᳝ ࣪ ❛ ͏ 𝙘𝙖𝙥𝙞𝙩𝙪𝙡𝙤 três : amigas estranhas ៹ ✧⠀
୨ᅠᅠ﹙ ato um ﹚blame it on the kidsᅠᅠ୧
࣪៹ 𝄒 ˖ ࣪ 𓂃 ۫ . - capítulo três, amigas estranhas ꜝꜞ ᳝ ࣪ᅠ ៹ 💣 ✶ ۫
Silco era um estrategista nato, um mestre na arte de manipular o medo e a incerteza. Sua presença, por si só, era uma ameaça. Ele não precisava levantar a voz ou sacar uma arma para impor respeito, seu olhar penetrante e o peso de suas palavras faziam o trabalho.
Astra sempre o considerou um homem cauteloso, avesso a explosões de raiva ou demonstrações exageradas de poder. Ele preferia o caminho da sutileza, o tipo de controle que fazia os outros questionarem cada movimento, cada decisão, como se estivessem pisando em vidro fino.
Nos raros momentos em que Astra o viu perder o controle, a imagem era assustadora. Não pela violência em si, mas pelo contraste com o homem que ele costumava ser. Silco transformava-se em algo feroz e implacável, um lembrete de que, por trás de toda sua compostura, havia uma tempestade pronta para devastar quem ousasse cruzar a linha. Contudo, essas ocasiões eram tão raras que Astra podia contá-las nos dedos de uma única mão.
O que ela realmente odiava nele, porém, eram os castigos de silêncio.
Silco não gritava. Não jogava objetos ou usava palavras cortantes. Ele simplesmente ficava quieto. Observando. Julgando. Para Astra, essa ausência de barulho era mais ensurdecedora do que qualquer grito poderia ser.
O silêncio de Silco era um espelho que refletia seus erros, expondo suas falhas de maneira dolorosa.
Era durante esses momentos que Astra se sentia pequena, quase insignificante. Como se cada confusão que ela buscava, cada explosão que causava, fosse reduzida a uma chama fraca diante da serenidade esmagadora dele.
Ainda assim, ela não conseguia evitar. Era como se houvesse algo dentro dela que a empurrava para a bagunça, como se a ordem e o controle oprimissem sua natureza inquieta. Ela amava o caos. Ele a fazia sentir viva em um mundo de sombras e regras opressivas. Mas, no fundo, detestava admitir que Silco estava certo.
Porque ele sempre estava.
Claro, eu me meto em confusão, mas isso faz parte de Zaun!, Astra pensava irritada, após um de seus castigos silenciosos. Ela sabia que suas ações às vezes colocavam os planos de Silco em risco, mas não conseguia evitar. A adrenalina das explosões, o desafio do proibido, era isso que tornava a vida suportável naquele mundo de metal enferrujado e fumaça tóxica.
E, ainda assim, a repreensão velada dele doía mais do que qualquer outra coisa.
Silco não precisava dizer muito para que Astra sentisse o peso das consequências de suas ações. Uma palavra dele, um olhar de desaprovação, era o suficiente para lembrá-la do impacto de suas escolhas. Ele sabia como usar o silêncio como uma arma, e Astra era impotente diante disso.
Ela odiava isso.
Mas o que ela odiava ainda mais era o fato de, no fundo, saber que ele não estava errado.
O som constante das máquinas era um zumbido distante enquanto Astra subia os degraus enferrujados que levavam ao esconderijo de Silco. O cheiro do rio contaminado invadia o ambiente, misturado ao óleo e à ferrugem que parecia impregnar tudo naquele lugar. As sombras das tubulações projetavam formas grotescas nas paredes.
Silco estava sentado em sua cadeira, atrás de uma mesa desgastada. Ele segurava um copo de vidro com um líquido âmbar que refletia a luz fraca da sala. Seus olhos, sombreados pelo contorno profundo de seu rosto, estavam fixos em Astra enquanto ela entrava. Não havia gritos, nem explosões de raiva, apenas aquele silêncio pesado que a deixava desconfortável.
