Capítulo 5
Julho
Tive pesadelos durante a noite. Eu me vi sozinha, afogando-me em águas paradas e profundas. Via as árvores me olharem, seus galhos se curvando para a superfície trêmula. Sentia a água tremer como se estivesse viva e depois perdia de vista as árvores e os galhos, tragada no líquido que me aspirava, cada vez mais fundo. Meus braços se estendiam dolorosamente para aquela luz, para aquele céu inacessível, apesar de meus esforços para soltar os pés e subir à tona para respirar.
Acordo exausta, e, encharcada de suor e trêmula por causa do sonho, caminho até o banheiro para tomar um banho e me trocar. Quando saio, a porta do meu quarto está aberta e alguém escreveu a palavra "puritana" em vermelho no meu lençol. Onde conseguiram a tinta? A palavra também está escrita no meu travesseiro. Olho ao redor, com o coração batendo forte de raiva.
Devon aparece na porta, encostando-se a ela, assobiando ao olhar para as unhas. É possível que eu possa odiar tanto alguém? Ele não perde a chance de me provocar desde o início.
— Bonita a decoração — diz ele.
— Fiz alguma coisa contra você que eu não saiba? — Falo com ele pela primeira vez. Seguro a ponta do lençol e o arranco da cama. — Não sei se você percebeu, mas estamos no mesmo time aqui.
Balanço a cabeça enquanto removo a fronha do travesseiro. Não fique nervosa. Ele quer me tirar do sério, mas não vai conseguir. No entanto, sinto vontade de socá-lo na boca do estômago.
Devon sai assim que Angela entra no quarto, com um olhar dizendo "cai fora". Não preciso pedir para ela me ajudar, ela apenas se aproxima e começa a tirar a roupa da cama comigo. Angela carrega a pilha de lençóis até o lixo, depois caminhamos juntas até a sala de treinamento.
— Ignore-o — diz ela. — Ele é um idiota e, se você não se irritar, ele vai acabar desistindo de mexer com você.
Eu coloco as mãos em minhas bochechas. Elas ainda estão quentes e coradas de raiva. Tento me distrair.
— Você está indo bem no treinamento? — pergunto calmamente.
— Estou indo bem, não tenho tantas dificuldades assim. — Angela suspira.
— Pelo menos eles não vão hostilizar você.
— Não se preocupe com isso, você vai se sair bem.
— Agora que estão todos aqui, vamos começar! — Will exclama.
Nossos nomes estão todos escritos em um quadro negro. Will faz um sorteio para definir quem vai lutar com quem. Fico imediatamente paralisada. Meu rival será Devon. O treinamento que tivemos ainda não basta para que eu ganhe uma luta...
— Você poderia fingir um desmaio depois de algumas pancadas — sugere Natan, como se estivesse lendo meus pensamentos. — Ninguém a culparia por isso.
Sinto-me envergonhada. Desejo que eu fosse forte o suficiente. Mas não sou, estou com medo.
Uma pontada de dor atinge meu queixo e se espalha pelo meu rosto. Eu pisco os olhos e sou lançada para o lado, sentindo a sala desabar e balançar ao meu redor. Não me lembro de ver seu punho vindo em minha direção. Estou desequilibrada demais para fazer qualquer coisa, mas a única coisa que consigo pensar é em permanecer em pé. Levanto.
A dor agora é diferente, menos como uma pontada e mais como um estalo soando em meu cérebro, pontilhando minha visão com cores diferentes: azul, verde, vermelho. Tento afastá-lo com as mãos, estapeando seus braços, e ele me soca novamente, desta vez nas costelas. Meu rosto está molhado. Meu nariz está sangrando. Acho que estou suja de vermelho, mas estou tonta demais para olhar para baixo.
Ele me empurra e caio outra vez, arranhando as mãos no chão, piscando, mole, lenta e com calor. Eu tusso e me esforço para me levantar. Com a sala girando tão rápido ao meu redor, eu deveria continuar deitada no chão. Algo atinge minhas costelas e desabo outra vez.
De relance, vejo Harry enfurecido empurrar a porta e sair da sala. Parece que não está mais interessado na luta. Por um instante, desejei que ele pudesse parar isso, que ele impedisse esse homem de me bater. Mas sei que ele não pode. Não podemos fazer nada.
