capítulo | 18
A aula de hoje terminou um pouco mais cedo por que a professora acabou passando mal, o que tem acontecido com frequência, já que ela está no sexto mês de gestação. Deveria estar agradecendo por ter tempo suficiente para organizar umas coisas, só que cometi o erro de não corrigir os erros apontados pelo meu orientador no meu projeto de TCC; e isso pra ele é a mesma coisa que eu querer enterrar todo o meu grande propósito na vida.
Agora estou aqui, em plena sexta-feira, esperando Anderson, a pessoa que mais me atemoriza nesse mundo universitário, para termos um momento de orientação e conversarmos sobre a possível vaga de estágio na área de Assessoria Jurídica. Isso está me deixando bem nervosa. Primeiro por que o Anderson é machista e sexista, e segundo por que ele tem pegado no meu pé bem mais do que o normal. Que já não é tão normal assim. Algo me diz que ele vai me encher de desaforos ao ponto de eu ter que engolir calada, como se não houvesse pensamentos errôneos e distorcidos em toda a sua fala.
Obstante a isso, agradeço pela chuva que cessou e deu espaço para um dia quente e ensolarado. Como estamos no outono, há essas mudanças bruscas na temperatura, fazendo com que o clima oscile.
Compro um chá enquanto tento me tranquilizar um pouco. Mas acho que vai ser difícil, porque ouvi dizer que Anderson está com a pá virada hoje. O bom é que não é por minha causa. O ruim é que ele não quer saber disso.
Como era de se imaginar, a nossa conversa foi horrível e ele jogou toda a minha autoestima pelo ralo. Fico pensando no que passava pela sua cabeça quando me disse todas aquelas coisas? Ele não é apenas um homem crítico e exigente que acha tudo que eu produzo um lixo, mas sim uma pessoa sem caráter que acredita que diminuir uma mulher faz dele um orientador perfeito.
Paro de ficar na defensiva e vou me encontrar com a Fabiana. Ela está sentada num banco próximo ao prédio da coordenação e acena para mim quando me vê descendo as escadas.
— O que aconteceu? Você não se saiu bem na orientação quinzenal? — pergunta com um olhar compreensivo. Odeio que as pessoas sintam pena de mim, mas acho que preciso desabafar com alguém sobre como me sinto. Sento ao seu lado e respondo.
— O quê? — bufo. — Dizer que não me saí bem seria um eufemismo.
Um suspiro. Que denuncia o meu cansaço. Eu não deveria demonstrar o tanto que estou abalada, mas não consigo. Minhas emoções estão a todo vapor.
— O que ele te disse dessa vez? — pergunta ela, olhando para o trabalho todo rabiscado de vermelho em meu colo.
— As mesmas coisas de sempre. Só fez questão de acrescentar que eu sou mulher e que por isso preciso me dedicar mais. Que ele não quer perder o tempo dele comigo e que a sua preferência no que diz respeito ao Direito, são os homens. Portanto, eu deveria ser grata e fazer o meu trabalho com mais empenho.
— Eu sabia que ele não deixaria os comentários machistas de lado — diz Fabiana.
— Pois é, todo mundo sabe da fama dele, mas me chateia que ninguém faça nada a respeito.
— Então, Gioh, o que você pretende fazer a respeito? — pergunta, depois de algum tempo.
— Nessa questão, nada. Pretendo apenas corrigir esse trabalho e tentar chegar ao nível de perfeição exigida. Sabendo que isso é um pouco impossível, né? Ele coloca critérios exagerados e irreais.
— Nem posso falar nada, por que eu também não sei o que faria no seu lugar. Mas eu vi o seu trabalho, não está nem um pouco ruim. Agora o meu, — ela levanta as folhas de papel sulfite todas rabiscadas — está longe de estar bom. Quanto ao seu, talvez precise mesmo de umas correções, mas o que ele espera? Somos universitárias, estamos aqui para errar e aprender — ela faz uma pausa e depois acrescenta: — Droga, eu odeio esse homem.
— Por que odeia tanto o Anderson? — pergunto com curiosidade.
— Como alguém não odiaria ele, Gioh?
Ele sai do prédio da coordenação e entra em seu carro, e meu estômago meio que dá um pulo. Não sei se por repulsa ou por que estou realmente enjoada, já que hoje eu vomitei pela manhã.
— Você tem razão — falo, por fim.
Fabiana balança a cabeça e fica em silêncio, mas tudo nela me garante que quer dizer mais alguma coisa.
— Ele já fez alguma coisa com você?
— Não o que você está pensando. Mas sim, ele foi um babaca completo comigo.
— O que ele fez?
Minha amiga pensa por um instante e, como quem sabe que precisa falar, diz:
— Ele interrompeu a minha monitoria quando engravidei, alegando que eu não teria como dar conta. Além disso, me deixou na mão na questão da orientação. Me acusou de não ter tido responsabilidade e de ter estragado tudo quando eu resolvi "abrir as pernas". — Ela faz aspas com as mãos e eu fico chocada com o que acabei de ouvir.
— Não acredito que ele falou isso — digo por força do hábito, mas acredito em cada palavra.
