser-éter – responde ele. – Não se preocupe, vai ficar bem.
Tento responder de alguma forma, mas acabo desistindo. Geralmente as individualidades se manifestam na infância, mas a minha nunca veio. Meu pai chegou a duvidar se eu era mesmo um ser-éter, então passei por vários testes na adolescência que comprovaram que tinha quintessência correndo no meu sangue. Mas até hoje, nenhum poder.
Decido sair de uma vez da sala do meu pai e começar minhas obrigações. Meus passos soam como marcha de soldados. Estou bravo, estou muito bravo. Tudo o que esperava deste ano era que conseguisse passar pelo meu segundo ano de estágio como assistente do diretor sem perder a cabeça com um bando de "idiotas-éter" fazendo montanhas de barulhos por todos os corredores desta estúpida universidade. Mas agora, não só isso, mas também vou ter que dividir um quarto com um deles.
Aos sair para a área de entrada do prédio principal da S.E., uma bola feita de gelo, quase do tamanho da minha cabeça, pousa próximo aos meus pés. Devagar, levo minha visão aos responsáveis: dois rapazes e duas moças, seres da água, que estavam jogando vôlei com o gelo.
– Droga... – Um dos rapazes diz, assim que me vê. – Desculpe, deveria ter prestado mais atenção!
A bola de gelo se move rapidamente do chão de volta para as mãos do rapaz. Eu os observo por um momento, todos têm olhos azuis, uma das moças tem pele escura, enquanto os outros têm pele clara.
– Vocês não deveriam estar na cerimônia? – pergunto calmamente.
– Você não deveria estar na cerimônia?... – diz uma das garotas em baixo tom; loira, de cabelos curtos. Os outros três olham para ela, depois uns para os outros; se olharem falassem, estariam gritando de pavor agora. – Q-quer dizer... Estamos indo para lá agora mesmo!
Todos eles adam apressados, deixando a bola de gelo cair no chão e quebrar. Como assistente do meu pai, eu não tenho autoridade para dar punição a eles por não estarem na cerimônia, até porque é um evento de presença opcional, mas não iria dizer isso a eles. É o que merecem por jogarem gelo-vôlei perto da entrada do prédio, onde a bola poderia acertar a cabeça de qualquer um que estivesse passando.
Sigo, então, meu caminho à cafeteria do campus, ainda aborrecido por ter que fazer parte da S.E. como aluno. Pelo menos o ambiente ao meu redor está calmo, posso ver alguns pássaros voando de árvore em árvores, perseguidos por alguns dragões; ainda me lembro de querer ter um desses pequenos dragões como animal de estimação quando era criança, pena que eles são um tanto selvagens. Seria tão bom se a loucura da universidade não estragasse a paz que esse lugar dá.
Assim que entro na cafeteria, vou direto à cozinha, preciso discutir o cardápio do mês com os funcionários.
– Oh, Hansel, meu querido! Que prazer tê-lo aqui! – A doce voz de senhora Mei vem ao meu encontro.
– Olá. Como vão as coisas? – Abaixo minha cabeça, cumprimentando-a. Senhora Mei foi minha babá quando era um bebê, cuidou de mim até que completasse dez anos. Depois, meu pai deu a ela o cargo de chefe na cafeteria; sempre nos demos muito bem, ela me trata quase como seu filho. Ela é baixa, cheia, tem cabelos loiros, presos em sua toca e inconfundíveis olhos castanhos. Ser do fogo.
– Uma loucura, meu querido! – responde ela, abanando seu rosto com uma das mãos. – Tantos estudantes vindos aqui num único dia, quase não tivemos tempo de respirar! Ainda bem que a cerimônia diminuiu um pouco o movimento!
Deixo um leve sorriso escapar, gosto da presença dela.
– Eu imagino. Voltar às atividades depois das férias é sempre complicado.
– Nada que já não tenhamos feito antes. – Ela ri. Sempre foi carismática, é um dos motivos faz nos darmos bem. – E quanto ao seu pai, como ele está?
– Está em sua sala, como sempre – respondo vagamente.
– Oh, Robert, nunca dá uma pausa... – diz ela, olhando para o nada. Senhora Mei conhecia meu pai antes mesmo de eu nascer, me pergunto se ele era como é hoje naquela época também. – Bom, suponho que não tenha vindo aqui apenar conversar, estou certa?
– Sim, na verdade, vim deixar o cardápio do mês, meu pai fez algumas alterações no menu – respondo. Mostro a ela as mudanças feitas.
Nós passamos alguns minutos conversando, uma vez que ela me encontra, nunca quer me deixar ir. Não a culpo, raramente a vejo no dia a dia, é diferente de quando era criança.
– Dê um "oi" ao seu pai por mim! – diz ela, finalmente desaparecendo na cozinha.