Meus joelhos cedem e sinto o chão frio contra minha bochecha. E não consigo ver mais absolutamente nada, nem o que está bem diante do meu nariz, e as luzes se apagam...
Quando acordo, me sinto amortecida, mas minha cabeça está latejando e pesada.
— Seu olho está roxo? — pergunta alguém.
Abro um olho. O outro permanece fechado como se estivesse colado. Natan e Harry estão sentados à minha direita, Angela está sentada do outro lado da cama com um saco de gelo encostado em seu queixo.
— O que aconteceu com o seu rosto? — digo. Minha voz parece muito fraca.
Angela solta uma risada.
— Olha quem está falando. Você quer que a gente arrume um tapa olho para você?
— Bem, já sei o que aconteceu com meu rosto — respondo. —Eu estava lá. Mais ou menos.
— Você realmente acabou de fazer uma piada, Grace? — Natan diz, sorrindo.
— Você está se sentindo bem, Grace? — pergunta Harry.
Eu ainda não tinha olhado nos olhos dele até agora. Seus olhos são os verdes mais lindos que eu já vi, e está com as sobrancelhas franzidas, como se estivesse preocupado. Mas se estivesse, teria ficado lá quando eu estava apanhando. Não teria me ignorado como tem feito até agora.
— Sim — respondo. — Só queria poder ficar aqui para sempre e nunca mais ver aquele cara.
— Não se preocupe com isso. — Natan diz.
Angela confere o relógio que tem ao lado da cama.
— Acho que estamos perdendo o jantar. Você quer que eu fique aqui, Grace?
Eu balanço a cabeça negativamente.
— Estou bem. Obrigada. — respondo.
Angela e Natan se levantam, mas Harry faz um sinal para que eles sigam sem ele. Ele senta na beirada da cama, franze as sobrancelhas e encosta a ponta do dedo no canto do meu olho direito machucado. Afasto-me, mas ele não tira a mão, apenas inclina sua cabeça para trás e suspira.
— Sabe, se você aprendesse a atacar primeiro, se sairia melhor.
— Atacar primeiro? — pergunto. — E como isso pode me ajudar?
— Você é rápida. Se você conseguir dar alguns bons golpes antes que eles consigam entender o que está acontecendo, você poderia vencer. — Ele dá de ombros, e abaixa a mão.
— Fico surpresa que você saiba disso — digo, em um tom baixo — já que saiu na metade da minha única luta.
— Eu não queria assistir àquilo — diz ele.
O que ele quer dizer com isso?
Ele limpa a garganta.
— Não ligue para o que a Angela diz. Seu rosto não está feio.
Ele está querendo dizer que sou bonita?
Seus olhos fitam os meus de relance, e ele coça a parte de trás do pescoço. O silêncio parece crescer entre nós. Abro o sorriso mais largo que minha bochecha machucada permite, esperando que a tensão se dissipe. Não sei o que falar.
— É melhor eu deixar você descansar... — ele diz e se levanta para ir embora, mas antes que ele parta, eu o agarro pelo pulso.
— Harry, você acha que vai piorar? — pergunto.
— Não sei — ele responde e solta a mão da minha e a enfia no bolso, suspirando. — Já é difícil o bastante como está. — Suspira mais uma vez e sai do quarto, sem olhar para trás.
Não consegui dormir durante a noite. Ao invés disso, fiquei sondando os guardas pela janelinha do quarto. A cada duas horas, outros homens chegavam para substituí-los. Eu estava distante demais para ouvir o que diziam, mas eram poucas palavras, um tapinha nas costas e só. Por onde eles entram? Eu precisava observar tudo o mais em detalhes.
Como sair daqui? Como conseguir ajuda? Como voltar para casa?
A ideia de preparar uma fuga me acalmou. Fiz o mapa do lugar mentalmente e tentei imaginar o que ainda não tinha visto além das árvores. Por fim, fui me deitar, ainda incapaz de fechar os olhos.
Alguns minutos se passaram quando ouvi: helicópteros - havia vários se aproximando. No mesmo instante, um frenesi tomou conta da casa. Ouço as portas dos quartos se abrindo, o alvoroço no corredor, o barulho nas tentativas de acender as luzes. Mas é inútil. Eles cortam a energia, e as portas e as janelas sempre permanecem trancadas durante a noite.
