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A ressaca devia ser uma vadia, já que todos se levantaram gemendo e reclamando de dor de cabeça. Era muito raro para mim ter isso, acho que só tive duas ou três durante a vida.
Os irmãos estavam quietos, para variar. Minha garrafa de vinho barato tinha acabado, e olhei com tristeza para o vidro vazio. Não sabia quando compraria outra. Com a guerra, muitas coisas estavam indisponíveis.
Wanin saiu da barraca um pouco mais pálida que de costume e carregava um embrulho pequeno. Olhei para o casal achando toda a situação curiosa. Durante a noite, Desislav era um dos mais fortes do nosso grupo. Porém, de dia, ele era apenas um morceguinho embrulhado em vários panos. Pelo menos até que eu o ajudasse.
Ela trouxe o embrulho até mim, e lancei sobre o fofo morcego um feitiço de escuridão. Alguns segundos depois, um homem surgiu, com sua nudez protegida pelos tecidos que o embrulhavam antes.
— Muito obrigada, sempre dependo dos seus favores.
Dei de ombros e me sentei em um toco.
— É impressionante como você parece não ligar para nada ao seu redor.
— É impressionante como você não cala a boca mesmo de ressaca, Cirdan.
— Prática, obrigada por reconhecer meus esforços.
Ri. Era incrível como ele conseguia arrancar reações de mim. Ele e Teco eram os únicos no grupo que conseguiam essa façanha.
— O que tem para ligar?
— Ele depende de você para sair por aí durante o dia e não é nada demais?
— É comum em Cristália que os vampiros contratem Eternos que sabem realizar magia de escuridão para terem mais liberdade.
— Muito estranho, nunca soube disso.
— Você é humano. Humanos dificilmente são permitidos lá. É um país extremamente fechado. As outras raças que moram lá e têm alguma porcentagem significativa são os elfos e vampiros.
— Você já morou lá, Desi?
— Já falei que não gosto desse apelido.
— A Wanin e as outras garotas te chamam assim e você não se importa.
— Claro que não, o problema é você. Até os irmãos poderiam me chamar assim que não seria tão incômodo.
— Awn, é tão bom saber que sou especial para você.
Era quase inacreditável a facilidade que Cirdan tinha de tirar qualquer um do sério. Resolvi me afastar para fazer um alongamento enquanto deixava os dois trocando farpas.
— Desislav, seu pervertido, pare de andar por aí de lençol e coloque uma roupa — ouvi Marina reclamando.
Pelo visto, o silêncio por ressaca havia acabado, infelizmente. Tico voltou, nem percebi que havia saído, segurando um cervo maior que ele e seu machado. Teco foi até seu irmão e tirou sua caça.
Era um esforço mental aceitar que eram irmãos quando estavam lado a lado. Enquanto Tico era um meio-anão, que havia puxado a baixa estatura da raça do pai, seu irmão mais velho tinha mais de dois metros. Era impressionante ver como a mudança de um pai transformava toda a sua estrutura corporal.
Arod era filho do primeiro marido da mãe dos dois. Enquanto ela era uma mulher comum da cidade, o pai de Teco era um representante clássico da tribo Akaia, extremamente alto, musculoso e com a pele morena. Ouvi dizer que os dois eram incrivelmente parecidos.
Já Armando, cinco anos mais novo que Tico, era fruto do segundo casamento de sua mãe. Após o primeiro marido ter morrido defendendo sua tribo de uma invasão, ela voltou à sua cidade natal, quatro anos depois, para ter ajuda dos pais na criação da criança pequena. Lá, se apaixonou pelo ferreiro que havia se instalado na vila, um anão ruivo com um temperamento nada parecido com os de sua raça e completamente diferente do pai de Arod. Estão juntos até hoje, e parece que ela foi tão feliz no primeiro casamento quanto é no segundo.
Sinceramente, não entendo o pai de Armando. A média de vida de um anão é de quinhentos anos, enquanto um humano vive no máximo cem. Não me envolveria com alguém de quem precisaria passar a maior parte da vida como viúva.
Esse é o principal motivo de Cristália ser um país tão fechado. Não faz sentido criar laços com seres que vão morrer em pouco tempo. Dividimos o território com elfos, que vivem até três mil anos; vampiros, que, apesar de mais fáceis de matar, não morrem; e temos alianças comerciais com anões. Todas as outras raças têm muito pouco tempo de vida para valer o esforço de criar uma relação.
Por isso, estar nesse grupo mostrava como tudo no mundo estava confuso. Em tempos normais, eu nunca seria amiga de um anão e muito menos de três humanos. Não porque eles fossem inferiores, mas porque, se é possível evitar a dor do luto, não faz sentido correr atrás dela. Diferentemente dos elfos, que se acham superiores a tudo, os Eternos apenas fogem da dor emocional, já que só não fomos criados para entender e aceitar a morte.
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