Astra fechou a porta atrás de si, cruzando os braços enquanto se inclinava contra a parede.
━━━ Estou vendo que você já ouviu sobre minha última escapada. ━━━ disse ela, a voz carregada com uma mistura de desafio e resignação.
Silco inclinou a cabeça ligeiramente, um leve sorriso curvando seus lábios.
━━━ Seria difícil não ouvir. Você tem um talento peculiar para causar impacto, Astra. ━━━ sua voz era baixa, mas carregava o peso de uma repreensão velada.
━━━ Não foi nada demais. Apenas uma visita a um lugar que deveria estar acessível a qualquer um. ━━━ Astra revirou os olhos.
━━━ A Última Gota não é um lugar neutro, e você sabe disso. ━━━ Silco respondeu, pousando o copo na mesa com cuidado exagerado. ━━━ Vander pode ser um tolo idealista, mas ele não é inofensivo. Cada passo que damos precisa ser calculado.
━━━ E se eu estiver cansada de calcular cada passo? De andar na ponta dos pés por causa das suas regras? ━━━ ela deu um passo à frente, tirando o capuz.
Os olhos de Silco estreitaram, mas ele permaneceu em silêncio. Aquele maldito silêncio.
━━━ Vai ficar quieto, então? ━━━ Astra pressionou, sua voz subindo um tom. ━━━ Você sempre faz isso. Nunca grita, nunca diz o que realmente pensa. Só me olha com esse maldito olhar de superioridade, como se eu fosse uma criança que precisa ser corrigida.
Silco se levantou devagar, sua figura magra e alta projetando uma sombra que parecia maior do que ele realmente era.
━━━ O silêncio, minha cara, é uma ferramenta poderosa. Ele permite que o outro revele mais do que gostaria. ━━━ ele caminhou até ela, parando a poucos centímetros de distância. ━━━ Você é impulsiva, Astra. E isso pode ser sua força, mas também sua ruína.
Ela segurou o olhar dele, mesmo sentindo o peso das palavras. Silco sabia exatamente como fazer as verdades mais desconfortáveis parecerem lições inevitáveis.
━━━ Talvez eu não queira ser moldada. ━━━ sussurrou ela, desviando os olhos por um momento.
━━━ Talvez você não tenha escolha. ━━━ Silco respondeu, sua voz baixa, mas implacável.
Astra apertou os punhos, sentindo a raiva borbulhar em seu peito. Ainda assim, ela sabia que confrontá-lo não levaria a lugar algum. Ele sempre ganhava, mesmo sem levantar a voz ou a mão.
━━━ Se isso é tudo, acho que já ouvi o suficiente. ━━━ disse ela, girando nos calcanhares e caminhando em direção à porta.
━━━ Astra. ━━━ a voz dele a parou. Ela se virou levemente, olhando por cima do ombro. ━━━ Você pode não gostar das minhas regras, mas elas existem por um motivo. Vander não é o único inimigo lá fora. Lembre-se disso.
Astra não respondeu. Saiu pela porta, descendo as escadas com passos rápidos. O peso do silêncio de Silco sufocante como o ar de Zaun, odiava ainda mais a ideia de viver sob suas regras.
Zaun era uma cidade sem limites, mas Astra sentia como se estivesse presa em uma gaiola invisível, com Silco segurando a chave. E, mesmo assim, ela não conseguia evitar empurrar as grades, sempre testando quão longe poderia ir antes que elas se fechassem completamente.
As botas de Astra ecoavam pelo corredor estreito e metálico enquanto ela se afastava do escritório de Silco. Ela precisava de um escape, algo que a afastasse daquele peso opressor. E ela sabia exatamente para onde ir.
Ao sair para as ruas, foi envolvida pelo caos que tanto amava. O ar estava saturado de fumaça, permeando cada esquina. Seu casaco escuro balançando levemente com o movimento enquanto ela ignorava as vozes que chamavam das barracas, oferecendo mercadorias questionáveis.
