UM | 299 HORAS E 54 MINUTOS
UM | 299 HORAS E 54 MINUTOS
NUM MINUTO O professor estava falando sobre a Guerra Civil. No minutoseguinte, desapareceu.
Assim.
Sumiu.
Sem nenhum “puf”. Sem clarão de luz. Sem explosão.
Sam Temple estava na aula de história, no terceiro período, olhando com expressão vazia para o quadro de giz, mas seus pensamentos estavam longe. Seus pensamentos estavam na praia, ele e Quinn. Na praia com as pranchas, gritando, preparando-se para o primeiro mergulho na água fria do Pacífico.
Por um momento pensou que havia imaginado aquilo, o desaparecimento do professor. Por um momento pensou que estava sonhando acordado.
Virou-se para Maria Terrafino, sentada à sua esquerda.
- Você viu isso, né?
Maria olhava intensamente para o lugar onde o professor estivera.
- Ei… cadê o Sr. Trentlake? — perguntou Quinn Gaither, o melhor e talvez único amigo de Sam, sentado atrás dele. Os dois preferiam carteiras perto das janelas porque às vezes, se você pegasse o ângulo certo, poderia ver uma lasca minúscula e prateada de água brilhante entre os prédios da escola e as casas mais além.
- Deve ter saído — disse Maria, parecendo não acreditar no que dizia.
Edilio, um aluno novo que Sam achava que poderia ser potencialmente legal, disse:
- Não, cara. Puf. — Ele fez uma coisa com os dedos, que era uma ótima ilustração do conceito.
Os alunos olhavam uns para os outros, esticando o pescoço para um lado e para o outro, rindo nervosos. Ninguém estava com medo. Ninguém estava chorando. Aquela situação toda parecia meio engraçada.
- O Sr. Trentlake pufou?— disse Quinn, com um risinho contido na voz.
- Ei — disse alguém. — Cadê o Josh?
Cabeças se viraram para olhar.
- Ele veio hoje?
- Veio, estava bem aqui. Estava aqui do meu lado. — Sam reconheceu a voz. Bette. Bette Ricochete.
- Ele, você sabe… sumiu — disse Bette. — Como o Sr. Trentlake.
A porta do corredor se abriu. Todos os olhares se fixaram nela. Agora o Sr. Trentlake iria entrar, talvez junto com Josh, e explicaria como tinha feito aquele truque de mágica, e depois voltaria a falar em sua voz empolgada e tensa sobre a Guerra Civil, com a qual ninguém se importava.
Mas não era o Sr. Trentlake. Era Astrid Alliston, conhecida como Astrid Gênio, porque era… bem, era um gênio. Astrid estava em todas as turmas avançadas que a escola oferecia. Em algumas matérias, estava fazendo cursos da universidade pela internet.
Astrid tinha cabelo louro indo até os ombros e gostava de usar blusas brancas engomadas, de mangas curtas, que jamais deixavam de atrair o olhar de Sam. Astrid era areia demais para seu caminhão, Sam sabia disso. Mas pensar nela não era proibido.
- Cadê o professor de vocês? — perguntou Astrid. Todos deram de ombros.
- Pufou — disse Quinn, como se aquela fosse uma boa piada.
- Ele não está no corredor? — perguntou Maria. Astrid negou balançando a cabeça.
- Alguma coisa estranha está acontecendo. Meu grupo de estudos de matemática… só tinha três pessoas na sala, além da professora. Todo mundo desapareceu.
- O quê? — perguntou Sam.
Astrid olhou diretamente para ele. Ele não pôde desviar o olhar, como faria normalmente, porque o olhar dela não era desafiador nem cético, como de costume: estava apavorado. Seus olhos normalmente penetrantes, de um azul cheio de discernimento, estavam arregalados, com branco demais aparecendo.
- Eles sumiram. Todos simplesmente… desapareceram.
- E sua professora? — perguntou Edilio.
- Sumiu também — respondeu Astrid.
- Sumiu?
- Puf — disse Quinn, agora sem rir tanto, começando a pensar que talvez não fosse uma brincadeira, afinal de contas.
Sam notou um som. Na verdade, mais de um. Alarmes de carros distantes, vindo da cidade. Levantou-se, sem jeito, como se na verdade não devesse fazer isso, e foi andando com as pernas rígidas até a porta. Astrid se afastou para que ele pudesse sair. Sam sentiu o cheiro do xampu dela, ao passar.
