9 - vermelho brilhante
ACABO DE PERCEBER que me livrei de um item da minha to do list. Sentada no capô do carro da Jasmine, eu assisto ao ensaio da Garotas Rebeldes em Combustão sabendo que estou vivendo uma cena de filme. Tá, sei que eu devia ser realista e não colocar coisas como viver uma cena de filme numa lista que pretendia — sim, no passado — realizar, mas essa nem é a pior coisa de todas. Há um item em específico muito mais impossível naquela lista idiota. Acho que foi por isso que acabei desistindo dela.
Mas, sério. Essas garotas são incríveis. Elas estão arrasando, mesmo que esse seja só um ensaio costumeiro. Isso não parece importar para elas, porque estão dando tudo de si, as três ocupando como podem o espaço minúsculo dessa garagem apertada.
Mabel já foi embora há um tempo, então eu assisto ao ensaio sozinha. É quase como uma apresentação particular, o que faz eu me sentir importante. Privilegiada. Não é qualquer um que tem a oportunidade de assistir sua banda favorita tocar assim, de tão perto. Porque é claro que essa já é a minha banda favorita. Afirmo isso com a maior convicção do mundo.
— Desculpa, desculpa! — Lennon exclama quando erra uma nota, parando de tocar em seguida. — Eu tô péssima hoje, foi mal, gente.
— Tá nervosa, é, Frida? — pergunta Lana, relaxando a postura e parando com as baquetas. — Se eu não te conhecesse, diria que é porque temos visita.
Fico em silêncio, sentindo o meu rosto queimar um pouco. Desvio o olhar quando Lennon me encara de soslaio, também levando o foco para outra direção logo depois.
— Deixa de ser idiota — ela resmunga, fingindo afinar a guitarra. — Acho que eu só tô ficando com fome. Não querem parar pra comer alguma coisa?
— Por favor! — Jas implora, largando o baixo no sofá empoeirando no canto da garagem. — Não como nada desde o meu turno na praia.
— E aí, Nina? Que tal outra tarefa como uma garota rebelde? — Lana pergunta, e eu sorrio enquanto pulo do capô. Me aproximo dela, que me entrega seu telefone já desbloqueado, a tela mostrando a chamada pronta para ser iniciada. — Liga pra pizzaria e pede uma pizza tamanho grande de... Qual sabor, galera?
— Muçarela.
— Carne de sol.
Lana suspira, encarando as amigas com as sobrancelhas franzidas e uma expressão exageradamente chateada. Fofinha.
— Droga, eu queria uma de brócolis.
— Que tal se a gente pedir uma de quatro sabores? — sugiro, ajeitando alguns dos cachos que caem em cima dos meus olhos. — Eu peço uma de... — penso por alguns segundos —... calabresa, e aí cada uma tem a pizza que quer.
Elas me encaram como se eu fosse a pessoa mais inteligente do mundo, Lennon com uma mão na cintura e um sorriso no canto dos lábios. De novo, desvio o olhar.
— Boa, mas acho que eles só fazem pizza de no máximo dois sabores, Ninazinha — avisa Jas, também com um sorrisinho.
— Não custa nada perguntar — digo, clicando na tela e iniciando a chamada. — Como garotas rebeldes, vocês precisam pensar fora da caixa, não acham?
— É isso aí, já pegou o espírito da banda — responde Frida, batendo de leve a sua cintura na minha. — É obrigação nossa pensarmos fora da caixa.
— É, mas agora eu só consigo pensar na caixa de pizza — brinca Lana, e ainda estou rindo quando ouço o funcionário atender do outro lado da linha.
JÁ ANOITECEU HÁ horas, e relaxamos no chão da garagem depois de tantos pedaços de pizza. Pizza de dois sabores. Acho que, mesmo sendo garotas rebeldes, não há muita coisa no mundo que a gente consegue controlar. Ainda assim, reclamamos desse absurdo com voracidade, mesmo que não estejamos irritadas com isso de verdade.
— Que dificuldade teriam em fazer pizza de quatro sabores? — protesta Lana mais uma vez, dividindo a última fatia da pizza de brócolis em quatro pedaços minúsculos. — Aposto que nunca tentaram fazer.
— Quando a gente ficar famosa e tiver muito dinheiro — avisa Jasmine, de boca cheia —, vamos atrás de uma boa pizzaria que nos faça uma de quatro sabores. Tipo, é obrigação nossa fazermos isso, OK? É a nova meta da banda.
— Sim, senhora — garante Lennon, fazendo uma continência e soltando uma risada logo em seguida.