Seu destino era claro, a Última Gota. Não porque ela quisesse se esconder, Astra nunca fazia isso. Esconder-se implicaria medo, e ela já havia aprendido a mascará-lo há muito tempo. Mas havia algo na Última Gota que a fazia esquecer, ainda que por pouco tempo, a dureza do mundo ao seu redor. Não era o bar em si, nem as pessoas. Era Powder.
Com seu sorriso desajeitado, suas explosões de entusiasmo e um brilho nos olhos que parecia desafiar a escuridão. Powder era leveza, ainda que inconsciente, que a prendia à ideia de que nem tudo na subferia precisava ser sobre política, poder ou obrigações.
Conforme Astra caminhava, sentia-se cada vez mais atraída por essa fuga temporária. Não era apenas um desejo. Um momento longe das vozes sussurrantes de Silco, da presença vigilante de Sevika, das expectativas que nunca lhe davam descanso.
Ao atravessar as ruas estreitas, o som da Última Gota começou a preencher o silêncio ao seu redor. Risadas abafadas, o tilintar de copos e a melodia mal tocada de um velho instrumento. Tudo parecia gritar que ali dentro, pelo menos por um instante, a vida era mais simples.
E ao abrir as portas da taverna, foi como se todo o caos de fora fosse deixado para trás. Porque Astra sabia que, em meio à fumaça e às conversas altas, haveria uma figura de cabelos azuis e mãos inquietas.
Ela passou pelos frequentadores sem muito alarde, movendo-se como uma sombra até encontrar Powder em um canto, distraída com uma engenhoca que parecia uma mistura de relógio e bomba. Seus cabelos azuis estavam de um jeito desleixado, e ela parecia tão concentrada que Astra precisou se aproximar mais para chamar sua atenção.
━━━ Trabalhando em algo perigoso de novo? ━━━ perguntou Astra.
Powder ergueu os olhos, surpresa por um momento, antes de abrir um sorriso largo e cheio de alegria.
━━━ Astra, você veio! ━━━ disse Powder, sem hesitar, correu para abraçar a amiga, seus braços finos envolvendo Astra com toda a energia que uma criança cheia de entusiasmo podia reunir.
Astra ficou estática por um momento. Seu corpo endureceu com o toque inesperado, as mãos permanecendo rigidamente ao lado do corpo. Ela não era acostumada a abraços, não sabia o que fazer com o gesto. Mas o calor sincero de Powder a desarmou. Lentamente, quase hesitante, ela ergueu uma mão e deu dois tapinhas desajeitados nas costas da menina.
━━━ Ei, cuidado. Você quase esmagou minha costela. ━━━ resmungou Astra, mas havia uma leveza em sua voz, uma ponta de sorriso escondida em suas palavras.
Powder se afastou, ignorando o comentário como a maioria das provocações de Astra. Havia um brilho peculiar em seus olhos, uma mistura de excitação e alívio.
━━━ Você não apareceu. Pensei que tivesse esquecido de mim. ━━━ disse Powder, voltando para sua mesa bagunçada e pegando o objeto novamente. Ela estava nervosa, mas de um jeito bom, como se a presença de Astra fosse uma oportunidade rara que precisava ser aproveitada.
━━━ Difícil esquecer alguém que faz tanto barulho só existindo. ━━━ respondeu Astra, deixando-se cair em uma cadeira próxima.
Ela olhou ao redor, seus olhos avaliando o aparato que Powder montava. Era uma mistura desconcertante de peças que claramente não deveriam estar juntas.
━━━ Então... trabalhando em algo perigoso de novo? ━━━ perguntou Astra, arqueando uma sobrancelha enquanto apontava para a engenhoca.
━━━ Não é perigoso... ainda. Mas vai ser incrível! Você vai ver, uma explosão perfeita! ━━━ Powder soltou uma risadinha, os dedos ágeis ajustando uma engrenagem enquanto explicava.
Astra inclinou a cabeça, observando-a com uma mistura de ceticismo. Powder era uma tempestade de energia, e, embora parecesse frágil à primeira vista, Astra sabia que havia força ali. Uma força que, um dia, poderia ser perigosa.
━━━ Só tente não explodir a taverna, certo? Vander não vai gostar.
