Capítulo 1
Os automóveis passavam buzinando, e os rapazotes seguiam impressionando em suas lambretas pretas, enquanto as mocinhas esperavam nas portas das escolas, prontas para um namorinho de portão. Era um ciclo vicioso e quase o mesmo tanto, delicioso.
Suzi seguia apressada, carregando os cadernos em um abraço. Passava despercebida entre a multidão que parecia se amontoar, pronta para paquerar, com o término do horário escolar. Porém, ela já estava totalmente acostumada a passar despercebida, tanto porque havia outras mil garotas ali usando o mesmo rabo de cavalo e a mesma sainha pregueada com sapatos e meias; inclusive a sua irmã Lúcia, que costumava gabar-se de ser noiva de um dos maiores partidos da cidade.
A garota abaixou a cabeça e suspirou, ao pensar que aquilo era uma grande perda de tempo. Contudo, mesmo se afastando das moças mais velhas, que já estavam cursando o magistrado, e então seguindo diretamente para a saída, a fim da liberdade, ela não pôde escapar de um encontrão com Henrique.
Bateu forte no peito do rapaz, pois ao contrário de Suzi, Henrique era bastante alto. No entanto, mesmo que de cima, ele lhe lançou um olhar sorridente com os seus olhos negros.
― Bom dia, ternurinha.
O rapaz apanhou os materiais escolares de Suzi e lhe sorriu. Ela pôde ter um vislumbre completo do rosto de Henrique, e ele até que não era nada mal, com o seu topete castanho e um sorriso muito aberto.
― Bom dia, Henrique.
― Posso lhe acompanhar até a sua casa? ― insinuou-se, como se quisesse que aquilo virasse parte da rotina.
― Pode.
Ela sorriu, direcionando-lhe os olhos extremamente azuis.
Seguiram andando juntos, porém não tão próximos assim, pois não eram namorados, apesar de Henrique desejar muito ter um xaveco com a moça. Porém, ela estava centrada em outras coisas, que não o rapaz.
― Sua irmã é tão xexelenta assim somente porque fisgou o maior pão do pedaço? ― Henrique riu, tentando puxar assunto.
― Oh, não! ― Suzi sorriu um pouco sarcástica. ― A Lúcia é xexelenta porque ela é xexelenta, simples assim.
― Entendi a diferença.
Henrique gargalhou, achando graça.
― Os meus pais a mimam e ela tem uma beleza graciosa, então...
Piscou um de seus olhos azulados para o rapaz.
― Mesmo assim, eu ainda acho que o cara tem que ter tomado umas e outras para poder achar ela mais bonita do que você, ternurinha.
Piscou um dos olhos em resposta, retomando o flerte.
Suzi sempre soube que era exatamente ali que ele queria chegar, mas não o culpava por isso. Henrique era um rapaz legal, porém ela apenas não estava interessada nele o bastante para se enamorar.
Andaram apenas mais alguns metros, até encontrarem a silhueta magra ― quase seca ― de Isabel. A moça não precisava dizer o que estava indo fazer, pois todos sabiam que ela estava indo xeretar, atrás de algum babado ou outro fuxico grande. Pois aquela era a sua grande diversão, enquanto ela, hiperativa como era, não conseguia parar quieta em algum canto e nem se manter calada.
No entanto, Henrique sendo o seu vizinho desde a infância, já havia se acostumado com o modo destrambelhado da garota. E até poderia se considerar o seu amigo.
A garota chegou afobada, sem acenar e nem nada. Só parecia ansiosa por falar.
― Ouviu dizer que a sua irmã também caiu no bico do Otto? ― Isabel tropeçava nas palavras, ofegando. ― Agora a sua família vai passar por uma barra com esse bafafá, não é?
Olhou diretamente para Suzi, que então encarou Henrique, pasmada.
― Aonde ouviu isso, Isabel? ― Suzi a questionou. ― Tome cuidado com o que fala, para não arrumar um grande bode com a sua língua grande.
― Não é mentira. Eu mesma vi eles se beijando ontem, em frente à Salomé ― ela jurou, fazendo figas e beijando-as.
Henrique segurou de leve no ombro de Suzi.
― Oi para você também, Isabel ― Henrique a provocou, fechando a cara para ela.
― Ah, oi Henrique. ― Sorriu para ele e logo se virou de volta para Suzi: ― Isso é uma sacanagem com o pão do Victor. Um cara tão cavalheiro e abonado como ele e a Lúcia fazendo isso. ― Balançou a cabeça em desgosto.
Henrique se afastara de Suzi e deu um cutucão no braço magro de Isabel.
― Você deveria era ficar com a língua dentro da boca. É muito matraca, Isabel!