Sorrio sem jeito, um pouco tímida. Sei lá, sinto que estou invadindo o espaço delas, mesmo que eu saiba que não é isso que está acontecendo. Elas parecem muito confortáveis comigo aqui, até fazem questão de me introduzir na conversa o tempo inteiro. E poxa, foram elas que me convidaram, pra início de conversa. Se não me quisessem aqui, nem teriam feito questão de me ajudar com a mamãe.
Confiro o celular, a mensagem da Dona Ângela ainda piscando nas notificações não lidas. Um emoji de sinal de positivo, sua forma de dizer que está tudo bem em eu ensaiar mais um pouco com a banda estudantil. O problema é que essa desculpa não vai colar por muito tempo, e em breve eu precisarei de algo melhor do que isso. Algo duradouro. Alguma coisa que justifique minha ausência na hora do jantar no mínimo três vezes por semana. Porque, enquanto eu devoro esse pedaço minúsculo que restou da pizza, eu sei que vou continuar ajudando essas garotas.
— O que achou do ensaio, Nina? — pergunta Lana, afastando a caixa vazia de pizza e se deitando no chão, sua cabeça apoiada em uma das coxas de Lennon. — E por favor, seja sincera.
— Vocês são incríveis! — digo, sorrindo feito uma boba. Acho que quando o assunto é essa banda, ser boba é inevitável. — Juro que eu poderia ver vocês tocando por horas.
Jasmine ri.
— Espero que continue com esse pensamento, não quero que enjoe da gente tão cedo. Mas sério — ela diz, apontando o indicador na minha direção —, seu trabalho seria coisa bem fácil em dias de ensaio normal, basicamente o que você fez hoje. Ajustar as caixas de som, ajudar a empurrar as coisas na garagem pra gente ter espaço, pedir pizza. O trabalho duro mesmo vai vir quando a gente fizer outro show.
— Mas nada que Nina Avante não tire de letra — Lennon garante, piscando rapidinho para mim. — Sem falar que você, garota, entende tudo de música! Aposto que vai ajudar bastante a gente, também.
Solto uma risadinha afetada, sem saber como responder. Eu não entendo tudo de música, mas é claro que posso dar umas dicas no que puder. Quem sabe até ajudar a bolar umas composições, se elas estiverem a fim.
— Você toca piano, não é? — pergunta Lana, se ajeitando no chão e olhando melhor para mim.
— Uhum. Tô estudando pra entrar na Academia de Artes de Velha Laguna, pra companhia de música de lá — explico, dando de ombros. — É mais o sonho dos meus pais do que o meu, pra falar a verdade.
— Caraca, que bizarro isso — comenta Jas, balançando a cabeça algumas vezes. — Tantos pais querendo que os filhos sejam médicos ou advogados, e os seus querendo que você estude música! É incrível.
Faço uma careta.
— É, acho que sim. Pelo menos devia ser — respondo, soltando um suspiro. — Eu adoro música, não me levem a mal, mas não acho que seja isso o que eu quero.
— E o que você quer? — pergunta Lennon, seu sorriso ainda nos lábios, me deixando intimidada.
Engulo em seco.
— Estudar Cinema? — admito, a resposta soando como uma pergunta. — Nossa. Eu nunca contei isso pra ninguém antes...
— Então acho que já podemos nos considerar garotas especiais — diz Lana, apertando os olhos na minha direção.
— É, Super-Homem — sussurra Lennon, me encarando de cima a baixo. — Até que combina com você. Acho que você devia fazer isso.
Sorrio, sem jeito.
— Valeu.
O celular vibra no meu colo, quase me fazendo pular de susto. Vejo outra mensagem da mamãe piscar na tela, perguntando se o ensaio já está chegando ao fim. Leio a mensagem umas três vezes, meio dopada, focada demais na conversa e sem entender o porquê dessa preocupação toda, até encarar a barra superior do meu celular. Meu Deus, já passam das oito da noite. Eu disse que estaria em casa às sete e meia.
— Gente, me desculpa... — peço, me levantando do chão e limpando a poeira nos meus joelhos —... mas eu preciso ir.
— Ai, desculpa a gente, Nina! — pede Jas, também se levantando. — Não devíamos ter te prendido por tanto tempo.
Ela vai até a mochila e busca as chaves do seu carro, as balançando no ar em minha direção. Busco as minhas coisas e estou pronta pra me despedir das garotas, quando Lennon pergunta:
— Você vai aproveitar e já ir pra casa ou vai voltar pra cá, Jas? Porque se for voltar, eu não me importo em ir deixar a Nina.
Vejo Lana, ainda com a cabeça apoiada na coxa de Lennon, erguer as sobrancelhas para Jasmine, que sorri um pouquinho antes de dar de ombros. Ela joga as chaves para a amiga, que espera a outra tirar a cabeça do caminho para que possa se levantar, ficando em pé à minha frente. Droga. Não gosto do fato de Lennon ser muito mais alta do que eu. Não podia ser uns dois ou três centímetros? Precisa mesmo ser uns dez?