Powder apenas deu de ombros, um sorriso travesso surgindo em seu rosto enquanto se concentrava em sua criação. Para ela, o mundo era um jogo, e Astra, por mais que não admitisse, estava começando a gostar de assistir de camarote.
Powder pegou a engenhoca e começou a explicar com animação, suas palavras saindo em uma torrente quase impossível de acompanhar. Astra observava com interesse, ocasionalmente interrompendo com perguntas ou comentários sarcásticos que faziam Powder rir ainda mais.
━━━ E esta parte aqui? É um detonador ou só mais um pedaço de sucata que você encontrou por aí? ━━━ perguntou Astra, apontando para um pequeno cilindro de metal preso à engenhoca.
Powder bufou, lançando um olhar indignado.
━━━ Não é sucata! É uma peça essencial para... para... ━━━ ela fez uma pausa, franzindo a testa enquanto olhava para o objeto. ━━━ Bom, eu ainda estou descobrindo, mas vai ser essencial, com certeza.
━━━ Claro que vai. Porque nada diz 'genialidade' como usar coisas que você nem sabe o que fazem. ━━━ Astra soltou uma risada baixa, apoiando o queixo na mão.
━━━ Como se você entendesse alguma coisa de invenções. ━━━ retrucou Powder, inflando o peito de forma exagerada. ━━━ Isso aqui é ciência, Astra, não é pra qualquer um.
━━━ Ciência? ━━━ Astra arqueou uma sobrancelha, um sorriso debochado brincando em seus lábios. ━━━ Se por ciência você quer dizer juntar pedaços de lixo até algo explodir na sua cara, então você é um gênio incomparável.
━━━ Você não entende nada. Isso aqui vai mudar tudo, vai ser incrível. Todo mundo vai me admirar quando virem o que eu posso fazer. ━━━ Powder revirou os olhos dramaticamente, segurando a engenhoca contra o peito como se fosse um troféu.
━━━ Admiração é boa e tudo mais, mas, sabe, seria mais impressionante se você não perdesse as sobrancelhas toda vez que 'inova'. ━━━ Astra cruzou os braços, inclinando-se para frente, seu tom mais sério, mas ainda com uma ponta de provocação.
Powder tentou segurar o riso, mas falhou miseravelmente.
━━━ Você só está com inveja porque eu sou criativa e você... bem, só fica aí reclamando de tudo. ━━━ ela lançou uma engrenagem na direção de Astra, que desviou com facilidade.
━━━ Reclamando? Eu chamo isso de observações úteis. ━━━ rebateu, pegando a engrenagem do chão e girando-a nos dedos. ━━━ Por exemplo, minha próxima observação é que, se Vander ver você mexendo nisso aqui de novo, vai te colocar de castigo por uma semana.
━━━ Ele não vai descobrir... se você não contar. ━━━ Powder fez uma careta exagerada, abraçando a engenhoca ainda mais forte.
━━━ Hm, eu poderia guardar segredo... ou... talvez negociar um lanche grátis com o Vander. Ele faz aquele pão com carne que é muito melhor do que essas suas 'invenções'. ━━━ Astra fingiu considerar por um momento, estreitando os olhos.
━━━ Você não ousaria. ━━━ Powder arregalou os olhos, segurando o aparato como se fosse seu bebê.
━━━ Ah, pequena faísca, eu ouso de tudo. ━━━ respondeu Astra, levantando-se e caminhando na direção do balcão.
━━━ Não, não, não! Tá' bom, tá' bom! Você venceu! Eu faço o que você quiser, só não conta pra ele. ━━━ Powder correu atrás dela, quase tropeçando em suas ferramentas espalhadas no chão.
━━━ Eu sabia que você era uma negociadora nata. Talvez eu até aprenda alguma coisa com você. ━━━ Astra virou-se com um sorriso vitorioso.
━━━ Você tá se divertindo às minhas custas, não tá'? ━━━ Powder, ainda ofegante, estreitou os olhos desconfiada.
━━━ Sempre. ━━━ respondeu Astra, piscando de forma provocativa antes de voltar ao seu lugar.