— Foi terrível, sabe? Eu já estava sofrendo por ter engravidado ainda estudando, por não ter o apoio dos meus pais na época e pelo pai da criança ter me acusado de golpe da barriga, já que ele era meu ficante e não queria ter nada sério. O que é ridículo, obviamente. Como se eu quisesse estragar todo o meu futuro sendo mãe ainda jovem e sem nenhum preparo e apoio só para prendê-lo comigo.
— Então foi por isso que você trancou o curso e só retornou agora, não é?
— Sim. Eu relutei bastante, mas não teve jeito. O pior de tudo foi que eu acreditei em toda barbaridade que o Anderson jogou na minha cara. Ele desmereceu a minha inteligência, desvalorizou tudo o que passei anos construindo. Sabemos que o machismo acontece no mundo do Direito de forma implícita, mas ele foi totalmente explícito através das palavras que usou.
— Ele foi grosseiro comigo também. Disse que sou muito emotiva, sem comprometimento e que se soubesse que eu seria assim diante de uma tarefa desafiadora, teria dado preferência ao Fábio.
— Eu odeio como muitas vezes o Direito privilegia os homens. Quando entrei nesse curso, imediatamente senti que aqui não era meu lugar. Desde criança eu via meu pai apaixonado por esse mundo cheio de leis, poderes, deveres e impedimentos. Quando fui para o ensino médio comecei a me sentir interessada pela forma como o Estado se organiza, pela atuação judiciária e como tudo isso funciona aqui no Brasil, mesmo com todo o déficit. Eu sempre me dediquei ao curso, dava o melhor, estudar dia e noite. Só que acima de toda responsabilidade, comprometimento e paixão, eu sou uma pessoa que tem o direito de se divertir e ter escolhas não tão assertivas.
— Claro. E isso não anula o fato de você ser uma boa profissional. Se anulasse, não teríamos tantos homens exercendo a profissão.
— Lógico. Só que quando eu engravidei e precisava do apoio da coordenação do curso e do meu orientador para seguir em frente, ele fez com que eu me sentisse deslocada. Cheguei a pensar em desistir diversas vezes por causa desse incômodo que é gerado por uma estrutura de anos. Nunca fui o problema, mas até perceber e entender tudo isso... tive dois anos roubados.
— Olha, ele não devia ter dito ou feito nada disso, mas fico feliz que não tenha desistido. Sabe, nem ele e nem ninguém tem o direito de fazer com que caiamos no descrédito só por que somos mulheres.
— Não, eles não podem, mas ainda fazem — ela acrescenta. — Fez comigo, com outras meninas e agora com você.
— Tá, o que a gente pode fazer então?
— Quem sabe reunir provas suficientes para dar uma queixa. Eu não tive coragem na época.
— Você tem razão. Vou pensar em como podemos fazer isso depois — eu digo tentando me recompor.
Fabiana dá um sorriso e levanta a sobrancelha sugestivamente. Sei que ela quer me perguntar alguma coisa, mas está com vergonha ou pensando bem antes de falar.
— O que você quer saber?
— Nada.
— Sério?
— Não. Olha, eu quero muito ir ao show do Lucas que vai ser na cidade aqui perto. Será que rola descolar um par de ingressos?
— Não sei, mas posso ver com ele. Só pra você?
— Se puder, pra mim e para o carinha que estou ficando. Vou aproveitar que meu filho está com minha mãe para curtir um pouco.
— Pode ser. Vou falar com ele e te digo.
— E você, pretende ir?
— Não sei.
— Vamos. Vai ser muito divertido! Além do mais, não deveria deixar seu namorado sozinho nesses shows. O Lucas é muito bonito e as fãs são descontroladas na maioria das vezes. Eu mesma sempre quis ficar com ele.
Eu me sinto com vergonha, mas Fabiana alivia o clima me dando um soquinho no ombro.
— Ah, não finja que ele não é gostoso! Ele só precisa erguer aquela sobrancelha com risco lateral e as calcinhas automaticamente caem no chão.
Fabiana lambe os lábios e abana o pescoço.
— Você não deveria me falar isso, sabia?
— Não devo ser realista, Gioh?
Reviro os olhos.
— Desculpa falar isso, preciso aprender a segurar a língua, mas não deixa de ser verdade e eu vou sempre preferir ser sincera. — Respiro fundo e observo com cuidado o que ela vai dizer em seguida. O medo de ela confessar que está interessada por Lucas me atinge. — Mas não se preocupe. Só usei a imagem dele na minha cabeça enquanto ele era solteiro e, mesmo que não fosse, Lucas não faz o meu tipo. Só queria ele pelo sexo, porque parece ser muito bom. Fora isso, o garoto adora compromisso e eu fujo disso como o diabo foge da cruz. Não daríamos certo. Ele combina com você... Desde sempre — ela diz, sorrindo.
— Então, alguém já disse que você não deveria dizer essas coisas na frente da namorada do cara? — pergunto, por fim.
— Não. E nem precisa. Por que eu só tô falando isso para te encher a paciência. Ele é lindo, mas não faz meu tipo e pronto. Agora arranje logo esses ingressos.
— Vai à merda — falo, com um sorrisinho.
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