O rapaz a repreendeu com uma olhadela de esguelha.
― Você mesmo sabe que o que eu estou falando é só a verdade... ― Encarou Henrique, afoita. ― Se tiver que dar zebra para alguém, não será para nós.
Suzi se aproximou, incrédula.
― Quer dizer que você também viu isso, Henrique?
― Não teve como não ver... estavam descarados demais, bem em frente ao café da Salomé.
Tentou se desculpar, abaixando a cabeça.
― Mas que cretina! ― Suzi cruzou os braços. ― Eu não esperava tanto da Lúcia, sinceramente.
― Pois é... a sua irmã não anda respeitando os preceitos da sua residência e anda participando de uma boa zorra com o podre do Otto. ― Isabel endossou o acontecido com um sorriso preocupante. ― Vira e mexe ela está por aí com aquele mau caráter.
― Pobre Victor! ― Suzi suspirou, pegando os materiais escolares com o amigo. ― Tenho que ir... depois nos falamos, Henrique!
Suzi logo se distanciou de Isabel e Henrique. O rapaz tentou apressar o passo para acompanhá-la, mas percebeu que ela não desejava a sua companhia e então apenas recuou com o rabo entre as pernas.
Isabel se virou curiosa, porém ele lhe encarara de um modo que ela logo entendeu, que não deveria dizer mais nada. Apenas seguiram calados em direção à Avenida das Rebouças.
Do outro lado da cidade, Max se reunia com o seu pai no escritório do Mercado Santana ― de onde a família era dona há pelo menos uma década.
O lugar estava começando a dar lucros e eles já cogitavam a possibilidade de abrirem uma filial.
Ichigo começava a ver então bons frutos em ter deixado Tóquio e se aventurado em negócios brasileiros, pois agora as coisas começavam a florescer para além do seu casamento com a brasileira Marta.
O primogênito do casal estava cético, enquanto conversavam de negócios, mas o pai desejava falar de algumas coisas mais com o filho.
― Os Abrantes fazem ótimo gosto do casamento entre você e Sofia...
Os olhos puxados de Ichigo brilharam por detrás do vidro de seus óculos.
― Pai! ― Max chamou a atenção do pai, franzindo o cenho. ― A Sofia é apenas uma zinha, que pensa em se tornar freira e vive coberta da cabeça aos pés.
Balançou a cabeça em reprovação.
― Ela pode deixar de querer ser freira. E o fato de ela ser nova, não impede que ela seja uma ótima esposa, ainda mais por ser fervorosa e se preservar.
Ichigo rodeou o filho, bastante interessado no assunto.
― Podemos falar disso depois? ― Max se sentou no sofá, pegando um cigarro para fumar. ― Precisamos falar da filial na Rua Alberto.
― Tudo bem. ― Ichigo suspirou, desistente. ― Voltemos então a falar de negócios.
Na sala a sintonia gritava, anunciando que alguém escutava a radionovela. Sofia estava sentando no sofá, escutando e pressionando um terço de contas de madeira contra as suas mãos.
Logo seria a hora da missa e ela mal podia esperar para se confessar e para poder falar com o padre, de que estava mesmo decidida a ser levada para o convento.
Estava um pouco dispersa entre os diálogos de amor que soavam do rádio e os seus próprios pensamentos, mas não pôde deixar de ouvir uma chamada na janela.
Assustou-se ao se lembrar que a sua mãe havia ido fazer a feira e que ela não esperava por visitas, enquanto os seus pais não estavam em casa.
Afastou a cortina da janela com cuidado, enquanto um fino véu azul escondia o seu rosto. Ela achou ser dona Celeste, atrás de um pouco de açúcar e conversa fiada, porém assustou-se ao ver o bandido do Otto, parado perto da sua janela.
Arrepiou-se da cabeça aos pés, fechando a cortina em um arrancão e com a respiração ofegante, completamente amedrontada por tal presença.
― Abra a porta, ternurinha! ― A voz de Otto ressoou grave contra o batente. ― Não precisa mais ouvir a jovem guarda, eu posso lhe fazer uma serenata e te dar todo o amor que deseja. ― Riu, completamente malicioso.
― Suma daqui, demônio! ― ela respondeu, agarrando-se ao terço. ― Suma daqui, sua figura pecaminosa!
― Deixa eu te mostrar que eu sou bom.
Otto esmurrou a janela, como se fosse arrancá-la.
― Pare já com essa zoeira. Eu sou uma garota de Deus e não vou escutar mais os seus pecados.
Sofia tapou os ouvidos, entrando em transe ao imaginar que ele era bandido o bastante, para lhe arrombar a porta.