As duas se entreolharam por um momento antes de explodirem em risos, o tipo de risada que só duas amigas muito diferentes, mas estranhamente compatíveis, poderiam compartilhar.
Elas ficaram ali por horas, conversando e rindo, enquanto o caos da taverna continuava ao redor. Para Astra, momentos como aquele eram raros e preciosos. Powder não fazia perguntas complicadas, não esperava nada além de companhia, e isso era algo que Astra valorizava mais do que queria admitir.
Conforme a noite caia, a taverna foi ganhando um ar mais pesado. A música parecia mais alta, as risadas mais roucas, e as conversas no fundo se tornaram murmúrios intensos. Astra mantinha um olho em Powder, mas seu instinto começava a gritar. Alguma coisa estava errada.
Enquanto Powder continuava explicando os detalhes de seu projeto, um mecanismo que "poderia fazer um estrondo maior que qualquer coisa que já vimos, mas com controle milimétrico!", Astra discretamente examinou a sala. Não era incomum que encontros na Última Gota se transformassem em algo mais... violento. E ela tinha um pressentimento que não conseguia ignorar.
Astra deixou os olhos vagarem pela taverna, registrando os rostos familiares e os desconhecidos. Vander estava no balcão como sempre, seu olhar pairando sobre os cantos da sala.
━━━ Powder. ━━━ Astra interrompeu suavemente, embora seus olhos ainda estivessem varrendo o ambiente. ━━━ Você sente algo estranho? Ou sou só eu sendo paranoica de novo?
Powder olhou para ela, confusa por um momento, antes de franzir a testa em concentração.
━━━ Estranho como? Porque, se for sobre o cheiro, foi aquele cara ali que não toma banho há semanas. ━━━ ela disse, apontando disfarçadamente para um homem no canto.
Astra bufou, mas manteve o tom sério.
━━━ Não é isso. É o clima... pesado. Parece que alguma coisa vai explodir, e não estou falando da sua engenhoca desta vez.
Powder parou por um momento, os olhos se estreitando enquanto ela tentava captar o que Astra estava percebendo.
━━━ Bom, é meio que assim por aqui, nada demais. ━━━ ela olhou em volta.
Astra cruzou os braços, claramente pouco convencida pela resposta de Powder.
━━━ Nada demais? ━━━ ela arqueou uma sobrancelha. ━━━ Pelas suas histórias, a última vez que você disse isso, a metade da rua estava em chamas e Vander teve que arrumar outra porta pra taverna.
Powder deu um risinho nervoso, mas logo balançou a cabeça.
━━━ Tá' bom, tá' bom. Talvez tenha alguma coisa. Mas, olha... se explodir, provavelmente não vai ser minha culpa. ━━━ ela piscou para Astra, tentando aliviar o clima.
━━━ Ótimo. Porque eu estou começando a achar que sua engenhoca não é a coisa mais perigosa nessa sala hoje. ━━━ Astra bufou de novo, mas não conseguiu evitar um meio sorriso.
━━━ Você tá' sempre assim, hein? Lendo a sala como se estivesse num tabuleiro de xadrez. E se, sei lá, for só gente sendo gente? Não dá pra relaxar um pouquinho, Astra? ━━━ Powder estreitou os olhos, estudando a expressão de Astra por um momento.
━━━ Relaxar não é exatamente uma prioridade quando você cresce na base de 'silêncio é punição' e 'fique atenta ou vai ser esfaqueada'. ━━━ Astra soltou uma risada baixa e sarcástica.
━━━ Bom, eu cresci ouvindo 'não toque nisso, Powder!' e 'não acenda o pavio!'. E olha só, estou viva. Quase que por milagre, mas tô. ━━━ Powder deu de ombros, sem perder a pose.
━━━ Tá' certo, pequena demolidora. Vamos ver se seu otimismo dá conta dessa sensação ruim. ━━━ Astra riu de verdade dessa vez, mas seus olhos ainda vagavam pela sala.
Powder sorriu satisfeita, mas antes que pudesse responder, um barulho alto interrompeu a conversa. O som de uma cadeira sendo derrubada ecoou, e a tensão na Última Gota aumentou como um estalo de eletricidade no ar.