Sam olhou à esquerda, na direção da sala 211, onde se reunia o grupo de crânios da matemática do qual Astrid fazia parte. Na porta seguinte, da sala 213, um garoto pôs a cabeça para fora. Estava com uma expressão meio apavorada, meio divertida, como alguém logo antes de embarcar em uma montanha-russa.
Na outra direção, na sala 207, a garotada ria alto demais. Tão alto que era assustador. O pessoal do quinto ano. Do outro lado do corredor, na 208, três alunos do sexto ano saíram de repente para o corredor e se imobilizaram. Olharam para Sam, como se ele fosse gritar com eles.
A escola de Praia Perdida era uma escola de cidade pequena, com todo mundo, desde o jardim de infância até o nono ano, num prédio só. O ensino médio ficava a uma hora de carro, em San Luis.
Sam foi em direção à sala de Astrid, que seguiu logo atrás, junto com Quinn.
A sala estava vazia. Carteiras, a cadeira da professora, tudo vazio. Livros de matemática estavam abertos em três carteiras. Cadernos também. Todos os computadores, uma fileira de seis Macs velhos, mostravam telas em branco, chuviscando.
No quadro de giz lia-se claramente “Polin”.
- Ela estava escrevendo a palavra “polinômio” — disse Astrid num sussurro adequado para uma igreja.
- É, eu tinha pensado nisso — respondeu Sam, secamente.
- Já tive um polinômio uma vez — disse Quinn. — O médico fez uma operação para tirar.
Astrid ignorou a débil tentativa de humor.
- Ela desapareceu enquanto escrevia o “o”. Eu estava olhando bem para ela.
Sam fez um movimento leve, apontando na direção do quadro. Havia um pedaço de giz no chão, bem onde teria caído se alguém estivesse escrevendo a palavra “polinômio” — o que quer que isso significasse — e tivesse desaparecido antes de terminar o círculo do “o”.
- Isso não é normal — disse Quinn. Ele era mais alto do que Sam, mais forte do que Sam, um surfista quase tão bom quanto Sam. Mas, com seu meio sorriso meio doido e a tendência de se vestir com o que só poderia ser chamado de fantasia, hoje estava com bermudas larguíssimas, velhas botas do exército para deserto, uma camisa de golfe cor-de-rosa e um chapéu de feltro cinza que tinha encontrado no sótão de seu avô, Quinn tinha um jeito esquisitão que afastava uns e apavorava outros. Quinn era único, e talvez fosse esse o motivo pelo qual ele e Sam se davam bem.
Sam Temple era discreto. Mantinha-se fiel aos jeans e camisetas simples, nada que atraísse a atenção. Havia passado a maior parte da vida em Praia Perdida, estudando nesta escola, e todo mundo sabia quem ele era, embora poucas pessoas tivessem certeza do queele era. Era um surfista que não andava com surfistas. Era inteligente, mas não exatamente um nerd. Era bonitinho, mas não o suficiente para que as garotas pensassem nele como um gato.
A única coisa que a maioria do pessoal da escola sabia sobre Sam Temple é que ele era o Sam do Ônibus Escolar. Tinha ganhado esse apelido quando estava no sétimo ano. A turma estava fazendo um passeio quando o motorista sofreu um ataque cardíaco. Iam pela Auto-estrada 1. Sam puxou o homem do banco, guiou o ônibus para o acostamento, parou-o em segurança e calmamente ligou para o 911 pelo celular do motorista.
Se tivesse hesitado ao menos um segundo, o ônibus teria mergulhado pelo penhasco e caído no oceano.
Sua foto saiu no jornal.
- Os outros dois garotos, além da professora, sumiram. Todos menos Astrid — disse Sam.
— Isso definitivamente não é normal. — Tentou não tropeçar no nome dela quando falou, mas não conseguiu. Ela possuía esse efeito sobre ele.
- É. Está meio quieto aqui, brou — disse Quinn. — Certo, agora estou pronto para acordar. — Pela primeira vez, Quinn não estava brincando.
Alguém gritou.
Os três saíram rapidamente para o corredor, agora cheio de alunos. Uma menina do sexto ano, chamada Becka, estava gritando. Seu celular estava firmemente seguro em suas mãos.