― Garotas de Deus também gostam de um pouquinho de amor. ― Ele testou o trinco e se enfureceu, remexendo o cabelo loiro. ― Abra, Sofia!
― Não!
Ela se encolheu atrás de um móvel, completamente acuada.
Alguns segundos de silêncio se passaram, até que ela pôde ouvir passos firmes brandirem na direção contrária de sua casa.
Arriscou-se a espiar pela janela e pôde ver a silhueta alta e musculosa de Otto sumindo, ao atravessar a rua, como se estivesse irado. Porém, ela suspeitou que ele estivesse viajando em alguma onda, pois o rapaz parecia mais descarado do que antes, ao ter a desfaçatez de ir até a sua casa.
Caso o seu pai estivesse ali, com certeza, o mataria. E era por essas e outras, que que ela queria antecipar a sua ida para o convento o quanto antes.
Na estação Luz Real, Victor saltava do trem que acabava de trazê-lo da capital. Estava de viagem, concluindo o seu curso de Medicina, o que o fazia muito feliz, pois a partir daquele instante, estaria permanentemente ali em Luisiana ― e o mais breve possível, poderia se casar com a sua adorada Lúcia.
Ele não esperava que ninguém fosse esperá-lo ali, pois havia chegado antes do que o combinado, então apenas se encaminhou para pegar um carro até a sua casa.
Ao adentrar no táxi de Marcone, acenou para o homem e se acomodou confortavelmente no banco traseiro do carro.
― Boa tarde, senhor Marcone.
― Boa tarde, Victor. ― O velho virou-se para trás e lhe sorriu. ― Voltando para a vida mansa?
― Mais ou menos, não é mesmo? ― ele disse com bom humor, ao ver a sua cidade natal passando pelos vidros dos carros. ― Agora vou começar a atender no consultório da Rua das Mercês.
― Boa sorte, rapaz! ― disse o idoso. ― E o casório com a senhorita Lúcia, é para logo?
― Sim, pretendo adiantar logo essa cerimônia ― o rapaz disse, com um grande sorriso nos lábios. ― Agora que estou formado, por que esperar, não é mesmo?
― Está certo. Ainda mais que a menina Lúcia é um primor de formosura.
― Ela é realmente um broto.
Logo o táxi do senhor Marcone estava parado em frente à residência dos Albuquerque e tudo o que Victor menos esperava, era encontrar a futura cunhada parada ali em frente.
O jovem médico então pagou o senhor Marcone e ao se dirigir à Suzi, percebeu que a garota mantinha na face uma expressão muito preocupada.
― Aconteceu algo, Suzi? ― ele questionou. ― Houve algo com a Lúcia?
Suzi olhou para ele, parecendo desesperada e envergonhada, tudo ao mesmo tempo.
― Ah, Victor! Na verdade, houve, sim ― ela disse, já se desculpando com os seus olhos azuis. ― Como você é um bom rapaz e sei que não merece, vim até aqui para lhe dizer que a Lúcia anda te traindo com o Otto Moraes.
― O quê? ― Victor perguntou, com a alma quase saindo do corpo. ― Isso não é fuxico de gente invejosa, Suzi?
― Eu até pensei que fosse, mas várias pessoas já me confirmaram esse bafafá ― ela disse, cheia de pesar nos olhos. ― E como sei que não merece, quis vir lhe falar, antes que o burburinho chegasse até você através de outras pessoas. Eu sinto muito, Victor!
O rapaz lançou um olhar triste e perdido para Suzi, que logo se encaminhou para ir embora, pois sabia que poderia ficar com o fogo na roupa, se alguém a visse de papinho com o noivo da sua irmã, bem no meio da rua. E para a sua família, já bastaria a honra perdida de Lúcia e toda a conversa fiada que se formaria na cidade, em torno de todos os Gonçalves.
― Obrigado de verdade, Suzi ― ele disse, sem antes ter esperado lealdade daquela garota que estava parada à sua frente ― Quer entrar e tomar um refresco?
Victor ofereceu ao ver que Suzi havia caminhado até ali debaixo do sol, somente para que ele não fosse pego desprevenido, quando a fofoca batesse na sua porta.
― Não mesmo, mas muito obrigada ― ela disse com a cabeça baixa. ― E eu espero que um dia possa perdoar a nossa família pela traição da minha irmã.
― Eu sei que nem você e nem os seus pais têm culpa disso ― ele disse com sinceridade. ― Pode ficar tranquila, Suzi.
― Então tchau, Victor.
― Tchau, senhorita Suzi.
Logo ele observou a silhueta franzina da garota ir sumindo rua à fora e então suspirou, sem saber como encarar a sua vida, que acabava por desmoronar sobre a sua cabeça.
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