Astra imediatamente voltou a ficar alerta, enquanto Powder inclinava a cabeça, claramente intrigada.
━━━ Aí, o que você falou mesmo sobre não ser sua culpa? ━━━ Astra perguntou, o tom brincalhão voltando por um instante.
━━━ Não fui eu dessa vez. ━━━ Powder protestou, embora seus olhos brilhassem com curiosidade.
━━━ Vamos sair daqui antes que você decida mudar isso. ━━━ Astra disse, já começando a puxar Powder para longe.
Antes que Powder pudesse responder, um grito ecoou pela taverna. Um homem, evidentemente bêbado, levantou-se abruptamente de sua cadeira, derrubando-a no processo, e apontou para outro no canto oposto.
━━━ Eu disse pra você ficar longe dos meus negócios, desgraçado! ━━━ ele rugiu, sua voz carregada de ameaça.
A tensão que Astra sentira explodiu como uma onda, e o caos se instalou rapidamente. Cadeiras foram derrubadas, pessoas começaram a gritar, e Vander se moveu para tentar controlar a situação antes que as coisas saíssem do controle.
━━━ Astra... ━━━ Powder puxou sua manga, a voz baixa, mas apressada. ━━━ Acho que a gente devia sair daqui.
━━━ Vamos.━━━ Astra assentiu, os olhos fixos na confusão que se desenrolava.
Ela agarrou o braço de Powder e começou a conduzi-la em direção à saída, desviando de mesas e de pessoas que já estavam começando a brigar. Mas o caminho até a porta não seria tão fácil quanto esperavam. Dois homens entraram na frente delas, claramente mais interessados em resolver suas próprias desavenças do que em deixar espaço para que passassem.
━━━ Sério? ━━━ murmurou Astra, revirando os olhos enquanto puxava Powder para trás, longe do alcance deles.
━━━ O que a gente faz agora? ━━━ perguntou Powder, apertando a engenhoca contra o peito como se fosse um amuleto.
Astra segurou o pulso de Powder com firmeza, guiando-a em direção à saída, enquanto a confusão na Última Gota aumentava. Vozes começaram a se elevar, seguidas pelo som inconfundível de vidro quebrando.
━━━ Eu não disse? ━━━ murmurou Astra, olhando para trás enquanto elas se esgueiravam pela porta.
━━━ Ainda não é minha culpa! ━━━ Powder insistiu, mas não conseguiu esconder o entusiasmo em sua voz.
Astra não respondeu, apenas a puxou para a rua escura. O ar da subferia parecia mais pesado naquela noite, com um cheiro de fumaça distante e o barulho constante das máquinas ao fundo. Ela olhou ao redor, certificando-se de que ninguém as seguia, antes de apertar o passo.
Astra e Powder caminhavam lado a lado, atravessando vielas escuras e escadas de metal enferrujado. O objeto que Powder segurava com cuidado parecia pulsar com energia própria, uma engenhoca que misturava metal, fios expostos e uma leve luz azul intermitente.
━━━ Tem certeza de que vai funcionar? ━━━ Astra perguntou, o tom levemente desafiador enquanto lançava um olhar para Powder.
━━━ Claro que vai. ━━━ ela respondeu confiante, mas havia um brilho de incerteza em seus olhos. ━━━ Só precisamos de um lugar seguro para testar. Pra onde estamos indo?
━━━ Um lugar onde você não vai conseguir explodir ninguém por acidente. ━━━ respondeu Astra, com um tom irônico.
O 'lugar seguro' era uma construção abandonada perto do limite de Zaun, um edifício que outrora fora um armazém, mas agora estava tomado pela ferrugem e pelo abandono. Eles chegaram em silêncio, Astra liderando o caminho e empurrando a porta de metal enferrujada, que rangeu alto, ecoando pelo espaço vazio.
O interior era escuro, com apenas feixes esparsos de luz que passavam pelas frestas do teto e das janelas quebradas. Pilhas de entulho estavam espalhadas pelo chão, e o ar cheirava a umidade e óleo velho.