- Ninguém atende. Ninguém atende — gritou. — Não tem nada.
Durante dois segundos todo mundo congelou. Em seguida, uma agitação atabalhoada, seguida pelo som de dezenas de dedos apertando dezenas de teclados.
- Não está acontecendo nada.
- Minha mãe devia estar em casa, ela atenderia. Não está nem tocando.
- Ah, meu Deus: não tem internet também. Tem sinal, mas não acontece nada.
- Tem três barras de sinal.
- No meu também, mas não tem conexão.
Alguém começou a uivar, um som arrepiante subindo pela pele. Todo mundo falava ao mesmo tempo, as vozes crescendo até virar gritos.
- Tente o 190 — pediu uma voz apavorada.
- Para quem você acha que eu liguei, imbecil?
- O 190 não atende?
- Não acontece nada. Já liguei para a metade dos números da memória, e não acontece absolutamente nada.
O corredor estava cheio de alunos, como aconteceria durante uma troca de salas. Mas as pessoas não corriam para a aula seguinte, nem brincavam, nem
giravam as trancas dos armários. Não havia direção. As pessoas simplesmente ficavam paradas, como um rebanho de gado esperando por um estouro.
A campainha tocou, alta como uma explosão. Pessoas se encolheram, como se nunca tivessem ouvido isso antes.
- O que vamos fazer? — perguntaram várias vozes.
- Deve haver alguém na secretaria — gritou uma voz. — A campainha tocou.
- Ela funciona com um timer, seu idiota. — reclamou Tom Howard. Howard era um vermezinho, mas era o capanga número um do Ore, e Ore era um bandido do oitavo ano, uma montanha de gordura e músculos que apavorava até o pessoal do nono ano. Ninguém questionou Howard. Qualquer insulto a Howard era um ataque contra Ore.
- Tem uma TV na sala dos professores — disse Astrid.
Sam e Astrid, com Quinn correndo logo atrás, dispararam em direção à sala dos professores. Voaram escada abaixo até o primeiro andar, onde havia menos salas de aulas, menos crianças. A mão de Sam encostou na porta da sala dos professores. Eles pararam.
- A gente não deveria entrar aí — disse Astrid.
- Você se importa com isso mesmo? — perguntou Quinn.
Sam empurrou a porta. Os professores tinham uma geladeira, que estava aberta. Um pote de iogurte sabor blueberryestava caído ao chão, com o conteúdo cremoso esparramado pelo tapete puído. A TV estava ligada, mas não havia imagem, só estática.
Sam procurou o controle remoto. Onde estava o controle?
Quinn achou e começou a zapear pelos canais. Nada e nada e nada.
- A TV a cabo está fora do ar — disse Sam, sabendo que aquilo era uma coisa idiota para se dizer.
Astrid enfiou a mão atrás do aparelho e desatarraxou o cabo coaxial. A tela tremulou e a qualidade da estática mudou um pouco, mas enquanto Quinn zapeava pelos canais, tudo que havia continuava a ser nada e nada e nada.
- Sempre dá para pegar o canal nove — disse Quinn. — Mesmo sem cabo.
- Os professores, alguns alunos, a TV a cabo, a TV aberta, celulares, tudo sumindo ao mesmo tempo? — Astrid franziu a testa, tentando chegar a alguma conclusão. Sam e Quinn esperaram, como se ela pudesse ter uma resposta. Como se pudesse dizer: “Ah, claro, agora entendo.” Ela era Astrid Gênio, afinal de contas. Mas tudo que disse foi: — Não faz sentido nenhum.
Sam tirou o telefone fixo do gancho.
- Não tem sinal de discagem. Tem algum rádio aí?
Não havia. A porta se abriu com um estrondo e dois garotos do quinto ano entraram correndo, com o rosto agitado.
- Nós somos os donos da escola! — gritou um deles, e o outro deu um grito em resposta.
— Vamos arrebentar a máquina de doces.
- Talvez não seja uma boa idéia — disse Sam.
- Você não manda na gente. — O garoto parecia dividido, pouco seguro de si, sem saber se estava certo.
- É verdade, moleque. Mas, olha, que tal a gente tentar ficar frio até descobrir o que está acontecendo? — disse Sam.