Ordens foram gritadas lá de fora pelos guardas:
— Nada de luzes, porra! Permaneçam em silêncio!
O barulho dos helicópteros aumentou, estavam logo acima das árvores. Avistei três deles pela janela do quarto. Vê-los me encheu de felicidade: eles estavam nos procurando! Era visível a angústia dos guardas. Viravam o rosto para o céu com os maxilares apertados, pelo desafio, medo.
Agora os helicópteros estavam se afastando. Não voltarão mais. O que quer que tenham visto aqui, não foi o suficiente para desconfiarem que haja prisioneiros na casa sendo treinados para matar.
Por quem e por quê? Ainda não sabemos.
Na manhã seguinte, não ouço o despertador nem o barulho dos passos no corredor e das conversas dos outros se arrumando. Acordo com Angela sacudindo meu ombro. Ela já está vestida com uma jaqueta preta, com o zíper fechado até o pescoço. Deve ser para esconder os hematomas da luta de ontem.
— Vamos — diz ela. — Hora de acordar.
Tento dizer alguma coisa, mas só consigo soltar um gemido. Meu corpo dói tanto que mal consigo respirar. O fato de meus olhos estarem inchados do choro de ontem também não ajuda. Angela me oferece a mão.
O relógio marca oito horas. Hoje iremos praticar corrida e depois tentar escalar a parede lateral do galpão, que é própria para isso. Temos 15 minutos para estar lá.
— Vou correr para arrumar alguma coisa para comermos de café da manhã. Apenas... arrume-se. Parece que você vai precisar de um tempinho. — diz ela.
Eu solto um grunhido. Tentando não dobrar a cintura, enfio a mão na gaveta da cômoda à procura de uma camiseta limpa. Tiro meu pijama e olho para a lateral do meu corpo, que está coberto de hematomas. Fico hipnotizada pelas cores por um instante: um tom claro de verde e outro escuro de azul e marrom e roxo. Eu me troco o mais rápido que consigo e deixo meu cabelo solto porque não consigo levantar os braços para prendê-lo.
Olho para meu reflexo no banheiro e vejo que não sou eu. Ela é loira como eu e tem os olhos verdes como os meus, o rosto como o meu, mas não há nenhuma outra semelhança entre nós. Eu não tenho o olho roxo, o lábio cortado e um hematoma no queixo...
Quando Angela retorna com um bolinho em cada mão, estou sentada na beirada da cama, olhando para meu coturno desamarrado. Precisarei inclinar-me para amarrar os cadarços. Fazer isso me causará dor.
Mas Angela apenas me entrega um dos bolinhos e agacha-se na minha frente para amarrar meus cadarços. Meu peito se enche de gratidão.
— Obrigada. — digo.
— Bem, nunca chegaríamos a tempo se você tivesse que amarrá-los sozinha — diz ela — Vamos. Você consegue comer e andar ao mesmo tempo, não consegue?
Apressamo-nos até a frente da casa. O bolinho é um pão integral. Minha mãe costumava fazer esses pãezinhos e os chamava de biscoitos. Eu amava. Tento ignorar a pontada que sinto no estômago sempre que penso na minha mãe, enquanto sigo Angela, meio caminhando, meio correndo, que parece ter esquecido que mal consigo andar. Cada vez que meu pé toca o chão, sinto uma pontada de dor nas costelas, mas procuro ignorá-las.
— Por que demoraram tanto? — pergunta Natan da parte de cima do galpão que temos que escalar.
Angela o ignora e começa a subir. Travo os dentes e seguro a barra de metal lateral. Isso vai doer um pouco. Quando estou quase chegando, Harry segura meus dois braços e me levanta com facilidade para cima do telhado. Sinto uma pontada de dor na lateral do meu corpo, mas logo se dissipa, assim como a sensação do toque de Harry. Vejo Devon atrás dele, me encarando. Quero socar a cara dele.
— Grace, você não poderá participar do treinamento hoje — Will me informa.
Antes que eu o questione, dois guardas sobem pelas escadas laterais e se aproximam de mim, segurando meu braço e ordenando que os acompanhe.
— Vamos levá-la até a enfermaria. As enfermeiras farão um relatório sobre seu estado de saúde. Sou obrigado a vendar seus olhos.