━━━ Aqui está bom. ━━━ Astra disse, cruzando os braços enquanto observava Powder abrir cuidadosamente sua bolsa e retirar ferramentas para ajustar a engenhoca.
Powder estava em seu elemento, murmurando para si mesma enquanto ajustava parafusos e fios. Astra, por outro lado, manteve-se atenta, seus olhos escaneando a escuridão ao redor. Algo no silêncio daquele lugar parecia... errado.
E então, um barulho.
Um arrastar lento e deliberado de pés. Astra virou-se rapidamente, seus sentidos aguçados captando a presença de outra pessoa.
━━━ Parece que não estamos sozinhas. ━━━ disse ela, sua voz baixa, mas firme.
Do outro lado do armazém, uma figura emergiu das sombras. Era um homem de aparência descuidada, suas roupas eram farrapos sujos, e seus olhos brilhavam com um misto de fome e malícia. Ele tinha uma faca na mão, que refletia um fraco brilho à luz escassa.
━━━ Crianças não deveriam brincar sozinhas em lugares como este. ━━━ disse o homem, sua voz rouca enquanto dava passos lentos em direção às duas.
Astra deu um passo à frente, colocando-se entre Powder e o homem. Seu olhar era fixo e desafiador, mas dentro de si, sentia o coração bater mais rápido. Powder, por outro lado, segurava sua engenhoca com força, seus olhos alternando entre o homem e Astra.
━━━ Acho que você confundiu a gente com presas fáceis. ━━━ disse Astra, sua voz gelada, mas calma, enquanto mantinha a postura firme. ━━━ A última pessoa que tentou nos assustar ainda está procurando os dentes.
O homem riu, um som áspero e desagradável, enquanto balançava a faca de um lado para o outro.
━━━ E a última criança que me desafiou nunca foi encontrada. Que tal deixar suas coisas e sair daqui antes que eu perca a paciência?
Astra sentiu o estômago revirar, mas manteve o rosto impassível.
━━━ Powder, fica atrás de mim. ━━━ murmurou ela, sem desviar o olhar do homem.
Powder engoliu em seco, agarrando sua engenhoca com força. O homem riu, uma risada áspera e desagradável.
━━━ Ah, mas você parece indefesa, garotinha. ━━━ ele levantou a faca, avançando.
Foi um erro.
Astra moveu-se com uma velocidade surpreendente, quase sobre-humana para alguém de sua idade. Não havia hesitação, nem traço de medo em seus movimentos. Ela se abaixou no momento exato em que a lâmina foi direcionada a ela, esquivando-se com uma agilidade que parecia impossível. Antes que o homem pudesse reagir, ela agarrou seu pulso com força. A faca escapou de sua mão, caindo ao chão com um som metálico que ecoou pelo armazém.
O homem tentou resistir, mas Astra era imparável. Sua força, muito maior do que seu corpo magro e juvenil sugeria, o jogou ao chão com um impacto que arrancou um gemido de dor dele.
Astra parecia diferente. Seus olhos, normalmente brilhantes de curiosidade ou sarcasmo, agora reluziam com um brilho frio e determinado. Suas mãos, pequenas mas incrivelmente firmes, seguraram o homem pelo colarinho, puxando-o para mais perto.
━━━ Quem é indefeso agora? ━━━ rosnou, sua voz baixa e carregada de fúria.
Powder, que assistia a tudo, congelou no lugar. O sorriso travesso que ela usava tão frequentemente desaparecera, substituído por um olhar de puro terror.
━━━ Astra, espera! ━━━ Powder gritou, sua voz trêmula, quase suplicante.
Mas Astra não ouviu. Ou talvez tenha decidido não ouvir. Alguma coisa havia despertado dentro dela, algo que parecia antigo e feroz, algo que não se importava com limites ou moral. Ela ergueu o punho e desferiu o primeiro golpe.
O impacto foi ensurdecedor, a força de Astra muito maior do que a de uma adolescente comum. O homem gritou, mas ela não parou. Outro soco, depois outro, e a luta rapidamente se tornou unilateral. A respiração de Astra tornou-se ofegante, e o som surdo de punho contra carne preenchia o silêncio do lugar.