- Fica frio você — gritou o garoto. O outro gritou de novo e ambos partiram.
- Acho que seria errado pedir que eles me trouxessem um Twix — murmurou Sam.
- Quinze anos — disse Astrid.
- Não, cara, eles tinham uns 10 — respondeu Quinn.
- Eles, não. Os caras da minha turma. Jink e Michael. Os dois eram bons em matemática, melhores do que eu, mas tinham dificuldades de aprendizagem, tipo dislexia, que fez com que se atrasassem nos estudos. Os dois eram um pouco mais velhos. Eu era a única de 14 anos.
- Acho que o Josh, da nossa turma, tinha 15 — disse Sam.
- E?
- E aí que ele tinha 15 anos, Quinn. Ele simplesmente… desapareceu. Num piscar de olhos, sumiu.
- Corta essa — disse Quinn, balançando a cabeça. — Todos os adultos e os alunos mais velhos da escola simplesmente somem? Não faz sentido.
- Não é só a escola — disse Astrid.
- O quê? — reagiu Quinn bruscamente.
- Os telefones e a TV? — disse Astrid.
- Não, não, não, não, não. — Quinn estava balançando a cabeça, quase sorrindo, como se tivessem contado uma piada ruim.
- Minha mãe — disse Sam.
- Cara, corta essa — disse Quinn. — Certo? Não é engraçado.
Pela primeira vez Sam sentiu uma pontada de pânico, como um frio na base da coluna. Seu coração estava martelando no peito, trabalhando como se ele tivesse corrido uma maratona.
Sam engoliu em seco. Inspirou, mas era incapaz de respirar fundo. Olhou o rosto do amigo e percebeu que nunca tinha visto Quinn tão apavorado. Os olhos de Quinn estavam por trás de óculos escuros, mas sua boca estremecia, e uma mancha cor-de-rosa começava a subir pelo pescoço. Astrid ainda estava calma, mas franziu a testa, concentrando-se, tentando entender tudo aquilo.
- Temos de verificar — disse Sam.
Quinn soltou o ar numa espécie de soluço. Já estava se movendo, virando-se. Sam segurou seu ombro.
- Me solta, cara — reagiu Quinn, rispidamente. — Preciso ir para casa. Preciso ver.
- Todos precisamos ver — disse Sam. — Mas vamos juntos.
Quinn começou a se afastar mas Sam o segurou com mais força.
- Quinn. Juntos. Qual é, cara, é que nem levar um caixote, tá sabendo? Se você cai no rolo, o que faz?
- Tenta não se agitar — murmurou Quinn.
- Isso mesmo. Mantém a cabeça reta durante todo o ciclo de giros. Certo? Depois nada em direção à luz.
- Metáfora de surfe? — perguntou Astrid.
Quinn parou de resistir. Soltou a respiração com um tremor.
- É, tá. Você está certo. Juntos. Mas vamos primeiro na minha casa. Esse negócio tá estranho… Estranho demais.
- Astrid? — perguntou Sam, sem ter certeza, sem saber se ela queria ir com ele e Quinn. Parecia presunçoso perguntar, mas parecia errado não perguntar.
Ela olhou para Sam, parecendo esperar encontrar algo no rosto dele. De repente, Sam percebeu que Astrid Gênio não sabia o que fazer, nem aonde ir, estava tão perdida quanto ele. Isso parecia impossível.
No corredor, ouviram uma cacofonia crescente de vozes. Altas, apavoradas, algumas balbuciando, como se tudo fosse ficar bem desde que não parassem de falar. Algumas vozes pareciam simplesmente enlouquecidas.
Não era um som agradável. Era apavorante por si só.
- Venha com a gente, certo Astrid? — disse Sam. — Vamos ficar mais seguros juntos.
Astrid se encolheu ao ouvir a palavra “seguros”. Mas assentiu.
Agora a escola estava perigosa. Pessoas apavoradas faziam coisas apavorantes; às vezes, até crianças. Sam sabia disso por experiência própria: o medo podia ser perigoso. O medo podia fazer as pessoas se machucarem. E não havia nada além do medo correndo enlouquecidamente pela escola.
A vida em Praia Perdida tinha mudado. Algo grande e terrível havia acontecido.
Sam esperava que não fosse ele a causa.
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