Cobriram-me os olhos com uma faixa grossa, e amarraram minhas mãos por trás. Com isso, perdi toda segurança. O medo instintivo de não saber onde colocava os pés me bloqueava. Dois homens me seguravam pelos braços. Esforçava-me em andar normalmente, mas tropeçava a cada dois passos e era levantada pelos guardas, avançando sem querer.
Ouvi alguns cliques e então o barulho de uma porta pesada se abriu. Dentro do ambiente estava gelado, com ar condicionado. Ouvi barulhos de pessoas trabalhando, como um escritório: papéis, teclado, bips. Ouvi uma voz que parecia estar no comando. Ele falava com alguém e eu tinha certeza de que não estava contente. Tive a impressão de ouvi-lo dizer "desse jeito você vai acabar com eles". Depois houve gritos e ordens sendo dados. Um barulho surdo. Encolhi a cabeça entre os ombros à espera de um tiro ou de uma pancada em alguma coisa.
Muito depressa, os guardas me levaram para a sala designada. Desamarram minhas mãos e a venda foi retirada depois que a cortina da sala da enfermaria se fechou. Uma enfermeira estava na minha frente, me olhando com pesar e compaixão. Eu queria falar, interrogá-la, mas nada me vinha à mente. Ela me examinou, colocou alguns curativos e injetou algo em meu braço enquanto fiquei sentada na maca.
Então a cortina se abriu e fui surpreendida pela visão de um sujeito alto e forte, aparentando ter uns trinta anos, barbeado e o cabelo raspado, vestindo um terno cinza. Ele sorriu um sorriso de dentes artificialmente brancos. Minha pele se arrepiou.
— Olá, Grace... meu nome é Liang. Derek Liang. Estou muito honrado em conhecê-la. Estava te vendo esse tempo todo através de uma tela, e devo admitir que é mais bonita pessoalmente.
Fiquei atordoada. Era ele quem nos prendia aqui? Estava com uma comitiva de guardas atrás dele. Mascarados, eles vestiam jaqueta cinza com acolchoado de proteção nos cotovelos e nos ombros. A gola da jaqueta era alta e justa. Sobre ela, eles vestiam um colete emborrachado. Revólveres pendiam da cintura de suas calças pretas, e as mãos deles estavam escondidas em luvas pretas com placas de borracha nos dedos. Eles estavam segurando uma escopeta calibre 12. Nenhum deles fez contato visual comigo, mesmo quando eu os encarei. Aquelas eram roupas a prova de bala?
Derek levantou a mão e acariciou meu rosto. Meu estômago embrulhou e me afastei. Se não tivesse esses homens armados atrás dele, eu o teria golpeado.
— Você me criou problemas, sabia? Existem pessoas lá fora que se importam muito com você. Estão usando todos os recursos possíveis para te encontrar.
Ele termina de falar inclinando a cabeça para o lado, me analisando. Ele está muito perto, se inclinando sobre mim.
— Vocês são terroristas? — pergunto, ignorando o que ele disse.
— Não somos terroristas. Por que você acha isso?
— Se não são terroristas, não devem se comportar como terroristas. Vocês sequestram, matam, espalham o terror, como é que querem ser chamados? — questionei.
— Isso são as necessidades da guerra.
— Guerra? Então lutem contra o exército, mas não ataquem pessoas inocentes se não querem ser chamados de terroristas.
— Você faz muitas perguntas. Acho que seria uma ótima aquisição para a Companhia. Você gostaria disso? Gostaria de trabalhar conosco?
— Eu prefiro morrer — respondo asperamente.
Ele segura meu queixo com força e me obriga a olhar para ele. Derek aproxima o rosto e sussurra duramente:
— Você não vai escapar de mim.
Meus braços e pernas ficam fracos e leves. Eu estava saturada com o cheiro de sua colônia, doce e almiscarada ao mesmo tempo. Olhei em seus olhos e compreendi que era um homem capaz de muita maldade. Mas sua maldade era um escudo, não sua natureza profunda. Era mau para não ser visto como um imbecil. Nesse mundo de guerra e violência, sua aparência era proporcional à sua capacidade de castigar.
— O que você quer de mim? — Enfim pergunto.
Ele solta meu queixo com violência e ordena aos guardas que me levem de volta para a casa.
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