Bom, uma das tarefas da lista já foram... Olho ao meu redor, a cafeteria está com alguns estudantes, imagino que a cerimônia já tenha terminado. É melhor me apressar e terminar tudo o que tenho para fazer antes da aula inicial.
Ando em direção à saída. Enquanto me aproximo, passo por uma mesa com alguns alunos que não estavam aqui quando cheguei. Todos eles desviam o olhar, com exceção de um. Ruivo, pele bronzeada, olhos castanho-claros, vivos, como se brilhassem com a luz. Ele me encara com curiosidade e eu o encaro de volta, até chegar à saída.
Hm... Ele me encarou nos olhos durante todo meu percurso da porta da cozinha até a saída, sem medo, isso é novo. Mas que cara estranho...
O restante do dia correu tranquilamente. Terminei meus afazeres a tempo para a aula inicial, mas não pude participar, meu pai me fez voltar para casa para arrumar minha mala e vir para o meu dormitório. Bloco D, quarto 5. Grande o suficiente para acomodar dois alunos, como projetado. As paredes são pintadas de cinza e o chão é de azulejo escuro. Há duas camas, uma de um lado do quarto e a outra do outro; assim como também possui das mesas de estudo, duas cadeiras e duas cômodas de roupa. Quando cheguei, meu colega de quarto já havia escolhido o lado esquerdo, mas não estava aqui, então apenas decidi colocar minhas coisas no direito, sem questionar.
Me sento em minha cama, observando a quietude da noite no quarto, estou sozinho. Ainda não sei como me sentir em relação a dividir este espaço com um estranho. Eu, justo eu, que estou acostumado a estar sozinho desde sempre. Não pode ser tão ruim, não é? Eu nem mesmo preciso me envolver com ele, é só fingir que não está aqui, como sempre faço com os alunos quando vou dar um discurso.
Suspiro profundamente, aborrecido. Eu não deveria estar me preocupando com isso, há coisas mais importantes, como os exames práticos, por exemplo. O curso de individualidade éter é tranquilo no primeiro mês, quando aprendemos apenas as teorias, mas quando chega na prática, a situação muda. Controlar seu poder, aprender técnicas avançadas de luta, de esportes, construção, dependendo de qual área cada um vai seguir no segundo ano, é uma grande dor de cabeça para todos os alunos. E ainda tem o festival esportivo, quando os alunos competem uns contra os outros, por uma semana, em diversas modalidades. Se fosse apenas a pressão psicológica dos estudos, mas dobrar os elementos requer sincronia com a mente e o físico. É estresse em todo o corpo. Haja o que acontecer, eu preciso descobrir minha individualidade o mais rápido possível.
Tiro de dentro de minha mochila um livro que peguei na biblioteca, antes de vir para cá, e me deito. Seu título é "Teoria da Quintessência", deve me ajudar com meu problema. Passo algum tempo lendo seus primeiros capítulos, em busca de novas informações, mas tudo o que vejo aqui é o que já venho estudando há um tempo, já.
"Quintessência, ou éter, é a energia presente no DNA de cada ser-éter que altera seu material genético, dando a ele habilidades especiais." "Animais com quintessência também possuem alteração em seu material genético."
É engraçado pensar que dragões, fadas, até os gnomos, são variações de animais e plantas com quintessência no DNA. Me pergunto se esses seres eram mais comuns na antiguidade, é raro ver um deles hoje em dia; menos os dragões, eles são como pragas... Pequenas lagartixas irritantes que cospem fogo, passei a odiá-los com o tempo.
Decido seguir com a leitura, até coloco meus fones de ouvido, com algumas músicas instrumentais, para me concentrar.
"A quintessência, e como afeta os seres vivos, vem sendo estudada desde os séculos antigos. Muitos alquimistas, cientistas, já procuraram reproduzi-la em seres comuns, mas nenhum experimento jamais produziu resultados satisfatórios."
Uma vez, li um artigo científico que dizia que a quintessência de um ser agia de forma única em seu corpo, como se fosse feita exclusivamente para ele. Isso é um dos motivos que a impedem de ser transferida de seres-éter para seres comuns, ela se torna incompatível com o sistema do corpo de outro indivíduo.
Enquanto leio meu livro, minha atenção é chamada para a fechadura da porta, que se move lentamente. Ela se abre, revelando o mesmo homem que vi na cafeteria hoje de manhã, o único que não desviou seu olhar. Eu deveria estar surpreso de ele ser o meu colega de quarto, mas honestamente, não me importo. Decido ignorá-lo e continuar minha leitura.
Ele lentamente anda até a sua cama, claramente desconfortável com a minha presença. Por favor, só não puxe assunto...
– Hm... Oi! – Ouço sua voz, por baixo da música em meus fones.
Mas que sorte a minha...
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