— Vem comigo? — ela pergunta, sorrindo e fazendo as chaves tilintarem no ar.
Finalmente me despeço das garotas antes de seguir Lennon até o carro, me jogando no banco do carona. Estou cansada. Não dormi noite passada, precisei assistir todas as aulas sem tirar um cochilo sequer e ainda aguentei as três horas na Ardentia. Tá bem que talvez eu tenha esquecido desse cansaço durante o ensaio, mas ele agora me atinge com tudo. Juro que eu poderia dormir agora mesmo se eu fechasse os olhos por um...
— Ainda mora no mesmo lugar, não é? — Lennon questiona, o carro já saindo da estradinha da garagem da casa da Lana e alcançando a rua. Acho que realmente cochilei por uma fração de segundo.
Assinto, esfregando os olhos.
— Eu adorava o seu apartamento, sabia? Apesar de não gostar muito das aulas de piano, adorava ir lá. Achava ele muito chique.
— Não sabia que não gostava das aulas... — digo, a encarando de soslaio.
Lennon sorri.
— Não é que eu não gostasse, eu só... nunca fui de insistir muito em coisas que não sou boa, entende?
— Mas isso é importante, não? Como você quer ser boa em alguma coisa se não insistir nela antes?
Ela faz uma curva na estrada, chegando na Avenida Litoral. Hoje ela está surpreendentemente lotada, então presumo que haja algo rolando no Clube Água-Viva essa noite. Iara não me mandou mensagem alguma desde que foi resolver as coisas com o Juliano, então não duvido nada que minha melhor amiga esteja agora mesmo no clube, aos beijos com seu namorado ridículo.
— Talvez você esteja certa — assume Lennon depois de um tempo em silêncio, me fazendo voltar para a conversa —, mas acho que a gente só devia insistir naquilo que quer aprender. E eu nunca quis aprender a tocar piano. Meu pai que me forçou a fazer aulas porque queria que a filha tivesse "educação erudita" — Ela faz as aspas no ar com uma mão só, sorrindo em seguida. — Vê se pode? Como se eu tivesse jeito pra isso.
Sorrio, e um bocejo escapa sem querer.
— Você tá cansada, né?
— Um pouco. Mas tá tudo bem.
— Mesmo?
A encaro no escuro do carro, Lennon com os seus olhos enormes em mim. Eles brilham com a luz externa refletindo neles, o que faz parecer que ela está prestes a chorar ou algo do tipo. Assinto.
— Mesmo.
— Hm.
— Tô falando sério, Lennon!
Ela não responde, o silêncio preenchendo o carro assim que paramos em um sinal, a luz vermelha deixando tudo dentro do veículo no mesmo tom. Nossos rostos, nossas roupas, nossos olhos. E é claro que estou sendo totalmente metafórica quando digo que até nosso silêncio parecia assim, meio vermelho brilhante também.
— Tá bem, acredito em você — ela finalmente diz, o sinal mudando para verde. — E pode me chamar de Frida, Super-Homem.
Faço uma careta para ela.
— E você pode me chamar de Nina, sabia?
— É, eu sei — ela diz, sorrindo. — Mas é que eu adoro esse apelido.
Fico em silêncio, encarando a praia à medida que o carro volta a ganhar velocidade. Eu não estou entendendo mais nada, e meu cérebro cansado só piora a tentativa de pensar racionalmente. Então ela é Frida para o público, para as garotas da banda e para mim. Então por que usar Lennon no único intuito de alugar filmes?
Estou tão concentrada nos pensamentos sem sentido que eu demoro a perceber que Frida passou direto da minha rua.
— Ei! Pensei que soubesse onde eu moro.
— E eu sei. — Ela ri. — Mas já que a senhorita jura que tá tudo bem, não vejo problemas em te levar no meu lugar favorito da cidade — explica, segurando firme o volante e aumentando um pouco mais a velocidade. — Avisa a sua mãe que você vai demorar só mais uns minutinhos, que tá, sei lá, fazendo um lanche com a banda estudantil antes de ir pra casa. Prometo que vai valer a pena.
Semicerro os olhos, de repente o cansaço parecendo sumir novamente. Há algo em Frida Tropelia que eu não consigo explicar de jeito nenhum. De verdade, eu não sei o que é ou muito menos entendo como consigo sentir isso. Mas eu sinto. Toda essa estranheza, essa anomalia, essa coisa especial. Eu sinto, mesmo que eu não entenda.
Há algo nessa garota, e a única coisa que eu sei é que preciso descobrir o que é.
E eu juro que, mesmo depois de nos afastarmos bastante do sinal, ela parece continuar pintada naquele mesmo tom de vermelho brilhante.
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