━━━ Astra, para! ━━━ Powder gritou novamente, suas mãos apertando sua engenhoca como se isso pudesse oferecer algum consolo.
Mas Astra estava distante, afundada em algo que Powder não conseguia alcançar.
Quando finalmente parou, o homem estava imóvel, seu rosto ensanguentado e desfigurado. As mãos de Astra tremiam, manchadas de vermelho. Ela ficou de pé lentamente, seus ombros subindo e descendo com sua respiração pesada.
Powder recuou um passo, o pavor evidente em seus olhos.
━━━ O que... o que foi isso? ━━━ sussurrou, sua voz um fio de som.
Astra virou-se para ela, seu rosto uma mistura de raiva e algo que parecia quase tristeza. Ela tentou falar, mas as palavras pareciam presas em sua garganta.
O silêncio entre elas era sufocante. O único som era o gotejar lento do sangue no chão.
━━━ Ele ia nos machucar. ━━━ disse Astra, a voz baixa, quase fria. ━━━ Não havia outra escolha.
Powder deu um passo para trás, os olhos arregalados e cheios de lágrimas.
━━━ Você... você matou ele. ━━━ murmurou ela, a voz quebrada. ━━━ Astra, você matou ele.
Astra tentou se aproximar, mas Powder recuou novamente, tropeçando em entulho.
━━━ Ele não era nada, Powder. Era só mais um sem teto. ━━━ disse Astra, tentando justificar suas ações, mas a expressão de Powder era de puro horror.
━━━ Você não precisava... não assim... ━━━ ela murmurou, abraçando a engenhoca como se fosse um escudo.
Astra sentiu um peso esmagador em seu peito. Não era arrependimento pelo que havia feito, mas pelo que havia mostrado a Powder. A garota, com toda sua ingenuidade, havia vislumbrado o lado sombrio de Astra, o lado que ela mesma preferia manter oculto.
━━━ Powder... ━━━ começou Astra, mas a garota balançou a cabeça, as lágrimas correndo por suas bochechas.
━━━ Não fala comigo agora. ━━━ Powder disse, a voz trêmula antes de sair correndo pela porta.
Astra permaneceu imóvel, observando enquanto ela corria para longe, a porta do armazém balançando ao fechar com força. A sensação de vazio que se instalou era quase tão esmagadora quanto o peso em seu peito. Ela não tentou segui-la, não sabia o que poderia dizer para consertar aquilo.
Ela olhou para suas mãos, ainda tremendo, cobertas pelo sangue seco do homem. Não era o ato em si que a perturbava, mas a expressão de Powder. Aquele olhar... não de medo do homem que Astra tinha derrotado, mas medo dela.
O silêncio no armazém era absoluto agora, quebrado apenas pelo gotejar do sangue e a respiração pesada de Astra. Ela inclinou a cabeça para trás, fechando os olhos, tentando silenciar as vozes na sua mente.
Você é um monstro, uma voz interna sussurrou, cruel e cortante.
Mas ele merecia, outra respondeu, tão fria quanto a primeira.
Astra forçou os olhos a se abrirem novamente, fixando-os no homem inconsciente. Não havia culpa. Ele era apenas mais um obstáculo em um mundo que não dava espaço para fraquezas. Mas Powder...
Ela balançou a cabeça, frustrada, e deu um passo para trás, quase tropeçando no entulho.
━━━ Idiota, você não devia ter feito isso. ━━━ murmurou para si mesma, sua voz baixa e amarga.
Olhando ao redor, Astra percebeu como aquele lugar, antes apenas um refúgio temporário, agora parecia opressor. Tudo ali lembrava o que ela tinha acabado de perder, a confiança de Powder, o único raio de luz em sua vida cheia de sombras.
Ela respirou fundo, limpando as mãos na calça como se isso pudesse apagar o que aconteceu.
━━━ Bem feito, Astra. ━━━ disse a si mesma com sarcasmo, antes de se virar e sair pela porta oposta, desaparecendo na escuridão.
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